CAPÍTULO I – O QUE (NÃO) SÃO OS DIREITOS HUMANOS
5. O fundamento e a violência
A partir de tudo o que expusemos poderíamos antecipar como resultado a
impossibilidade de haver um fundamento para o Direito. Porém, o que se esconde por
trás de uma afirmação como esta? Quer isto dizer que podemos dar para o Direito
qualquer conteúdo? E mais, seria esta capacidade de criar “livremente” o Direito o que
constituiria um modo-de-ser autêntico?
Parece que as respostas a estas perguntas devem ser negativas, justamente por
deixar encoberto o que é mais fundamental. Não é que rechaçamos simplesmente a
possibilidade de haver um fundamento para o Direito ao explicitar seu caráter ficcional,
de modo a cair no niilismo que Nietzsche anunciou ser característico da modernidade.
A condição de possibilidade para que pudéssemos afirmar o caráter ficcional do
Direito foi partirmos da ontologia fundamental, a qual nos permitiu compreender,
primeiramente, que o ser humano é essencialmente ec-sistência. Sua constituição
originária é marcada por sua finitude, mais precisamente, por sua falta-de-ser, sendo que
esta tende a ser encoberta no seu modo de ser cotidiano, inautêntico, no processo de
subjetivação em que o ser humano se compreende enquanto compreende o ser. Podemos
explicitar melhor com a concepção do professor Willis Santiago Guerra Filho:
Na base de toda ilusão coletiva que é a sociedade, cimentada por normas da ética, do direito e das religiões, portanto, está a ilusão individual de que somos, o vazio que somos, por não sermos propriamente. A primeira tentativa que fazemos para colmatar esse vazio, essa falta de ser, quando se ausenta ‘aquilo’ que julgávamos ser – nossa mãe, onde ‘éramos’ antes de nascer –, nos leva a falar. Adquirindo linguagem, nos vem a ilusão fundamental: a do Eu. Depois, por modos diferentes, diante do fracasso repetido de atingir ‘algo’ que preencha-nos o vazio de ser – o ‘objeto a’ de que nos falou Lacan, objeto perdido do desejo, inexistente, no sentido em que Heidegger se refere a ‘das Ding’ – terminamos nos fixando mais em alguma prática, como a religião, a arte
ou a ciência. Com a arte, ornamentamos o vazio, disfarçando o horror que nos causa; com a religião, nós o evitamos, ao venerá-lo; com a ciência, nós o negamos, negando, assim, a nós mesmos, do que resulta essa espécie tão eficaz de sociedade em sua capacidade destruidora que é a nossa.52
O professor Henrique Garbellini Carnio também mostrou, a partir do
entrecruzamento do pensamento de Nietzsche – que havia chegado à conclusão de que
não há um direito em si, não há justiça em si, uma vez que não há fatos, há
interpretações de fatos – e Kelsen – que considera, depois de muito tempo, sua norma
hipotética fundamental como uma norma fictícia, posto que como categoria, isto é, uma
condição transcendental de possibilidade do conhecimento jurídico, não poderia ser uma
norma, jurídica, que na sua própria definição é o que confere sentido jurídico a um ato
de vontade, criando Direito a partir de Direito previamente estabelecido
53– que o
Direito deve ser compreendido como uma ficção.
54Acontece que, mais difícil que reconhecer o caráter ficcional do Direito, é
compreender a essência da ficção. Heidegger nos diz que “a essência da verdade é a
verdade da essência”
55, ressaltando que esta expressão não quer apenas expressar um
paradoxo e que seu sujeito, se ainda for possível falar nesta categoria, é a verdade da
essência. Parafraseando-o, poderíamos dizer que a violência do Direito é o direito de
violência.
A ideia de verdade – enquanto correlação, adequação, isto é, como denunciamos
ser seu sentido comum, impróprio
– é intrinsecamente relacionada à ideia de
fundamento. Independentemente do conteúdo e de como este se estabelece, o que
caracteriza de modo essencial o modo de ser impróprio do ser humano, no qual este já
desde sempre se encontra, é a crença na forma de vida, na forma de subjetivação que
instala e mantém a errância. Esta crença é mais que a crença na forma de subjetividade e
52 GUERRA FILHO, Willis Santiago. O Conhecimento Imaginário do Direito. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011. Pág. 44-5.
