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O direito como ficção

No documento Joaquim Eduardo Pereira.pdf (páginas 35-44)

CAPÍTULO I – O QUE (NÃO) SÃO OS DIREITOS HUMANOS

4. O direito como ficção

Diante de tudo que já consideramos podemos agora pensar o Direito de uma

forma mais adequada ao pano de fundo em que nos movemos, o de buscar (re)pensar o

Humano do ser humano. Já apontamos que este caminho deve ser traçado na direção em

que seja possível superar a metafísica, isto é, que seja possível pensar o mais

fundamental de ser pensado, o Ser. E justamente optamos por escrever “pensar-o-Ser”, e

agora podemos explicitar melhor estas questões.

Escrevemos desta maneira para que fique claro que só pensamos, realmente,

quando nos movemos no âmbito em que perguntamos pelo Ser, pois do contrário

estamos presos à errância e, por mais que possamos raciocinar e calcular muito aí, não

podemos afirmar que pensamos. Não que o pensar seja contrário ao calcular e

raciocinar, mas simplesmente estão em âmbitos diferentes, aquele diz respeito ao plano

hermenêutico ou ontológico, enquanto estes dizem respeito ao plano ôntico. Já

mostramos que somente no plano hermenêutico é que é possível o Dasein se situar no

aberto a partir do qual ele já se constitui e, assim, se liberar desta constituição em que

ele desde sempre já se compreende.

Para acessar a verdade em sua essência enquanto liberdade, como dizemos, é

preciso um esforço para acessar este âmbito, destruindo – isto é, desativando – as

próprias pré-compreensões. Porém, isto não significa instaurar um espaço em que o

Dasein possa estar sempre livre, numa espécie de anomia em que o Direito não

existisse. Pois, negar o Direito no sentido de opor-se ao que está estabelecido é muito

diferente do que buscar desativá-lo. Marcar esta diferença é o principal intento nos

esforços aqui empreendidos, pois trata-se de buscar possibilidades de se romper com a

“lógica do Direito”, o seu modo-de-ser que é existencial e nos concebe, desde que nos

compreendemos, na errância.

Negar os dispositivos vigentes e propor modificações ou até dispositivos novos é

manter-se no âmbito ôntico, da errância, e, assim, perpetuar a violência inerente a este

modo-de-ser originário que se estabelece e nos constitui enquanto “bando”. Buscar

desativar os dispositivos vigentes implica em desativar os modos de subjetivação que

imperam em determinada época e lugar – hoje, o mundo todo, globalizado – isto é,

desativar e superar a própria noção de Eu, de sujeito ao desativar o que se inscreve

como condição de possibilidade de subjetivação, do referencial a partir do qual esta se

dá.

Pensar-o-Ser é colocar-se neste âmbito que é não anterior ou posterior à

existência, ao cotidiano em que nós já nos compreendemos, mas diferente. Por isso

optamos por escrever esta expressão deste modo, pois pensar é transcender a

subjetivação a partir da qual nos compreendemos e, portanto, que nos possibilita crer

em sentidos, que nos oferece o sentido para as coisas, para a vida. Pensar só é possível

no plano do Ser, de questionar o Ser, e não quando o Dasein se mantém no plano ôntico,

em que a pergunta pelo Ser cede lugar a um ente, que ocupa este lugar, o qual é

identificado como o ente mais essencial.

E como desativar os dispositivos implica em abrir mão desta segurança, encarar

o medo mais fundamental que é o medo da falta de sentido como Nietzsche percebeu,

isto requer não só sabedoria, mas acima de tudo coragem. Coragem que este ressalta ser

fundamental para reverter a metafísica platônica

36

e que Agamben

37

reconhece ser

necessária para pensar(-o-Ser), posto que isto requer abolir as seguranças metafísicas

que tornam a ec-sistência mais fácil ao lhe imputar um sentido, em vez de encará-la, de

se livrar de todas as crenças que se inscrevem no lugar do Vazio que nos constitui

enquanto seres humanos.

