CAPÍTULO III A LIBERDADE ENTRE O HOMEM E A PESSOA
4. O homem sem gravidade (sujeito): a liberdade e a banalidade do mal
De acordo com o que desenvolvemos até agora, uma vez que a busca de
liberdade está, de modo geral, relacionada ao modo-de-ser-impróprio, o máximo de
liberdade significaria a identificação completa entre o “eu” e o Outro. O dispositivo da
pessoa encobriria, assim, a diferença ontológica de tal modo que acarretaria,
paradoxalmente, ausência máxima de liberdade.
Devemos aprofundar no exame de como se estrutura o processo de subjetivação
do homem na modernidade a fim de que possamos compreender melhor quais suas
principais características e efeitos. De acordo com Heidegger:
155 HEIDEGGER, Martin. A essência da liberdade humana: introdução à filosofia. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Jeneiro: Via Verita, 2012. Pág. 162-3.
156 URANGA, Fernando Longás. La Libertad en el Laberinto del Minotauro (Acerca de las apoías de la
Pode-se ver a essência da modernidade em o homem se libertar dos vínculos medievais, na medida em que se liberta para si mesmo. Mas esta caracterização correcta não deixa de ser superficial. Ela tem como consequência aqueles erros que impedem de captar o fundamento essencial da modernidade e, só a partir daí, medir também o alcance da sua essência. É certo que a modernidade, no seguimento da libertação do homem, despertou subjectivismo e individualismo. Mas continua a ser igualmente certo que nenhuma era antes dela produziu um objectivismo comparável, e que nenhuma era anterior o não-individual alcançou uma validade na figura do coletivo. O essencial aqui é a alternância necessária entre subjectivismo e objectivismo. Mas precisamente este condicionar-se reciprocamente aponta para processos mais profundos.157
A inversão metafísica que marca a modernidade em relação ao medievo e à
antiguidade proporciona ao homem libertar-se de todas as crenças que possuía e que, até
então, eram condição de possibilidade de formação e compreensão de tudo o que
constituía a vida, isto é, ocupavam o lugar do fundamento a partir do qual dava-se a
construção de Mundo. Porém,
O decisivo não é que o homem se liberta para si mesmo dos vínculos que tinha até agora, mas que a essência do homem em geral se transforma, na medida em que o homem se torna sujeito. Temos de compreender, na verdade, esta palavra subjectum como a tradução do grego ‘hypokeimenon’. A palavra menciona o subjacente [Vorliegendes] que, enquanto fundamento, reúne tudo sobre si. Este significado metafísico do conceito de sujeito não tem, à partida, nenhuma referência especial ao homem, nem de modo nenhum ao eu.158
Não resulta desta liberdade que o homem alcança para si mesmo simplesmente
uma nova posição em relação ao mundo e às coisas à sua volta, mas a novidade que a
metafísica transcendental proporciona é que o homem possa ocupar o lugar do Outro.
Uma vez que não há mais espaço para a crença em um ente transcendente responsável
por tudo o que há no mundo, este – o mundo – passa a ser compreendido pelo homem
não mais como uma ordem ou cosmos, mas a partir dele mesmo.
157HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem no mundo. In.: Caminhos de Floresta. 2ed. Tradução de Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. Pág. 110.
158 HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem no mundo. In.: Caminhos de Floresta. 2ed. Tradução de Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. Pág. 111.
O homem se livra das crenças – que lhe proporcionavam conforto quanto à
questão do sentido – que imperaram na metafísica ingênua, porém não está livre de, em
sua condição originariamente errante, (já) crer. Acontece que agora, “nesta certeza
fundamental, o homem está seguro de que ele está assegurado, enquanto re-presentador
de todo o re-presentar e, assim, enquanto âmbito de todo o estar-representado, enquanto
âmbito de qualquer certeza e verdade, isto é, está seguro de que ele é”
159.
O resultante do processo de subjetivação, que denominamos pessoa, tem como
característica fundamental, na metafísica, pressupor um Outro ou o seu lugar e, a partir
daí, poder constituir-se. Se agora o próprio homem ocupa este lugar, a pessoa tornar-se-
á sujeito. Portanto, somente com o advento da modernidade podemos falar do homem
como sujeito, neste sentido.
