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O fundamento e a violência

No documento Joaquim Eduardo Pereira.pdf (páginas 44-52)

CAPÍTULO I – O QUE (NÃO) SÃO OS DIREITOS HUMANOS

5. O fundamento e a violência

A partir de tudo o que expusemos poderíamos antecipar como resultado a

impossibilidade de haver um fundamento para o Direito. Porém, o que se esconde por

trás de uma afirmação como esta? Quer isto dizer que podemos dar para o Direito

qualquer conteúdo? E mais, seria esta capacidade de criar “livremente” o Direito o que

constituiria um modo-de-ser autêntico?

Parece que as respostas a estas perguntas devem ser negativas, justamente por

deixar encoberto o que é mais fundamental. Não é que rechaçamos simplesmente a

possibilidade de haver um fundamento para o Direito ao explicitar seu caráter ficcional,

de modo a cair no niilismo que Nietzsche anunciou ser característico da modernidade.

A condição de possibilidade para que pudéssemos afirmar o caráter ficcional do

Direito foi partirmos da ontologia fundamental, a qual nos permitiu compreender,

primeiramente, que o ser humano é essencialmente ec-sistência. Sua constituição

originária é marcada por sua finitude, mais precisamente, por sua falta-de-ser, sendo que

esta tende a ser encoberta no seu modo de ser cotidiano, inautêntico, no processo de

subjetivação em que o ser humano se compreende enquanto compreende o ser. Podemos

explicitar melhor com a concepção do professor Willis Santiago Guerra Filho:

Na base de toda ilusão coletiva que é a sociedade, cimentada por normas da ética, do direito e das religiões, portanto, está a ilusão individual de que somos, o vazio que somos, por não sermos propriamente. A primeira tentativa que fazemos para colmatar esse vazio, essa falta de ser, quando se ausenta ‘aquilo’ que julgávamos ser – nossa mãe, onde ‘éramos’ antes de nascer –, nos leva a falar. Adquirindo linguagem, nos vem a ilusão fundamental: a do Eu. Depois, por modos diferentes, diante do fracasso repetido de atingir ‘algo’ que preencha-nos o vazio de ser – o ‘objeto a’ de que nos falou Lacan, objeto perdido do desejo, inexistente, no sentido em que Heidegger se refere a ‘das Ding’ – terminamos nos fixando mais em alguma prática, como a religião, a arte

ou a ciência. Com a arte, ornamentamos o vazio, disfarçando o horror que nos causa; com a religião, nós o evitamos, ao venerá-lo; com a ciência, nós o negamos, negando, assim, a nós mesmos, do que resulta essa espécie tão eficaz de sociedade em sua capacidade destruidora que é a nossa.52

O professor Henrique Garbellini Carnio também mostrou, a partir do

entrecruzamento do pensamento de Nietzsche – que havia chegado à conclusão de que

não há um direito em si, não há justiça em si, uma vez que não há fatos, há

interpretações de fatos – e Kelsen – que considera, depois de muito tempo, sua norma

hipotética fundamental como uma norma fictícia, posto que como categoria, isto é, uma

condição transcendental de possibilidade do conhecimento jurídico, não poderia ser uma

norma, jurídica, que na sua própria definição é o que confere sentido jurídico a um ato

de vontade, criando Direito a partir de Direito previamente estabelecido

53

– que o

Direito deve ser compreendido como uma ficção.

54

Acontece que, mais difícil que reconhecer o caráter ficcional do Direito, é

compreender a essência da ficção. Heidegger nos diz que “a essência da verdade é a

verdade da essência”

55

, ressaltando que esta expressão não quer apenas expressar um

paradoxo e que seu sujeito, se ainda for possível falar nesta categoria, é a verdade da

essência. Parafraseando-o, poderíamos dizer que a violência do Direito é o direito de

violência.

A ideia de verdade – enquanto correlação, adequação, isto é, como denunciamos

ser seu sentido comum, impróprio

– é intrinsecamente relacionada à ideia de

fundamento. Independentemente do conteúdo e de como este se estabelece, o que

caracteriza de modo essencial o modo de ser impróprio do ser humano, no qual este já

desde sempre se encontra, é a crença na forma de vida, na forma de subjetivação que

instala e mantém a errância. Esta crença é mais que a crença na forma de subjetividade e

52 GUERRA FILHO, Willis Santiago. O Conhecimento Imaginário do Direito. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011. Pág. 44-5.