53 GUERRA FILHO, Willis Santiago. O Conhecimento Imaginário do Direito. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011. Pág. 13-19.
54 CARNIO, Henrique Garbellini. Direito e Antropologia: reflexões sobre a origem do Direito a partir de
Kelsen e Nietzsche. São Paulo: Saraiva, 2013.
55 HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade. In.: Os pensadores. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. Pág. 170.
no Outro que a possibilita, é a crença nesta relação, esta relação que se dá no plano
simbólico é que suporta e requer a violência.
O modo de ser impróprio é aquele em que o ser humano se deixa levar pela vida
cotidiana, o que só é possível a partir da crença compartilhada no que conforma a forma
de vida vigente. Para isso, sempre se oferece uma resposta à questão fundamental do
que é o humano e, portanto, também de tudo em que este está implicado, como o Direito
por exemplo. Willis Santiago Guerra Filho esclarece que “tal resposta é de se considerar
fundante, fundadora do que somos, de como nos percebemos – e é isso que ‘somos’”
56.
Continua em seu pensamento dizendo que na pré-modernidade a resposta típica
é de cunho mitológico ou teológico em sentido amplo, enquanto que na modernidade é
de cunho jurídico, em que fomos constituídos por contrato, por nós mesmos, e na pós-
modernidade “a resposta típica é um misto das duas anteriores, é um mito criado
conscientemente como tal, uma ficção, que remete nossa criação a um ‘grande Outro’,
que não é um Deus nem um outro ser humano, que está em nós sem ser o que somos
(...)”
57.
O fato de se erigir as ficções de origem ao lugar do Outro, como se desse fossem
a expressão, não só institui um referencial para o processo de subjetivação em que o ser
humano já está desde sempre inserido, como requer deste sua manutenção, a qual se dá
pela (re)afirmação deste processo, fazendo da ficção o fundamento a partir do qual se
pode aferir a verdade do que se (re)cria nas relações intersubjetivas.
Primeiramente gostaríamos de explicitar melhor que no modo de ser impróprio
que vige no cotidiano a relação entre o fundamento e a verdade se mantém como uma
ficção que se apresenta não como uma realidade, que é, mas como o Real, ao qual não
podemos ter acesso, mas igualmente temos dificuldade enorme de suportar esta verdade.
Nos limitaremos a citar alguns pensadores que chegaram, por caminhos
próprios, a esta conclusão da imbricação entre Direito e violência, pois o foco principal
é, a partir daí, vislumbrar possibilidades autênticas para os Direitos Humanos em que
56 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ficções de Origem e o Direito como Ficção. Tese de Livre- Docência apresentada ao departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo. Pág. 1.
57 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ficções de Origem e o Direito como Ficção. Tese de Livre- Docência apresentada ao departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo. Pág. 2.
estes não sejam inapropriados nesta lógica, como tem acontecido devido à inapropriação
como estes vêm sendo tratados, e não compreendidos. Aliás, nos interessa mostrar que a
violência não é inerente ao Direito, tão somente, mas ao ser humano enquanto se
mantém na errância, enquanto subjetividade forjada através daquele.
Walter Benjamin no ensaio Sobre a crítica do poder como violência mostra
explicitamente o que temos defendido, a co-originariedade entre Direito e violência. O
autor mostra que se instrumentaliza esta a pretexto daquele, de modo que “todo poder,
enquanto meio, tem por função instituir o Direito ou mantê-lo.”