Como já indicamos, devido à própria condição de finitude do Dasein, não é

possível ao ser humano superar de uma vez por todas os dispositivos, mas é

fundamental que seja sempre possível desativá-los, como diz Agamben, profaná-los, já

que profanar implica em neutralizar aquilo que profana, daquilo que separa, que institui

o modo-de-ser enquanto bando. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível

e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso, em uma operação política que não

tem a ver com o exercício do poder que é assegurado remetendo-o a um modelo

sagrado, ao ente que ocupa o lugar do Ser, mas uma operação política que desativa os

dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que havia confiscado

38

.

“Profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a

36

Conforme lição do professor Osvaldo Giacoia Jr.: “No fundamental, o gesto metafísico do Sócrates platônico importaria em renegar o que é terrível, sombrio, trágico, na existência, enquanto a reversão de Nietzsche procuraria se apropriar e sublimar o caos incandescente dos mais temíveis abismos da alma humana: “admitir muitos estímulos e deixá-los atuar profundamente, muito deixar-se arrastar de lado, quase até o perder-se, sofrer muito e – apesar disso – impor sua direção geral” (Fr. póstumo do verão de 1883, VII 7 (253)); grandeza, fortaleza significa, em última instância, elasticidade, graça, força plástica. (...)Eis, então, enunciado o estrato mais fundamental do projeto de reversão do platonismo: não o retorno puro e simples ao ideal grego pré-socrático, nem a simples retomada da retórica e da sofística, contra Sócrates e Platão, mas a superação da perspectiva da vingança, do juízo e do carrasco. In.: O Platão de

Nietzsche. O Nietzsche de Platão. Cadernos Nietzsche 3, pág. 23-36, 1997.

37

Agamben, falando sobre a subjetivação em que Genius ocupa o lugar da transcendência, e que rompe com a pretensão do Eu de bastar-se a si mesmo, trazendo à tona sua condição essencial de ec-sistência, vai dizer: “Por isso, o encontro com Genius é terrível. Se, por um lado, é poética a vida que se leva na tensão entre o Eu e Genius, por outro é pânico o sentimento de que Genius venha a exceder-nos e superar- nos sob todos os aspectos, que nos aconteça algo infinitamente maior do que nos parece ser suportável. Por isso, a maioria dos homens foge aterrorizada frente à parte impessoal própria, ou procura, hipocritamente, reduzi-la à própria estatura minúscula. Nesse caso, pode acontecer que o impessoal rejeitado volte a aparecer em forma de sintomas e tiques ainda mais impessoais, de trejeitos ainda mais exagerados. Mas tão ridículo e fátuo é também quem vive o encontro com Genius como um privilégio , o Poeta que faz pose e se dá ares de importante, ou, pior ainda, agradece, com fingida humildade, pela graça recebida. Frente a Genius, não há grandes homens; todos são igualmente pequenos. Alguns, porém, são suficientemente inconscientes a ponto de se deixarem abalar e atravessar por ele até que caiam aos pedaços. Outros, mais sérios, mas menos felizes, rejeitam personificar o impessoal, emprestar os próprios lábios a uma voz que não lhes pertence.

Há uma ética das relações com Genius que define a classe de cada ser. A classe mais baixa inclui aqueles que – e às vezes se trata de autores celebérrimos – contam com o próprio gênio como se fosse um bruxo pessoal (...). Muito mais amável e sóbrio é o gesto do poeta que, pelo contrário, menospreza esse sórdido cúmplice, porque sabe que ‘a ausência de Deus nos ajuda’”. In.: Profanações. Tradução e apresentação de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. Pág. 18-19.

38

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução e apresentação de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. Pág. 68.

fazer delas um uso novo, a brincar com elas”

39

. Este uso novo, portanto, não pode se

manter no âmbito apofântico, mas deve se abrir para o pensar, que só pode ser pensar-o-

Ser.

O que indicamos aqui como a imbricação entre a coragem e a sabedoria

necessárias para possibilitar desativar os modos de subjetivação que imperam e mantêm

os homens na errância, encobrindo a dimensão que chamamos hermenêutica em que o

Dasein se deixa pensar-o-Ser, é a coragem de encarar com sabedoria a nossa condição

humana enquanto ec-sistência, o que implica a necessidade de levar às últimas

consequências o fato de tudo o que nos constitui enquanto subjetividades, tudo o que dá

sentido às nossas vidas e possibilita justificá-la enquanto existência e as ações inerentes

à sua manutenção e salvaguarda, é restrito ao que, a partir da psicanálise

40

, podemos

designar como Imaginário.

