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CAPÍTULO 4 – OBESIDADE E MODELOS ESTÉTICOS IDEAIS

4.1 ANOREXIA E BULIMIA

A anorexia (inanição provocada) e a bulimia (alimentar-se compulsivamente e provocar vômitos) estão fortemente ligadas e correlacionadas. Tanto na anorexia como na bulimia – que são distúrbios psicológicos –, os indivíduos

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In “O Peso Social da Obesidade”. Tese de Doutorado, Porto Alegre, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Serviço Social, junho de 2001, p. 52.

tornam-se obcecados com a alimentação e apresentam uma distorção de sua imagem corporal.

Tais transtornos alimentares, além de comumente afetar adolescentes e jovens, pode envolver outros grupos ocupacionais, como modelos, atrizes, atletas, bailarinas e jóqueis, em que são comuns as dietas compulsórias e a necessidade óbvia de se manterem no chamado “peso ideal”, que geralmente vêm acompanhados da pressão pelo bom desempenho de ordem profissional.

A vulnerabilidade para desenvolver um transtorno alimentar envolve também aspectos pessoais, ou seja, traços de personalidade (perfeccionismo, rigidez, impulsividade, entre outros) em indivíduos com baixa auto-estima, que se sentem inseguros para enfrentar as demandas naturais da vida. Não podemos negar, ainda, a forte influência dos padrões atuais da cultura ocidental de beleza, que exigem figuras longelíneas (altas, extremamente magras, com músculos delineados, etc.), formas irreais para a grande maioria das pessoas e que são maciçamente divulgadas pela mídia, estando na origem da produção de transtornos alimentares.

Instaura-se uma espécie de tirania da perfectibilidade do corpo físico, em que a imagem jovem, magra, sadia e longelínea fabrica uma visão magnífica do corpo. A supremacia da aparência nos filmes, na fotografia, na televisão e no espelho das academias alija os feios e os gordos para a periferia das escolhas afetivas e profissionais.

Para os indivíduos que padecem de anorexia e/ou bulimia, longe de ser uma fonte de prazer, o corpo é causa de angústia, vergonha e mal-estar. Com um agravante: após algum tempo, as afecções vão adquirindo vida própria, que aprisiona a pessoa e aumenta sua sensação de fracasso. Isso conduz a um

isolamento social progressivo e sua auto-avaliação varia de acordo com o êxito obtido em reduzir o peso ou controlar o que come.

Nesse contexto, a compulsão alimentar leva a um aumento do limiar diferencial da necessidade oral, tanto no sentido de aumento de intensidade (alívio por comer), quanto pela eliminação pura e simples da necessidade (abstinência forçada, anorexia, bulimia), que provocam tensões. Podemos observar, também, que essa compulsão oral pelo prazer está presente, em nossa cultura ocidental, na preocupação excessiva com a moda e a busca de prestígio social, como forma neurótica de exposição e reconhecimento.

Na prática, vemos na atualidade a tendência a engordar como “pecado”, mentalidade que, socialmente justificada, contamina comunidades e empresas, embora não exista qualquer lei ou preceito constitucional que legitimem essa conduta.

Também podemos considerar a anorexia e a bulimia como sub-produtos do desemprego sistêmico vivido na sociedade e em suas organizações produtivas. Muito além das razões econômicas ou administrativas, passando mesmo por cima dos regulamentos, a obesidade torna-se objeto de exclusão no ambiente empresarial, havendo inclusive uma “perseguição branca” contra os colaboradores “gordos” no ambiente de trabalho.

Basta uma vista d’olhos sobre a produção de mobiliário de escritório, no Brasil, para se constatar que não há previsão de mesas e cadeiras para trabalhadores com mais de cem quilos, assim como nos aviões de carreira não existem assentos para passageiros gordos, instados não raramente a comprar duas passagens em cadeiras contíguas.

Assim, a bulimia e a anorexia, que afetam mais diretamente as mulheres, são sugeridas sub-repticiamente aos colaboradores que queiram manter seus empregos e atingir alguma legitimidade social. Estabelece-se, então, uma luta titânica para a manutenção do “peso emagrecido”:

Manter o peso emagrecido, após a realização de inúmeras tentativas de emagrecimento, tem sido o problema da maioria dos indivíduos que sofrem de obesidade e, também, dos profissionais que a tratam. Freqüentemente revelam que emagrecer é fácil, que sempre conseguem – “difícil é manter”. Nesse sentido, enfrentam a discriminação, o rechaço social, a frustração e o descrédito em si mesmos e em relação aos outros, bem como a desconfiança de que não são capazes. Tais fatores contribuem para a sua despotencialização enquanto sujeitos sociais100.

Não há a menor dúvida de que os fatores emocionais, sugeridos na infância, influenciam sobremaneira a forma de comer e a instalação de um processo de compensação psíquica em relação às dificuldades da vida moderna.

As noções de “culpa” e “pecado” são facilmente adjudicados ao comportamento do obeso, como se não existissem tendências genéticas e nosológicas do ponto de vista patológico. O obeso, visto como transgressor, não é bem aceito socialmente, a ponto de sofrer “mais preconceito do que esquizofrênicos e deprimidos e mais rechaço do que mulheres, minorias étnicas e alcoolistas”101.

A bulimia e a anorexia instalam-se, por conseguinte, por temor do ridículo e da censura, prefigurando a idéia fixa de ser magro. No auge da crise de bulimia nervosa, a pessoa chega a ingerir 10 a 15 mil calorias e, depois, provoca vômitos em si mesma ou toma laxativos; na anorexia, a pessoa perde todo prazer em comer, distorcendo a percepção do próprio corpo: toda vez que se olha no espelho se acha gorda e, em certos casos, a abstinência de alimentos pode levar à morte. As duas síndromes intercambiam-se, transformando-se em estilo de vida e, hoje em dia, só nos Estados Unidos, existem mais de 100 “sites” na Internet sobre o tema. Estima-se

100

Cf. Flavia Maria Felippe, “O Peso Social da Obesidade”, pp. 67-68, op. cit. 101

que 80 mil garotos de várias partes do mundo freqüentam esses endereços, onde trocam experiências e utilizam um vocabulário peculiar, comendo a média de 200 calorias por dia102!

Do ponto de vista do trabalho e da produção, esses distúrbios, cuja

mortalidade alcança 30% das vítimas103, contribuem para absenteísmo e gastos com

assistência médica para as empresas, não detectadas nos exames pré- admissionais. O corpo passa a ser um “centro de dor”, comparado com a magreza aplaudida no horário nobre da televisão, nos anúncios e filmes, bem como nos programas que constantemente provocam a “erotização precoce” do público feminino. E nos departamentos de recursos humanos das empresas só resta rejeitar os candidatos a empregos que exibam sobrepeso, integrando a ocorrência no controvertido conceito de boa aparência que, como estamos vendo, não é apenas inter-racial ou fruto da supremacia cultural da raça branca.