53 GUERRA FILHO, Willis Santiago. O Conhecimento Imaginário do Direito. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011. Pág. 13-19.

54 CARNIO, Henrique Garbellini. Direito e Antropologia: reflexões sobre a origem do Direito a partir de

Kelsen e Nietzsche. São Paulo: Saraiva, 2013.

55 HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade. In.: Os pensadores. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. Pág. 170.

no Outro que a possibilita, é a crença nesta relação, esta relação que se dá no plano

simbólico é que suporta e requer a violência.

O modo de ser impróprio é aquele em que o ser humano se deixa levar pela vida

cotidiana, o que só é possível a partir da crença compartilhada no que conforma a forma

de vida vigente. Para isso, sempre se oferece uma resposta à questão fundamental do

que é o humano e, portanto, também de tudo em que este está implicado, como o Direito

por exemplo. Willis Santiago Guerra Filho esclarece que “tal resposta é de se considerar

fundante, fundadora do que somos, de como nos percebemos – e é isso que ‘somos’”

56

.

Continua em seu pensamento dizendo que na pré-modernidade a resposta típica

é de cunho mitológico ou teológico em sentido amplo, enquanto que na modernidade é

de cunho jurídico, em que fomos constituídos por contrato, por nós mesmos, e na pós-

modernidade “a resposta típica é um misto das duas anteriores, é um mito criado

conscientemente como tal, uma ficção, que remete nossa criação a um ‘grande Outro’,

que não é um Deus nem um outro ser humano, que está em nós sem ser o que somos

(...)”

57

.

O fato de se erigir as ficções de origem ao lugar do Outro, como se desse fossem

a expressão, não só institui um referencial para o processo de subjetivação em que o ser

humano já está desde sempre inserido, como requer deste sua manutenção, a qual se dá

pela (re)afirmação deste processo, fazendo da ficção o fundamento a partir do qual se

pode aferir a verdade do que se (re)cria nas relações intersubjetivas.

Primeiramente gostaríamos de explicitar melhor que no modo de ser impróprio

que vige no cotidiano a relação entre o fundamento e a verdade se mantém como uma

ficção que se apresenta não como uma realidade, que é, mas como o Real, ao qual não

podemos ter acesso, mas igualmente temos dificuldade enorme de suportar esta verdade.

Nos limitaremos a citar alguns pensadores que chegaram, por caminhos

próprios, a esta conclusão da imbricação entre Direito e violência, pois o foco principal

é, a partir daí, vislumbrar possibilidades autênticas para os Direitos Humanos em que

56 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ficções de Origem e o Direito como Ficção. Tese de Livre- Docência apresentada ao departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo. Pág. 1.

57 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ficções de Origem e o Direito como Ficção. Tese de Livre- Docência apresentada ao departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo. Pág. 2.

estes não sejam inapropriados nesta lógica, como tem acontecido devido à inapropriação

como estes vêm sendo tratados, e não compreendidos. Aliás, nos interessa mostrar que a

violência não é inerente ao Direito, tão somente, mas ao ser humano enquanto se

mantém na errância, enquanto subjetividade forjada através daquele.

Walter Benjamin no ensaio Sobre a crítica do poder como violência mostra

explicitamente o que temos defendido, a co-originariedade entre Direito e violência. O

autor mostra que se instrumentaliza esta a pretexto daquele, de modo que “todo poder,

enquanto meio, tem por função instituir o Direito ou mantê-lo.”

