CAPÍTULO I – O QUE (NÃO) SÃO OS DIREITOS HUMANOS
3. Verdade e (im)possibilidade de uma vida autêntica
que o fato de a existência ser um exílio constitui, no Ocidente, um lugar comum, é tão
significativo que poderia resumir por si só uma boa parte de nossa tradição
grecojudeocristiana
30. Mas indica também que Heidegger conseguiu radicalizar esta
experiência, o que significa que possibilitou pensar para além deste modo,
eminentemente metafísico. E isto possibilitou que pensasse também, consequentemente,
a verdade para além do sentido comum que temos dela como adequação, correlação.
A despeito de todas as diferenças que existem entre a metafísica clássica – da
antiguidade à Idade Média – e a metafísica da subjetividade forjada na modernidade,
elas compartilham a mesma forma de conceber a verdade. Esta é encarada
fundamentalmente como adequação, como conformidade. Isto porque tanto no primeiro
caso, em que a verdade é concebida como adaequatio rei ad intellectum, como no
segundo em que parte-se do pressuposto da essência humana enquanto subjetividade, o
que está em jogo é verificar a adequação do ente a ser conhecido com o seu
fundamento, ou seja, o que lhe atribui sua essência.
Esta concordância só é possível porque se pressupõe uma ordem dentro da qual
aquela deve viger. Se no primeiro caso esta ordem está relacionada à ideia de criação,
ou seja, de um ente primeiro ou supremo a partir do qual são criados os demais, no
segundo por não se sustentar mais a idéia deste ente primeiro, ou melhor, por não se
sustentar mais a possibilidade de conhecê-lo e, então, sua relação com os demais entes,
nem por isso consegue-se romper com uma ordem que condiciona, a priori, o processo
de conhecimento. Só que agora “em lugar da ordem da criação teologicamente, surge a
ordenação possível de todos os objetos pelo espírito que, como razão universal
(mathesis universalis), se dá a si mesmo sua lei e postula, assim, a inteligibilidade
imediata das articulações de seu processo (aquilo que se considera como ‘lógico’)”
31.
A verdade como adequação, portanto, tem como condição de possibilidade
aceitar como pré-suposta uma ordem a partir da qual seja possível verificar o
conhecimento que o ser humano expressa dos entes com que se relaciona com o
30
NANCY, Jean-Luc. La existencia exilada. Traducido por Juan Gabriel López Guix Archipiélago. Cuadernos de crítica de la cultura Barcelona, Nº 26–27, 1996. Pág. 34.
31 HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade. In.: Os pensadores. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. Pág. 156.
conhecimento desta ordem, ou seja, com o que de antemão propicia tanto o
conhecimento que o ser humano tem de si mesmo quanto o modo, a partir deste, como
os entes se apresentam a ele, seja como coisas criadas que ele tem que (re)conhecer a
essência da criação, ou como coisas à sua disposição. Esta ordem, então, será nada
menos que a consequência de ser humano, ou melhor, o Dasein, enquanto ser-no-mundo
ter como essência a ec-sistência. Podemos concluir, então, que o “‘caráter de sujeito’ do
próprio Dasein e dos outros é determinado existenciariamente, isto é, a partir de certos
modos de ser”
32.
Isto que Heidegger chama de “caráter de sujeito” é o que poderíamos denominar
de subjetivação, ou seja, o modo pelo qual o Dasein se reconhece como um “eu”, não
necessariamente apenas no sentido que nos é mais comum, de uma subjetividade
consciente e autosuficiente, mas de modo mais genérico, antes de se poder atribuir-lhe
este conteúdo que assume na modernidade, por exemplo. Trata-se de perceber o
processo a partir do qual o indivíduo vai se compreender, independentemente de qual é
esta compreensão, se de um indivíduo que é anterior à sociedade ou que só se
compreenda enquanto membro de uma comunidade. O importante é destacar que, desde
sempre, o Dasein já se compreende, o que equivale a dizer que ele já compreende uma
ordem, algo que transcende sua compreensão do que vem a seu encontro no mundo, e
isto que propicia e condiciona este processo de subjetivação é o que vai estabelecer o
âmbito em que a verdade é tomada como adequação, como o que mantém a coerência e
o sentido desta ordem, sem o que tudo seria caos, isto é, não faria sentido.
