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O que é um dispositivo?

No documento Joaquim Eduardo Pereira.pdf (páginas 65-70)

CAPÍTULO II O DISPOSITIVO DA PESSOA E SEUS PARADOXOS

2. O que é um dispositivo?

Antes de passarmos à investigação concernente ao dispositivo da pessoa,

convém traçarmos algumas considerações sobre o que entendemos por dispositivo.

Vamos seguir, de início, as indicações de Agamben e Deleuze a esse respeito, os quais

desenvolvem as ideias foucaultianas sobre o tema.

Dispositivo é um termo bastante usado por Foucault, especialmente no período

em que trata daquilo que chama de governabilidade ou governo dos homens e, embora

nunca tenha dado uma definição para o termo, ele se aproxima disso em uma entrevista,

da qual Agamben destaca três pontos principais:

1) É um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e não linguístico no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de segurança, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos.

2) O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre em uma relação de poder.

3) É algo de geral (um reseau, uma "rede") porque inclui em si a episteme, que para Foucault é aquilo que em uma certa sociedade permite distinguir o que é aceito como um enunciado científico daquilo que não é científico.93

92 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012. Pág. 533.

93 AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. Tradução de Nilcéia Valdati. Revista Ilha de Santa Catarina, 2º semestre de 2005. Pág. 9-10.

Um dispositivo é aquilo que entrelaça e perpassa tudo o que se produz no

convívio social, de modo que possibilite, no conviver, uma compreensão prévia mínima

entre aos atores sociais, sendo esta a condição de que se entendam. Os dispositivos não

estão à disposição dos seres humanos, como instrumentos que estes usam quando e

como querem para compreender algo.

O dispositivo é o que mediatiza e, assim, possibilita o encontro dos seres

humanos com as coisas de que se ocupam, construindo mundo. Neste sentido, Agamben

dá uma indicação valiosa, de que Foucault teria percebido na obra de seu professor,

Hyppolite, a importância do termo “positividade”, que Hegel tomava como o elemento

histórico, com toda sua carga de regras, ritos e instituições impostas aos indivíduos por

um poder externo

94

. Porém, Foucault daria ao termo, que mais tarde se tornará

dispositivo, uma visada mais afim com a virada pragmático-linguistica da filosofia que

indicamos, de modo que o poder externo que envolve os dispositivos não podem mais

ser identificados a um ente, seja ele qual for, mas sim ao solo comum que propicia e

condiciona a convivência humana, a língua.

Prosseguindo na genealogia do termo, Agamben diz que o termo dispositivo é

derivado de dispositio, termo que os padres latinos usam para traduzir o termo grego

oikonomia.

Oikonomia é o termo que em grego significa a administração, a gestão da casa.

Ao ser introduzido na teologia, este termo tem como função principal dar conta de um

problema delicado e dos mais importantes para o catolicismo, a economia da Trindade.

No entanto, não serve apenas para explicar esta, como também para fundamentar a idéia

de um governo divino providencial

95

.

Agamben desenvolve melhor esta ideia de oikonomia em outro lugar, no livro O

reino e a glória, onde o termo, entendido como o dispositivo que possibilita à fé cristã

cuidar do governo divino que pode oferecer aos cristãos a salvação, o faz a partir de

94 AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. Tradução de Nilcéia Valdati. Revista Ilha de Santa Catarina, 2º semestre de 2005. Pág. 10.

95 AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. Tradução de Nilcéia Valdati. Revista Ilha de Santa Catarina, 2º semestre de 2005. Pág. 12.

uma condição fundamental: a da divisão do poder. Este sempre aparece como dividido

entre um poder divino e um poder material

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.

Esta divisão do poder, contudo, não implica a uma exclusão recíproca. Muito

pelo contrário, o segundo poder, o material, está incluído no primeiro, o espiritual. Isto

devido ao fato deste poder ser perfeito, porém lhe faltar algo, que é a efetividade da

execução

97

. E a divisão entre eles não é casual, mas atende a um melhor funcionamento

da máquina governamental. Esta se mantém em movimento e com o mesmo

funcionamento, independentemente dos polos que se digladiam em torno do poder, ou

melhor, tendo como condição de possibilidade a divisão poder e sua manutenção em

tensões que nunca se resolvem.

A oikonomia, com a divisão do poder na tensão que poderíamos chamar

fundamento-efetividade, se estabelece como o pano de fundo em que se desenvolve toda

a cultura ocidental, o que deixa sem resposta, e até mesmo sem nem sequer ser

percebido, o problema político decisivo, pois de acordo com Agamben “o arcano central

da política não é a soberania, mas o governo, não é Deus, mas o anjo, não é o rei, mas o

ministro, não é a lei, mas a polícia – ou seja, a máquina governamental que eles formam

e mantêm em movimento”

98

.