O sujeito coloca-se a si mesmo, e o faz – ou seja, torna-se o que é – ao atravessar
toda a relação de subjetivação, (re)compondo-se a cada momento, flutuando nos seus
dois pólos ao mesmo tempo, de modo que ao excluir a figura de um Outro e assumir a
transcendência, a identificação ou completude que é pano de fundo do processo de
subjetivação apresenta-se como completa.
No seu sentido de alcançado, no sentido pleno, completo mas também historicamente alcançado, fechado, circundado com Hegel, o sujeito é a suposição pura. Ele se coloca na medida exata em que ele se supõe a si mesmo, e essa suposição é a sua própria negação. Assim, a suposição é o movimento de incorporar esta negatividade como sua, como própria.160
Ao dizer isso, Nancy vai concluir que o sujeito, em seu sentido de acabamento, é
a suposição pura. Com isso, entendemos que o sujeito é a forma mais completa e
acabada do dispositivo da pessoa, o qual é puro por sustentar a própria suposição.
Disto não resulta, como poderia parecer a uma abordagem superficial, que o
homem, enquanto sujeito, alcança uma subjetividade que é uma substancialidade pronta
e encerrada em si mesma, de modo que o homem seria apenas isto que ele sempre foi,
que já é. O fato de se colocar no lugar do Outro tem como consequência, ao contrário, a
perda de qualquer substancialidade e, assim, de qualquer possibilidade de determinação
do homem. E é justamente o fato de se privar o Self, o sujeito enquanto individualidade,
de qualquer conteúdo substancial que leva, como observa Zizeck, à subjetivação
radical.
161
159 HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem no mundo. In.: Caminhos de Floresta. 2ed. Tradução de Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. Pág. 134.
160 NANCY, Jean Luc. Um sujeito?. In.: O homem e o sujeito. Tradução de Francisco R. de Farias. Rio de Janeiro: Revinter. Pág. 51.
161 ZIZEK, Slavoj. O amor impiedoso (ou: Sobre a crença). Tradução de Lucas Mello Carvalho Ribeiro. 2ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. Pág. 89.
Não é possível escapar do processo de subjetivação, posto que se trata da
condição originária do ser humano: se compreender enquanto (já) compreende o ser. A
falta que constitui a condição humana e que é encoberta neste processo de subjetivação,
até então, era percebida como sintoma do não fechamento da relação do “eu” com o
Outro, da impossibilidade desta identificação se dar de modo perfeito. No que toca ao
homem, enquanto sujeito, a supressão do Outro não significa a supressão da falta, mas
um novo modo de se projetar e constituir-se a partir dela – ou melhor, de seu
afastamento e encobrimento. Assim, observa Chales Melman,
“estamos errados em pensar que o sujeito está ávido de preservar sua singularidade.
Muito pelo contrário, nós o vemos pôr-se à busca de todas as identificações coletivas
em que poderá vir se dissolver. A preocupação de ser cuidado, de confiar a sistemas
religiosos, culturais, políticos a direção de sua existência é mais evidente que nunca. Na
minha opinião, a democracia, com seu ideal de livre escolha, não conduz forçosamente,
do ponto de vista psíquico, ao estado mais satisfatório, mais feliz. A aspiração de nossos
contemporâneos a fazer parte do rebanho está aí para mostrá-lo...”
162O homem torna-se sujeito e liberta-se de qualquer transcendência que lhe seja
imposta sem a sua vontade ou consentimento, sua principal característica é poder – ou
acreditar poder – preencher sua subjetividade desembaraçado de qualquer força externa
a si mesmo. Com isto, quanto mais livre o sujeito crê-se em relação à sua subjetividade,
mais refém desta ele se torna. E, por ainda se manter na metafísica, na busca de
completude do processo de subjetivação, o homem sujeita-se às crenças que assume –
por si-mesmo – de modo que estas, independentemente do seu conteúdo e do perigo,
para si e para os outros, que representam, enquanto se mantêm, retiram do homem a
capacidade de perceber seu absurdo, sua falha e a violência que ela institui e mantém.