A condição para que se possa afirmar uma verdade, ou melhor, um critério a
partir do qual pode-se dividir os entes, os fatos, as expressões, enfim, julgar entre o
verdadeiro e o falso, é que se possa, aprioristicamente, poder separar a verdade da não-
verdade, ou seja do que não se conforma com o verdadeiro. Porém, algo mais precisa
ser dito a respeito disso. Isto acontece assim, é inerente à condição do Dasein, como
expusemos, pois este se movimenta desde sempre neste âmbito, no qual se compreende
neste processo de subjetividade, mas também é propenso a se manter nele, não sair disto
que lhe oferece sentido, segurança, critério para a verdade e a não-verdade, ou seja, para
poder escolher.
32 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas: Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012. Pág. 363.
Quando o Dasein se permite permanecer neste âmbito, está se deixando levar
pelo que Heidegger diz ser o caminho mais fácil, o da impropriedade, pois
de imediato o Dasein está no mundo-com medianamente descoberto. De imediato eu não ‘sou’ ‘eu’, no sentido do si-mesmo próprio, mas sou os outros no modo de a-gente. A partir desta e como esta sou dado ‘de pronto’ a ‘mim mesmo’. De pronto, o Dasein é a-gente e no mais das vezes assim permanece.33.
Isto que é designado como “a-gente” é o que se concretiza em cada época
daquela ordem que mostramos ser o que possibilita e condiciona a subjetivação em que
o Dasein se reconhece, antecipando a compreensão do Ser, o que lhe oferece um ponto
de partida em que essa pré-compreensão é o que encobre a possibilidade de permanecer
no âmbito hermenêutico em que se pode pensar-o-Ser. Enquanto o Dasein se afasta do
mistério e se dirige para a realidade corrente, corre de um objeto da vida cotidiana para
outro, é o que Heidegger chama de “errar”. E o principal de se ter em mente é que
o homem erra.O homem não cai na errância num momento dado. Ele somente se move dentro da errância porque in-siste ek-sistindo e já se encontra, desta maneira, sempre na errância. A errância em cujo seio o homem se movimenta não é algo semelhante a um abismo ao longo do qual o homem caminha e no qual cai de vez em quando. Pelo contrário, a errância participa da constituição íntima do ser-aí à qual o homem historial está abandonado. A errância é o espaço de jogo deste vaivém no qual a ek- sistência insistente se movimenta constantemente, se esquece e se engana sempre novamente. A dissimulação do ente em sua totalidade, ela mesma velada, se afirma no desvelamento do ente particular que, como esquecimento da dissimulação, constitui a errância34.
Assim como o Dasein está desde sempre se movimentando na errância, ele não
pode também superá-la de uma vez por todas, pois sempre já está inserido nesta
dimensão antepredicativa em que se compreende enquanto compreende o Ser. Esta
dimensão é explicitada e inscrita na vida social, na vida comum que é regida pelo a-
gente – que não é alguém em específico, nem a soma de todos, mas esta instância
33 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas: Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012. Pág. 371.
34 HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade. In.: Os pensadores. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. Pág. 167.
anterior de subjetivação – o que se dá de diferentes modos e de acordo com cada época,
na Religião, na Moral, no Direito.
Especialmente no que tange ao tema que propomos discutir, ou seja, os Direitos
Humanos, já podemos adiantar um dos pontos mais relevantes que tomamos como
pressuposto a ser (re)pensado durante todo o trabalho: o Direito é – mais ainda após a
modernidade, em que o indivíduo tomado como anterior a qualquer forma de vida social
leva à ruína a metafísica clássica e seus mitos e grandes narrativas capazes de
fundamentar a vida-em-comum – inerente ao Dasein, à sua condição de ser-no-mundo.