58Isto se dá porque, como já dissemos, o Direito não existe em si, portanto
a função que do poder como violência na instituição do Direito é dupla, na medida em que essa instituição se propõe ser aquilo que se institui como Direito, como seu fim, usando a violência como meio; mas, por outro lado, no momento da aplicação dos fins em vista como Direito, a violência não abdica, mas transforma- se, num sentido rigoroso e imediato, em poder instituinte do Direito, na medida em que estabelece como Direito, em nome do poder político, não um fim livre e independente da violência, mas um fim necessária e intimamente a ela ligado. A instituição de um Direito é instituição de um poder político e, nesse sentido, um ato de manifestação direta de violência. A justiça é o princípio de toda instituição divina de fins, o poder político, o princípio de toda instituição mítica de um Direito.59
Ainda neste sentido, também Jean-Luc Nancy chega à conclusão da imbricação
entre Direito e violência, levando em consideração, como já mostramos, o caráter ec-
sistente do ser humano. Justamente por esta condição, que Nancy denomina de ser
abandonado do ser humano, a qual ele encobre ao dar e reconhecer, reciprocamente, um
sentido para sua existência, reconhece-se no Direito, dispositivo a partir do qual se
inscreve a Lei, isto é, a capacidade de ditar leis, o lugar em que esta capacidade dever
ser mantida, através da violência. Abandona-se ao Direito, e à violência, portanto,
justamente como fuga à condição essencial de ser abandonado.
58 Sobre a crítica do poder como violência. In.: BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. Pág. 69.
59 Sobre a crítica do poder como violência. In.: BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. Pág. 77.
Se abandona siempre a una ley. El desnudamiento del ser abandonado se mide en los rigores sin límites de la ley a la cual se encuentra expuesto. El abandono no constituye una cita a comparecer bajo tal o cual autoridad de la ley. Es una coacción a aparecer absolutamente bajo la ley, bajo la ley como tal y totalmente. Igualmente —es la misma cosa— ser banni (desterrado, exilado) no es volver a pasar bajo una disposición de la ley, sino pasar bajo la ley entera. Entregado a lo absoluto de la ley, el banni (desterrado, exilado) es también abandonado en el afuera de toda su jurisdicción. La ley del abandono quiere que la ley se aplique retirándose. La ley del abandono es la otra ley, que hace la ley.
El ser abandonado se encuentra desamparado en la medida en que se encuentra vuelto a poner, confiado o lanzado a esta ley que hace la ley, la otra y la misma, a este reverso de toda ley que delimita y sostiene un universo legal: un orden absoluto y solemne, que sólo prescribe el abandono. El ser no es confiado a una causa, a un motor, a un principio; no es dejado en su propia sustancia, ni aún en su propia subsistencia. Él es —en el abandono.60
Este abandonar-se ao Direito e à violência como fuga da condição de ser
abandonado não é uma atitude consciente. Aliás, já demonstramos que a errância não é
uma possibilidade que se apresenta ao ser humano, mas ele erra, é já seu modo de ser
originário.
Sendo assim, seguindo a mesma trilha, avançando as lições de Nancy, Agamben
desenvolve uma obra densa em que reconhece no bando a relação política originária
61.
Não se trata de reconhecer no bando uma forma de política que foi a primeira, tendo
uma precedência histórica, a partir da qual a política vem se modificando. Reconhecer o
bando como forma política originária implica em compreender essa originariedade em
consonância com o caráter ec-sistente do ser humano e, consequentemente, com seu
modo-de-ser originário que é errância. Pois, ao tratar destas questões fundamentais,
Henrique Garbellini Carnio mostra que
60 NANCY, Jean-Luc. El ser abandonado. In.: L’impératif catégorique. Paris: Flammarion, 1983, pp. 139-153. Tradução de Ernesto Hernández B. Cali, Colombia.
61 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua. 2 ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. Pág.176.
como relação originária, a noção de bando se apresenta em todo o decorrer do desenvolvimento histórico da humanidade, fato que ratifica sua potência originária e que permite, a partir da busca de figuras análogas ao abandonado no desenvolvimento histórico, compreender o sentido constitutivo e projetivo das relações sociais num ambiente de tensões que figuram como elementos principais as noções de direito e violência, portanto, também das noções de política, poder e religião.62
Para nós o que mais importa é que o bando que se estabelece como portador do
Direito, isto é, do poder de ditar as leis e zelar pelo seu cumprimento, não é uma
instituição formada a partir de indivíduos que se organizam para esta finalidade, nem é
imposto de fora do convívio social, como se pudesse ser definido a priori. Mas é uma
condição ontológica na qual cada indivíduo já se reconhece enquanto tal, a partir da
qual se reconhece como uma subjetividade, isto é, de onde se constitui enquanto ser
humano, de onde pode se reconhecer como humano. Sendo este o único ente que pode
refletir sobre sua própria condição, é o único que pode justificar sua existência.