Se o sujeito vai se identificar a uma forma de vida egoísta em que antes de tudo
presa por sua individualidade ou se vai se identificar a uma forma de vida em que
prepondera um coletivo, o nós; se vai se alinhar a um pensamento de cunho mais liberal
ou de cunho mais social; se vai se apegar a uma moral mais tradicionalista e aos velhos
costumes ou se vai pregar sua crítica e desmoronamento; tudo isso não é o fundamental.
O que realmente importa perceber é que toda e qualquer polarização, desde o sujeito,
tem como origem um único e mesmo modo-de-vida: apegar-se totalmente às crenças
enquanto puderem satisfazer o anseio de completude e mostrarem-se como uma opção
própria do sujeito, assim como desincumbir-se delas quando não mais se prestarem a
tanto.
Há em tudo isso algo mais grave do que a possibilidade de o sujeito poder
superar qualquer elo ou transcendência que o prenda a uma ordem de valores. O que
mais assusta, como percebeu Vilém Flusser, não é tanto a superação da ética e da
política, mas sim a superação de toda ontologia. Segue, então, seu diagnóstico:
162 MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Tradução de Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. Pág. 174-5.
Pela primeira vez desde que o homem é homem, emerge o significado central de ‘liberdade’: não a capacidade de se opor a esta ou aquela determinação, mas a capacidade de desprezar todas as condições e a elaborar universo não-determinado. O universo das tecno-imagens será o universo da liberdade porque todas as determinações desaparecerão, minimizadas e miniaturizadas, no horizonte do interesse, e no centro se elevará o campo da informação pura. Liberdade não mais enquanto mudar o mundo dos objetos, mas agora enquanto impor significado (informação) à vida.
Confesso que a visão do futuro próximo que estou propondo é a visão do inferno. (...) A visão que proponho, na qual o mundo objetivo retrocede e encolhe, e na qual o homem futuro se fixa sempre mais sobre terminais oníricos é, assumidamente, visão terminal da humanidade.163
O homem se liberta do vínculo com o Outro através do qual buscava sua
completude existencial, mas não pode se libertar da relação de subjetivação em que
desde sempre já se compreende e muito menos de sua condição originária, que é o
errar, resultando disso que o dispositivo da pessoa, nesta quadra da história, alcança a
liberdade total e, consequentemente, a sujeição total.
Podemos dizer que o sujeito é um homem sem gravidade, pois não há nada,
externo a ele, que o atraia e o mantenha numa relação de subjetivação capaz de fazer
sentido. O homem habita o Mundo sozinho, e a única coisa que compartilha com todos
os demais
– portanto, o que passa a ser considerado como sua característica
fundamental, que comporta e possibilita sua humanidade, sua “vida” – é o próprio
Mundo que o circunda.
Mas, se não há que reconhecer uma ordem transcendente que organiza e impera
sobre o mundo deste “novo homem”, a originalidade deste, que é sem precedente na
história, consiste em fazer parte de uma sociedade em que o traço comum que liga seus
participantes é compartilharem uma busca desenfreada por prazer.
164Trata-se de um modo-de-ser em que a vida se estrutura sem nenhum Outro
identificável e, portanto, sem nenhuma ordem de restrição ou proibição fundadora.
Assim, o ato de transgredir a(s) norma(s), de se portar como um transgressor que não
suporta a violência resultante da instituição-menutenção da subjetividade, não exige
mais nenhuma dose de heroísmo. Muito pelo contrário, na perversão generalizada que
impera no Mundo do sujeito, “a própria transgressão é solicitada, somos diariamente
163 FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. Pág. 176; 192.
164 MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Tradução de Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. Pág. 181.
bombardeados por gadets e formas sociais que não apenas nos permitem viver nossas
perversões, mas que até mesmo incitam diretamente novas perversões”
165.
O que fica encoberto e que é de fundamental importância perceber, é que ao
contrário do que acontecia na metafísica clássica – em que a falha inerente ao processo
de subjetivação, que exsurgia como sintoma da impossibilidade de identificação “real”
entre o “eu” e o Outro – agora, na inversão propiciada pela metafísica transcendental, o
sujeito não é mais impedido ou restringido em seu agir pelo Outro, pela relação de
subjetivação que encobre a diferença ontológica e sua falta de ser, mas é impelido, ao
colocar-se no lugar do Outro, a agir, o que faz desde si-mesmo (não percebendo que
este é o modo mais impróprio, tão ou mais externo à sua individualidade que qualquer
grande Outro).