O Direito é já uma interpretação desta ordem que antecipa a compreensão, ou seja,
constitui um modo – hoje, portanto, o principal – de se inscrever tal ordem, isto é
explicitar o ser-no-mundo, dando-lhe objetividade e, principalmente, por oferecer o(s)
critério(s) a partir do(s) qual(is) se pode dividir as ações e julgamentos em verdade e
não-verdade, dando-lhe uma formação indissociável da violência.
Ora, enquanto a questão dos Direitos Humanos girar em torno de se buscar
fundamentar-efetivar o Direito, de modo a lhe conferir legitimidade, o que se está a
fazer é permanecer neste âmbito ôntico, em que a verdade é tomada como adequação e
o que pertence à não-verdade fica exposto à violência para que não coloque em risco a
verdade, isto é, o Direito. Mais ainda, enquanto se buscar legitimar e (re)forçar o Direito
a partir dos Direitos Humanos, mais se afunda neste modo-de-ser impróprio, em que
discursos para se promover a liberdade e proteção das pessoas não conseguem atingir o
objetivo.
Como será abordado no decorrer do trabalho, um dos grandes problemas é
justamente apostar nesta concepção de “pessoa”, a qual esperamos já ter deixado
entrever que só se sustenta a partir de sua inscrição na vida cotidiana, em conjunto e em
relação aos demais, precipuamente no Direito, de modo que se buscar neste a liberdade
é um paradoxo. Podemos afirmar agora, ao menos temporariamente, que a pessoa,
enquanto resultado da subjetivação a que o Dasein já está desde sempre inserido, nada
mais é que o dispositivo através do qual se impede o acesso àquele, à sua abertura e
incompletude, o que desenvolveremos melhor.
Por hora ficamos satisfeitos em poder mostrar que isto corrobora a tese de
Heidegger de que a verdade como adequação não concerne à essência da verdade. Esta
deve ser buscada neste âmbito mais essencial, ou melhor, fora deste âmbito em que
impera a errância. Assim, nos diz que a essência da verdade é a verdade da essência. E a
verdade da essência é que esta é ec-sistente, portanto, toda tentativa de apreendê-la já
implica sua perda e uma recaída no âmbito apofântico. Heidegger vai dizer, ainda que a
essência da verdade é a liberdade, o que temos que compreender não como a liberdade
da pessoa, a qual já sempre está sujeita, mas justamente a possibilidade de “destruir”
esta, se manter, isto é, demorar no âmbito em que não há sujeição, pois só aí o Dasein é
livre.
O lugar da liberdade, portanto, não pode ser o da errância, pois não pode
suportar nenhuma identificação do Dasein, este prolonga-se no aberto que o constitui, o
qual é, a todo momento, preenchido devido a sua condição de ser-no-mundo. Então,
quando o Dasein descobre propriamente o mundo e dele se aproxima, quando ele abre para si mesmo seu próprio ser, esse descobrir de ‘mundo’ e abrir do Dasein sempre se efetua como remoção de encobrimentos e de obscurecimentos, como quebra das contrafações com que o Dasein se fecha para si mesmo35.
Quando se fala, então, em “dignidade da pessoa humana”, podemos identificar
uma expressão no mínimo problemática. Pois a “pessoa” é um determinado modo de
subjetivação, o que restringe a humanidade ao seu aspecto de errância. É para este tipo
de paradoxo que queremos chamar a atenção e mostrar o quão urgente é trazer à
discussão estas questões.
E ao partirmos desta compreensão da essência da verdade como liberdade,
entendendo esta como a possibilidade de problematizar o modo de subjetivação que
vige em nossas sociedades ditas democráticas, não podemos continuar apostando no
Direito e na sua forma como o caminho para a redenção do Dasein, ou seja, para se
recolocar a questão de sua humanidade. Esta deve ser buscada não como negação do
Direito, pois negar o Direito posto nada mais seria que, implicitamente, recolocá-lo com
outro conteúdo, mas que se mantém nesta forma em que institucionaliza a violência,
mas não oferece possibilidade de superá-la.
Daí que entendemos ser imprescindível para uma abordagem em relação aos
Direitos Humanos em que estes possam oferecer alternativas para que a subjetivação do
35 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas: Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012. Pág. 371-373.