Acontece que esta relação política originária, em que Direito e violência se co-
pertencem, nada mais é que o modo-de-ser-impróprio que designamos como sendo traço
fundamental do ser humano, posto que este se caracteriza por ser ec-sistência e ser-com-
no-mundo. Desse modo, não há Direito, isto é, ordem política efetiva imposta e vigente
que não se caracterize por um fundamento mítico que instaura e mantém a vida
cotidiana, na qual cada ser humano se reconhece como tal. Este fundamento mítico foi
denunciado, também, por Jacques Derrida, na célebre obra Força de Lei
63.
Seguindo os passos deste autor, podemos dizer que o fundamento místico que
sustenta a autoridade que se encarrega da lei, tanto de sua inscrição quanto aplicação, é
a ficção que mantêm unidos o indivíduo e o Outro. O ser humano, enquanto erra,
sempre se relaciona de modo mediato, pois sempre há o Outro que condiciona e
antecede seu conviver com os outros seres humanos.
62 CARNIO, Henrique Garbellini. O direito e a política entre a obligatio e o bando. Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito na área de Filosofia do Direito e do Estado sob a orientação do Prof. Doutor Willis Santiago Guerra Filho. São Paulo, 2013. Pág. 80.
63 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone- Moisés. 2ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
A “segurança” que o modo-de-ser-impróprio garante ao ser humano, ao garantir
sua vida perante os demais, na esfera pública, na verdade encobre não só o manter-se na
errância, mas principalmente a violência que é necessária para manter esta. Pois a vida
que se instaura e promete garantir, através do uso exclusivo da violência “legitimada”, é
a forma de vida vigente em determinada época, e não a vida de cada ser humano em sua
singularidade
64. Aliás, é desta que o indivíduo deve abrir mão para se abrigar sob a
guarida da Lei, do Direito.
Tudo o que é resultado do ser humano e do seu convívio social diz respeito não
só às regras que devem reger a convivência humana, mas especialmente à
fundamentação do que constitui sua própria humanidade, de modo que esta, uma vez
(re)conhecida, possa ser devidamente garantida. A idéia de fundamento, que parece ser
inerente à tudo que diz respeito ao humano, pois este sempre ofereceu respostas para
suas questões fundamentais, as ficções de origem que se erigem em fundamentos
epocais que comandam o convívio social.
Reconhecer o caráter ficcional das instituições, como o Direito especialmente,
assim como o caráter ficcional do próprio ser humano não é muito eficaz para oferecer
melhores formas de vida em comum, se tal reconhecimento não for acompanhado de
uma compreensão mais autêntica do que é o próprio humano, e de sua relação com o
Direito.
Continuamos a seguir, no próximo capítulo, com estas mesmas questões
fundamentais, mas abordadas de modo diferente, não oposto ao que até aqui foi
defendido, mas complementar. Tentaremos pontuar, através da análise do dispositivo da
pessoa, que a (in)compreensão que o domina hodiernamente no Direito está
intimamente ligada ao fato de não se pensar as questões fundamentais aqui expostas,
principalmente no que diz respeito ao papel do Direito para a constituição do ser
humano e também a reciprocidade desta relação. Buscaremos mostrar que o paradoxo
que envolve o dispositivo da pessoa é resultado do modo-de-ser-impróprio, o qual
parece-nos que vem se alastrando cada vez mais desde suas origens mais significantes
para nós. E mostraremos, para isso, um caso singular e extremamente sintomático do
que consideramos um modo-de-ser-próprio, e como este se relaciona em relação ao
64 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone- Moisés. 2ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. Pág. 124-5.