A falha inerente ao processo de subjetivação em que já estamos inseridos e a
partir do qual o homem se compreende, quando se trata do sujeito, não se volta para o
Outro, não expondo ou ao menos deixando-se perceber seu caráter ficcional. A falha
não pode mais ser compreendida como sendo do Outro, pois este não é mais externo ao
“eu”. Assim, estando fechado, acabado em si mesmo o processo de subjetivação, a falha
é voltada para fora, encobrindo, mais ainda, tal processo. O que falta ao homem –
enquanto homem, ou seja, não-ser – é totalmente encoberto pelo que aparece como o
que falta ao sujeito, sendo que esta é buscada no Mundo, uma vez que este mostra-se
como disponível para converter-se em objetificação que corresponda aos anseios do
sujeito.
Deste modo, tudo o que é desconhecido pelo sujeito é compreendido em
contraposição ao que se conhece, quer dizer, à parte dele mesmo que o próprio sujeito
compreende. A relação de oposicionalidade completa-se no sujeito mesmo, no
fechamento intrínseco a este. Isto é o que impede o acesso a qualquer ontologia, e é o
que acontece, por exemplo, quando “o inconsciente é tomado ou compreendido como o
pressuposto da consciência”
166. Não há mais um Outro do qual se possa “desconfiar”,
pois o que sustenta o sujeito é sua própria representação e, por mais que se possa
desconfiar de um conteúdo para o sujeito, não se pode desconfiar de que é dele que
emana a representação desta desconfiança.
Esta possibilidade, que no modo de ser cotidiano é percebida como uma
necessidade, de dispor do Mundo para satisfazer as vontades do sujeito implicam em
um modo-de-ser essencialmente perverso, pois esta busca desenfreada de prazer – isto é,
de sentido – não respeita nenhum limite, nem mesmo o próprio sujeito e, muito menos
as outras pessoas, estão salvaguardadas desta objetificação devastadora. Como salienta
Heidegger:
165 ZIZEK, Slavoj. O amor impiedoso (ou: Sobre a crença). Tradução de Lucas Mello Carvalho Ribeiro. 2ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. Pág. 84.
166 NANCY, Jean Luc. Um sujeito?. In.: O homem e o sujeito. Tradução de Francisco R. de Farias. Rio de Janeiro: Revinter. Pág. 54.
Pelo contrário, o homem como aquele ser que se impõe propositadamente, é arriscado e exposto ao desamparo. A balança do perigo é, na mão do homem de tal modo arriscado, essencialmente insaciada. O homem que se quer a si próprio, conta sempre com as coisas e com os homens, enquanto algo que tem o caráter de objecto. Feitas assim as contas, tudo se torna mercadoria, sofrendo continuamente um câmbio num âmbito de ordens que não param de se alterar. A despedida contra a conexão pura acomoda-se na inquietude da balança, que pesa incansavelmente. Contra a sua própria intenção, a despedida exerce na objectivação do mundo o inconstante. Arriscado desta forma para o desamparo, o homem movimenta-se no ambiente dos negócios e das ‘trocas’. O homem que se impõe vive das apostas do seu querer. Vive essencialmente arriscando o seu ser, no âmbito da vibração do dinheiro e do valer dos valores. Sendo constantemente este cambista e mediador, o homem é ‘o comerciante’. Pesa e pondera sem parar, embora não conheça o verdadeiro peso das coisas. Também nunca saberá o que é que nele mesmo tem verdadeiro peso e prepondera.”167
Ao fazermos estas considerações temos que deixar claro que se trata de buscar
uma compreensão autêntica do que é a condição humana e, portanto, quando dizemos
que o sujeito assume o lugar do Outro e que, portanto, não resta mais nenhuma crença
capaz de o transcender, seja moral ou religiosa, não estamos dizendo que acabaram-se
as religiões e que quem crê em Deus ou é adepto de qualquer religião não se enquadra
no que estamos descrevendo como sujeito.