O problema não é estarmos neste âmbito e nos constituirmos nele ou o que se

inscreve e se cria como Imaginário constituírem, como Nietzsche

41

diz, consolos

metafísicos para que consigamos suportar a existência. Assumimos que esta é a

condição essencial do Dasein, a errância, portanto o problema é não perceber isto e,

assim, não possibilitar vias mais autênticas para se superar o modo de viver impróprio

em que nos encontramos e que nos afigura mais fácil.

Não se pode perder de vista que o Imaginário, para Lacan, é a instância em que,

simbolicamente, se testemunha o Real e o inscreve, o institucionaliza, o torna presente

39

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução e apresentação de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. Pág. 75.

40 Para o que aqui pretendemos, buscar não só um acesso mais essencial ao que constitui a humanidade do homem, mas como esta é condicionada e, reciprocamente, condiciona o Direito, nos valemos especialmente de alguns apontamentos feitos por Lacan. Não se trata de ‘aplicar’ conceitos seus ao Direito, mas de dialogar com este pensador que se valeu muito destas questões fundamentais (re)colocadas por Heidegger para consolidar e desenvolver ainda mais a obra freudiana. Cf. STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’. 4ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. Pág. 141 e ss.

41 Nos valemos aqui, especialmente, de palestra ministrada por Osvaldo Giacoia Jr. em que este analisa a importância e força do pensamento de Nietzsche no século XX. Explica que Nietzsche proclama a morte de Deus, que o homem moderno o matou por não aceitar subordinação, guiado por um desejo de liberdade. Porém, este mesmo homem é hipócrita, e deseja, também, um absoluto que o justifique, que lhe dê sentido, redenção, salvação, mesmo que seja a idéia de ‘felicidade’ que, então, passa a imperar no ocidente. A coragem para superar estes consolos metafísicos é a que Nietzsche diz ser inerente ao seu “além do homem”, o que quer dizer não um homem fortalecido, melhorado, mas a possibilidade de encarar a existência a e a vida sem as próteses que o homem careceu até então para poder suportar a existência. In.: GIACOIA JR., Osvaldo. O impacto de Nietzsche no século XX. Disponível no site www.youtube. com/watch?v=H-osDYnX3w0.

para o ser humano

42

. O que ele concebe como Real podemos relacionar ao que

designamos acima como sendo o que transcende o ser humano e lhe dá sentido, aquilo a

partir do que este se constitui, posto que é fundamentalmente ec-sistência. Só que o

homem não pode ter acesso a este Real, devido a sua condição de finitude, então o que

dele ‘sabe’ é o que se institui, na e pela linguagem (ou seja, o Simbólico) como

Imaginário. Enquanto o homem postular que o Imaginário é a expressão do Real através

do Simbólico, sem questionar a própria relação entre estes três pontos, vai se manter no

âmbito metafísico da errância.

Esta tríade – Real, Imaginário e Simbólico – que vai sustentar toda a elaboração

de Lacan ao longo de sua vida, até desembocar no ‘nó borromeano’, já está presente em

suas primeiras lições. O que dela nos interessa é, além de permitir-nos mostrar a

essência do ser humano enquanto ec-sistência, mostrar que o processo de subjetivação,

independentemente de como se dê, é sempre – apenas – “uma” possibilidade, mas que

esta acaba se inscrevendo e institucionalizando como necessidade, ou seja, como “a”

possibilidade.

O que emerge desta tríade como condicionante e condicionado pelo processo de

subjetivação, Lacan denomina como O Outro, e esclarece:

O Outro, no sentido em que o introduzimos, provido desse O maiúsculo, adquire valor notório não por ser o Outro entre todos, nem tampouco por ser o único, mas apenas porque poderia não haver nenhum e, em seu lugar, haver apenas um conjunto vazio. É isso que o designa como o Outro.43

Esse grande Outro a partir do qual o ser humano se compreende enquanto

subjetividade – enquanto um – é justamente o que o mantém na condição de errância, e

isto quer dizer que o mantém no que acima indicamos como sendo a condição política

originária como Bando, de onde emana toda a violência sem a qual – acredita-se – seria

impossível a vida-em-comum. E isto não ocorre apenas na metafísica que designamos

como clássica ou ingênua, mas de modo ainda mais preocupante, pois menos

perceptível, na metafísica moderna, pois “mesmo quando o Deus que fala levantou-se

42

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Tradução: Sergio Laia; Revisão: André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. Pág. 107.