Em consonância com o que desenvolvemos até agora, a oikonomia é o que se

presta a pré-encher o vazio, o espaço que existe na relação de subjetivação, da qual

sempre sobra o a que Lacan nomeou. A oikonomia é o que torna este espaço vazio

“habitável”, ao (re)introduzir o cotidiano, a força da língua no Lugar da angústia. É o

que permite, assim, que os seres humanos sejam guiados para o sentido, para o que faz

sentido, que não é exatamente um Outro determinado, mas a relação com o lugar do

Outro, em que qualquer sentido é tolerado e, até, justificado; só não o é, a falta-de-

sentido.

Como adverte Deleuze, o dispositivo é

antes de mais uma meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza

96 AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo

sacer, II. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011. Pág. 115.

97 AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo

sacer, II. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011. Pág. 117.

98 AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo

diferente. E, no dispositivo, as linhas não delimitam ou envolvem sistemas homogéneos por sua própria conta, como o objecto, o sujeito, a linguagem, etc., mas seguem direções, traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se aproximam ora se afastam uma das outras. Qualquer linha pode ser quebrada – está sujeita a variações de direcção – e pode ser bifurcada, em forma de forquilha – está submetida a derivações. Os objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como que vectores ou tensores.99

O dispositivo, definitivamente, não é algo que pode ser instrumentalizado pelo

ser humano, mas é o que conforma o processo de subjetividade, condiciona a criação de

mundo. É a rede em que o ser humano é chamado a co-responder ao ser, percebendo

isso ou não. Neste sentido, Agamben:

generalizando posteriormente a já amplíssima classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panoptico, as escolas, as confissões, as fabricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e - porque não - a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar capturar.100

Os dispositivos não podem ser compreendidos como objetos a partir dos quais o

ser humano se deixa capturar no processo de subjetivação. Os dispositivos são

processos em que os objetos já se apresentam aos seres humanos como objetos,

solicitando os primeiros, no encontro em que dá-se o ser.

99 DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo. In.: O mistério de Ariana. Ed. Vega – Passagens . Lisboa, 1996. Tradução e prefácio de Edmundo Cordeiro.

100 AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. Tradução de Nilcéia Valdati. Revista Ilha de Santa Catarina, 2º semestre de 2005. Pág. 13.

O processo de subjetivação não é algo que se dá de uma única vez, mas é um

processo infinito durante a finitude do Dasein, que se desenrola por toda sua existência.

Os dispositivos são tudo o que vem ao encontro do Dasein neste processo, que lhe

oferece a rede da língua a que este se sujeita, ou melhor, confirma a sua captura em

forma de sujeição (subjetividade). Dasein enquanto subjetividade e dispositivo estão

intrinsecamente conectados, não são partes que se relacionam, mas se tornam “partes”,

tornam-se o que “são” no relacionar.

Pertencemos a dispositivos e neles agimos. À novidade de um dispositivo em relação aos que o precedem chamamos actualidade do dispositivo. O novo é o actual. O actual não é o que somos, mas aquilo em que nos vamos tornando, aquilo que somos em devir, quer dizer, o Outro, o nosso devir-outro. É necessário distinguir, em todo o dispositivo, o que somos (o que não seremos mais), e aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do actual. A história é o arquivo, é o desenho do que somos e deixamos de ser, enquanto o actual é o esboço daquilo em que vamos nos tornando. Sendo que a história e o arquivo são o que nos separa ainda de nós próprios, e o actual é esse Outro com o qual coincidimos desde já.101

O Dasein é eminentemente histórico, no sentido de que ele mesmo, enquanto

finitude, é um desenrolar histórico, em que vai se tornando o que é. Porém, este tornar-

se o que é, é o que caracteriza o modo-de-ser-impróprio, no qual o Dasein vem a ser

algo, uma subjetividade, em que se escamoteia sua condição fundamental de não-ser.

É por isso que o Dasein, enquanto subjetividade, sempre é Outro, só se constitui

enquanto unidade, estando sujeito a um Outro, a uma esfera que o transcende em sua

falta constitutiva, onde pode pré-encher esta. Mas, deste modo, o ser humano nunca

pode ser “si mesmo”, no que designamos ser ele, neste âmbito, a-gente. Dispositivo é

tudo aquilo em que este processo se dá, tudo o que permite o sujeitar-se e, portanto,

tudo o que propicia ao Dasein manter-se na errância e, mais ainda, proporciona às

relações que aí se desenvolvem, em sua forma sempre binária (de oposicionalidade), um

fundamento – que é a própria forma do relacionar – a partir do qual as relações

encontram sentido.

101

DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo. In.: O mistério de Ariana. Ed. Vega – Passagens . Lisboa,

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