58

Isto se dá porque, como já dissemos, o Direito não existe em si, portanto

a função que do poder como violência na instituição do Direito é dupla, na medida em que essa instituição se propõe ser aquilo que se institui como Direito, como seu fim, usando a violência como meio; mas, por outro lado, no momento da aplicação dos fins em vista como Direito, a violência não abdica, mas transforma- se, num sentido rigoroso e imediato, em poder instituinte do Direito, na medida em que estabelece como Direito, em nome do poder político, não um fim livre e independente da violência, mas um fim necessária e intimamente a ela ligado. A instituição de um Direito é instituição de um poder político e, nesse sentido, um ato de manifestação direta de violência. A justiça é o princípio de toda instituição divina de fins, o poder político, o princípio de toda instituição mítica de um Direito.59

Ainda neste sentido, também Jean-Luc Nancy chega à conclusão da imbricação

entre Direito e violência, levando em consideração, como já mostramos, o caráter ec-

sistente do ser humano. Justamente por esta condição, que Nancy denomina de ser

abandonado do ser humano, a qual ele encobre ao dar e reconhecer, reciprocamente, um

sentido para sua existência, reconhece-se no Direito, dispositivo a partir do qual se

inscreve a Lei, isto é, a capacidade de ditar leis, o lugar em que esta capacidade dever

ser mantida, através da violência. Abandona-se ao Direito, e à violência, portanto,

justamente como fuga à condição essencial de ser abandonado.

58 Sobre a crítica do poder como violência. In.: BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. Pág. 69.

59 Sobre a crítica do poder como violência. In.: BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. Pág. 77.

Se abandona siempre a una ley. El desnudamiento del ser abandonado se mide en los rigores sin límites de la ley a la cual se encuentra expuesto. El abandono no constituye una cita a comparecer bajo tal o cual autoridad de la ley. Es una coacción a aparecer absolutamente bajo la ley, bajo la ley como tal y totalmente. Igualmente —es la misma cosa— ser banni (desterrado, exilado) no es volver a pasar bajo una disposición de la ley, sino pasar bajo la ley entera. Entregado a lo absoluto de la ley, el banni (desterrado, exilado) es también abandonado en el afuera de toda su jurisdicción. La ley del abandono quiere que la ley se aplique retirándose. La ley del abandono es la otra ley, que hace la ley.

El ser abandonado se encuentra desamparado en la medida en que se encuentra vuelto a poner, confiado o lanzado a esta ley que hace la ley, la otra y la misma, a este reverso de toda ley que delimita y sostiene un universo legal: un orden absoluto y solemne, que sólo prescribe el abandono. El ser no es confiado a una causa, a un motor, a un principio; no es dejado en su propia sustancia, ni aún en su propia subsistencia. Él es —en el abandono.60

Este abandonar-se ao Direito e à violência como fuga da condição de ser

abandonado não é uma atitude consciente. Aliás, já demonstramos que a errância não é

uma possibilidade que se apresenta ao ser humano, mas ele erra, é já seu modo de ser

originário.

Sendo assim, seguindo a mesma trilha, avançando as lições de Nancy, Agamben

desenvolve uma obra densa em que reconhece no bando a relação política originária

61

.

Não se trata de reconhecer no bando uma forma de política que foi a primeira, tendo

uma precedência histórica, a partir da qual a política vem se modificando. Reconhecer o

bando como forma política originária implica em compreender essa originariedade em

consonância com o caráter ec-sistente do ser humano e, consequentemente, com seu

modo-de-ser originário que é errância. Pois, ao tratar destas questões fundamentais,

Henrique Garbellini Carnio mostra que

60 NANCY, Jean-Luc. El ser abandonado. In.: L’impératif catégorique. Paris: Flammarion, 1983, pp. 139-153. Tradução de Ernesto Hernández B. Cali, Colombia.

61 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua. 2 ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. Pág.176.

como relação originária, a noção de bando se apresenta em todo o decorrer do desenvolvimento histórico da humanidade, fato que ratifica sua potência originária e que permite, a partir da busca de figuras análogas ao abandonado no desenvolvimento histórico, compreender o sentido constitutivo e projetivo das relações sociais num ambiente de tensões que figuram como elementos principais as noções de direito e violência, portanto, também das noções de política, poder e religião.62

Para nós o que mais importa é que o bando que se estabelece como portador do

Direito, isto é, do poder de ditar as leis e zelar pelo seu cumprimento, não é uma

instituição formada a partir de indivíduos que se organizam para esta finalidade, nem é

imposto de fora do convívio social, como se pudesse ser definido a priori. Mas é uma

condição ontológica na qual cada indivíduo já se reconhece enquanto tal, a partir da

qual se reconhece como uma subjetividade, isto é, de onde se constitui enquanto ser

humano, de onde pode se reconhecer como humano. Sendo este o único ente que pode

refletir sobre sua própria condição, é o único que pode justificar sua existência.