43

LACAN, Jacques. O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Tradução: Vera Ribeiro; preparação de textos: André Telles; Versão final: Angelina Harari e Jesús Santiago. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. Pág. 346.

para ir embora, ao menos para alguns, o assento continuou a ser do Outro, como aquele

que situa o campo unificador e unificado que tem um nome para os que pensam”

44

.

O que queremos enfatizar é que o preço que se paga para se viver sob um

processo de subjetivação, que é justamente a submissão ao Outro e à violência

intrínseca à sua instituição e manutenção, como mostrou brilhantemente Nietzsche

45

, em

que o ser humano assume essa dívida contraída para ser-sujeito, ainda é preferível ao

fato de não poder contar com os consolos metafísicos daí resultantes

46

. Não dizemos

“preferível” no sentido de se tratar de uma escolha consciente, pois ao fazer esta escolha

já estaríamos presos a uma subjetivação que a possibilitaria. E esse modo de

subjetivação ocidental que se estrutura a partir da ideia da individualidade de cada ser

humano, com os traços gregos, romanos e cristãos que o formaram, é-nos o mais difícil

de perceber e, portanto compreender de modo essencial.

O que ocorre é que é preciso que alguma coisa anuncie o sujeito antes de ele se agarrar ao um Outro. Essa alguma coisa está aí na condição mais simples, a do mesmo um unário a que, na hipótese estrita, reduzimos aquilo a que ele pode se agarrar no campo do Outro.

Há disso um modo, o mais simples, que escrevi ali hoje: o de esse sujeito contar a si mesmo como um. É preciso admitir que isso é tentador. Aliás, é tão tentador que não há um só entre vocês que não o faça. Por mais psicanálise que tenham enfiado na sua cabeça, não há nada que se possa fazer. Vocês se acreditam um há muito tempo. E cabe dizer que têm fortes razões para isso.

A mim, evocar esse um mais me faria vacilar a ponto de me fazer cair (...) na lamentável fraqueza de lembrar que, de todo modo, vocês são incapazes de compreender, porque eu também sou, isto é, que existem no mundo

44

LACAN, Jacques. O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Tradução: Vera Ribeiro; preparação de textos: André Telles; Versão final: Angelina Harari e Jesús Santiago. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. Pág. 333.

45

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

46

Como Lacan percebe: “Entre a relação imaginária e a relação simbólica, há toda a distância que há na culpa. É por isso, como a experiência mostra a vocês, que a culpa é sempre preferida à angústia. In.: LACAN, Jacques. Nomes-do-Pai. Tradução: André Telles; revisão técnica: Vera Lopes Besset. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. Pág. 33.

zonas em que o objetivo da religião é evitar esse um Outro.47

A radicalidade da imbricação entre coragem e sabedoria que propomos é a

coragem de pensar-o-Ser, justamente o que a metafísica deixou como impensado, uma

vez que tem como característica principal que permeia todas as suas feições, tomar o

Outro pelo Ser, como se este pudesse ser objetiifcado, acessado, conhecido pelo

homem. Portanto, por mais que se busque mais e melhores conhecimentos que

proporcionem ao homem conhecer melhor, tanto a si mesmo quanto o mundo à sua

volta, é já manter-se no âmbito metafísico em que já se pressupõe a existência de um

sentido a ser descoberto ou a possibilidade de se estabelecê-lo. Antes de partir do Outro

para buscar respostas, é preciso problematizar o Outro, ou melhor, a relação em que este

e o ser humano se co-pertencem, a qual originariamente é encoberta. Como lembra

Heidegger:

A vontade de saber e a curiosidade de explicações jamais nos conduzem a uma questão de pensamento. A vontade de saber já é sempre a pretensão disfarçada de uma autoconsciência que remete para uma razão confiante em si mesma e à sua racionalidade. O querer saber não quer esperar pelo que é digno de se pensar.48