O que queremos trazer à tona é a condição originária deste modo-de-ser que
impera na modernidade, e podemos dizer que se o sujeito acredita em Deus, em alguma
moral, em qualquer coisa, o faz desde si mesmo, desde uma crença em si – como
representador – que antecede e condiciona todas as demais, donde muitas vezes as
pessoas agirem de tal modo que se identificam a sistemas políticos, sociais, religiosos e
dos mais variados tipo que, na realidade, podem se mostrar parcial e até mesmo
completamente antagônicos entre si. Todos eles não passam de dispositivos à disposição
do sujeito, e assim não precisam fazer sentido em sua totalidade uma vez que não se
remetem a um Outro que os coordene de forma comum. Desde que satisfaçam,
momentânea, mesmo que individualmente, a ânsia do sujeito por sujeitar(-se) e
objetificar(-se) o Mundo, não causam desconforto e, caso falhem neste
empreendimento, não gera sintoma enquanto falha do processo de subjetivação, ou
167 HEIDEGGER, Martin. Para quê poetas? In.: Caminhos de Floresta. 2ed. Tradução de Bernhard Sylla e Vítor Moura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. Pág. 359-60.
melhor, a falha não é compreendida assim, mas como necessidade de se acentuar o
processo de subjetivação, o qual volta-se para mais objetivações.
Tendo isso claro, entendemos que o capitalismo é resultado e condição de
possibilidade deste modo-de-ser, deste modo em que acontece o processo de
subjetivação, que antecede toda e qualquer crença em sua efetividade. Trazemos neste
sentido trecho um pouco longo, mas estritamente importante de Walter Benjamin:
Contudo, três traços já podem ser identificados na estrutura religiosa do capitalismo. Em primeiro lugar, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez até a mais extremada que já existiu. Nele, todas as coisas só adquirem significado na relação imediata com o culto; ele não possui nenhuma dogmática, nenhuma teologia. Sob esse aspecto, o utilitarismo obtém sua coloração religiosa. Ligado a essa concreção do culto está um segundo traço do capitalismo: a duração permanente do culto. O capitalismo é a celebração de um culto sans revê et merci [sem sonho e sem piedade]. Para ele, não existe ‘dias normais’, não há dia que não seja festivo no terrível sentido da ostentação de toda a pompa sacral, do empenho extremo do adorador. Em terceiro lugar, esse culto é culpabilizador. O capitalismo presumivelmente é o primeiro caso de culto não expiatório, mas culpabilizador. Nesse aspecto, tal sistema religioso é decorrente de um movimento monstruoso. Uma monstruosa consciência de culpa que não sabe como expiar lança mão do culto, não para expiar essa culpa, mas para torná-la universal, para martelá-la na consciência e, por fim e acima de tudo, envolver o próprio Deus nessa culpa, para que ele se interesse pela expiação. Esta, portanto, não deve ser esperada do culto em si, nem mesmo da reforma dessa religião, que deveria poder encontrar algum ponto de apoio firme dentro dela mesma; tampouco da recusa de aderir a ela. Faz parte da essência desse movimento religioso que é o capitalismo aguentar até o fim, até a culpabilização final e total de Deus, até que seja alcançado o estado de desespero universal, no qual ainda se deposita alguma esperança. Nisto reside o aspecto historicamente inaudito do capitalismo: a religião não é mais reforma do ser, mas seu esfacelamento. Ela é a expansão do desespero ao estado religioso universal, do qual se esperaria a salvação. A transcendência de Deus ruiu. Mas ele não está morto; ele foi incluído no destino humano. Essa passagem do planeta ‘ser humano’ pela casa do desespero na solidão
absoluta de sua órbita constitui o éthos definido por Nietzsche. Esse ser humano é o ser super- humano [Übermensch], o primeiro que começa a cumprir conscientemente a religião capitalista. O quarto traço dessa religião é que seu Deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização. O culto é celebrado diante de uma divindade imatura; toda representação dela e toda ideia sobre ela viola o mistério da sua madureza.168