Acontece que esta relação política originária, em que Direito e violência se co-

pertencem, nada mais é que o modo-de-ser-impróprio que designamos como sendo traço

fundamental do ser humano, posto que este se caracteriza por ser ec-sistência e ser-com-

no-mundo. Desse modo, não há Direito, isto é, ordem política efetiva imposta e vigente

que não se caracterize por um fundamento mítico que instaura e mantém a vida

cotidiana, na qual cada ser humano se reconhece como tal. Este fundamento mítico foi

denunciado, também, por Jacques Derrida, na célebre obra Força de Lei

63

.

Seguindo os passos deste autor, podemos dizer que o fundamento místico que

sustenta a autoridade que se encarrega da lei, tanto de sua inscrição quanto aplicação, é

a ficção que mantêm unidos o indivíduo e o Outro. O ser humano, enquanto erra,

sempre se relaciona de modo mediato, pois sempre há o Outro que condiciona e

antecede seu conviver com os outros seres humanos.

62 CARNIO, Henrique Garbellini. O direito e a política entre a obligatio e o bando. Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito na área de Filosofia do Direito e do Estado sob a orientação do Prof. Doutor Willis Santiago Guerra Filho. São Paulo, 2013. Pág. 80.

63 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone- Moisés. 2ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

A “segurança” que o modo-de-ser-impróprio garante ao ser humano, ao garantir

sua vida perante os demais, na esfera pública, na verdade encobre não só o manter-se na

errância, mas principalmente a violência que é necessária para manter esta. Pois a vida

que se instaura e promete garantir, através do uso exclusivo da violência “legitimada”, é

a forma de vida vigente em determinada época, e não a vida de cada ser humano em sua

singularidade

64

. Aliás, é desta que o indivíduo deve abrir mão para se abrigar sob a

guarida da Lei, do Direito.

Tudo o que é resultado do ser humano e do seu convívio social diz respeito não

só às regras que devem reger a convivência humana, mas especialmente à

fundamentação do que constitui sua própria humanidade, de modo que esta, uma vez

(re)conhecida, possa ser devidamente garantida. A idéia de fundamento, que parece ser

inerente à tudo que diz respeito ao humano, pois este sempre ofereceu respostas para

suas questões fundamentais, as ficções de origem que se erigem em fundamentos

epocais que comandam o convívio social.

Reconhecer o caráter ficcional das instituições, como o Direito especialmente,

assim como o caráter ficcional do próprio ser humano não é muito eficaz para oferecer

melhores formas de vida em comum, se tal reconhecimento não for acompanhado de

uma compreensão mais autêntica do que é o próprio humano, e de sua relação com o

Direito.

Continuamos a seguir, no próximo capítulo, com estas mesmas questões

fundamentais, mas abordadas de modo diferente, não oposto ao que até aqui foi

defendido, mas complementar. Tentaremos pontuar, através da análise do dispositivo da

pessoa, que a (in)compreensão que o domina hodiernamente no Direito está

intimamente ligada ao fato de não se pensar as questões fundamentais aqui expostas,

principalmente no que diz respeito ao papel do Direito para a constituição do ser

humano e também a reciprocidade desta relação. Buscaremos mostrar que o paradoxo

que envolve o dispositivo da pessoa é resultado do modo-de-ser-impróprio, o qual

parece-nos que vem se alastrando cada vez mais desde suas origens mais significantes

para nós. E mostraremos, para isso, um caso singular e extremamente sintomático do

que consideramos um modo-de-ser-próprio, e como este se relaciona em relação ao

64 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone- Moisés. 2ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. Pág. 124-5.

Direito, reconhecendo seu caráter ficcional para desativá-lo, e não para perpetuá-lo,

(in)apropriando-se de seu domínio.

No documento Joaquim Eduardo Pereira.pdf (páginas 44-52)