Faz-se necessário ir além deste modo em que se pré-supõe um Outro, ou seja,

prescindir da possibilidade de compreender e explicar a vida, as coisas, tudo o que

acontece, para problematizar esta própria possibilidade, para perceber que qualquer

explicação só é possível se se aceita a priori um Outro a partir do qual ela possa fazer

sentido, mas aí já se perde, encobre-se o âmbito em que este Outro é tomado como

condição de possibilidade. Lacan oferece como outra possibilidade o Budismo. Nós nos

contentaremos em mostrar não só que há outras possibilidades, que é possível desativar

esta relação originária em que desde sempre já nos compreendemos e, especialmente,

como é primordial manter sempre aberta a possibilidade para se preservar, de modo

autêntico, a humanidade do homem.

47

LACAN, Jacques. O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Tradução: Vera Ribeiro; preparação de textos: André Telles; Versão final: Angelina Harari e Jesús Santiago. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. Pág. 351.

48

HEIDEGEER, Martin. De uma conversa sobre a linguagem entre um pensador e um japonês. In.: A

caminho da linguagem. Tradução: Emmanuel Carneiro Leão. Petrópoles, RJ: Vozes; Bragança Paulista,

Se trata-se de superar a condição ôntica, não é possível manter-se no âmbito da

errância em que o Outro fundamenta (um)a subjetivação, mas superar qualquer tipo de

relação dicotômica que se apresente como consolo metafísico. Com Heidegger podemos

vislumbrar a possibilidade de se distanciar deste tipo de (não) pensamento que não só

pressupõe o Outro como também sua representabilidade, através de um salto, o qual,

portanto, deve-se dar num “abismo” (sem-fundamento), no qual poderemos saltar e nos

abandonarmos

49

. Abandonarmos-nos nesta relação em que já estamos, já fomos

admitidos, onde dá-se o presentar do Ser, pois só assim podemos tomar o Outro que se

nos apresenta como uma possibilidade, mais ainda, como uma ficção.

Para sermos mais exatos, o Outro é a instância, o lugar a partir do qual cada ser

humano compreende-se como um, e esta relação que é originária, condição existencial

do ser humano, é uma relação que tem um caráter ficcional. Como mostra Willis

Santiago Guerra Filho, o direito começa assim que começa a vida em sociedade

50

, e não

só o Direito, como a religião e tudo o mais que é resultado da vida em sociedade, são

ficções coletivas que se inscrevem no próprio viver-em-comum, são ficções que criam

as subjetividades e, ao mesmo tempo, são (re)criadas por elas. Dizer que o Direito tem

um caráter ficcional não é dizer que não seja uma realidade, muito pelo contrário, pois

O mundo da ficção é um mundo de possibilidades reduzias, onde não se pode saber sobre o que não nos é dado a conhecer pelos responsáveis por sua criação. Existir como uma ficção é existir menos do que o que existe realmente, pois é nesta última forma de existência, e não naquela, em que logicamente tudo pode acontecer, desde que não implique em contradição com o que já passou à existência, saindo do estado de mera possibilidade para aquele de atualidade, enquanto a coerência narrativa, a consistência entre o ocorrido antes e depois (...) seria a um

49 HEIDEGGER, Martin. Identidade e Diferença. Tradução: Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. Pág. 45 e 51.

50 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ficções de Origem e o Direito como Ficção. Tese de Livre- Docência apresentada ao departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo. Pág. 134. Em suas palavras: “E quando teria começado o direito? Assim que começamos nós também. ‘Ubi societas, ibi jus’ (onde há sociedade, há direito), diziam os antigos romanos, pais de nosso direito. E ‘ubi homini, ibi societas’, podemos dizer, parafraseando-os. O direito, nós, a sociedade, a religião, a ética, a política como teria começado tudo isso, que agora se encontra tão ameaçado de chegar ao fim? Para dar uma resposta, em todas as épocas e em consonância com a época, criou-se ficções, ficções de origem, de natureza mitológica, religiosa, artística, científica, jurídica, ou um amálgama de

No documento Joaquim Eduardo Pereira.pdf (páginas 35-44)