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CAPÍTULO 3 – PERCEPÇÃO DA APARÊNCIA

3.4 O CORPO COMO IMPLICAÇÃO EMOCIONAL

Um dos fatos mais paradoxais de nosso tempo é a dicotomia entre o interesse meramente material com o corpo humano e suas formas, do ponto de vista social, e a constatação da existência, no plano individual, de comprometimento funcional e emocional do significado do corpo, tomado como promessa de libertação ou como peso de escravidão.

Dos tempos de Freud para cá, parece que a sociedade humana evoluiu no sentido de desenvolver “a posse do corpo” de uma maneira mais desinibida e objetiva, o que infelizmente não se verificou, nem se transformou diretamente em aquisição social. Vale dizer, existe uma estranha similitude entre ricos e pobres na maneira de conceber o corpo, como extensão “de si mesmo”, aquele “estranho de mim” com quem preciso necessariamente (e, às vezes, a contragosto) conviver. O pobre concebe o corpo em termos de mortificação. O rico o concebe como “possibilidade de embelezamento”. Mas, para ambos, o corpo continua sendo um mistério, o “outro de mim mesmo” que não consigo conquistar.

Alexander Lowen, discípulo de Freud e fundador da bioenergética, argumentou que seria necessário revalorizar o corpo, diante da tendência da civilização ocidental de “igualar o corpo à carne e a mente ao espírito”80. Ou, como

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Ibid. 80

Cf. Alexander Lowen, O Corpo em Depressão, as bases biológicas da fé e da realidade. 3ª edição, São Paulo Summus, 1983, p. 208.

assinala Patrício, o corpo é constantemente reduzido aos diferentes dualismos entre corpo e mente, matéria e espírito, razão e emoção81.

Ao lado do corpo, desfila um sistema de objetos civilizacionais, utensílios, roupas, eletrodomésticos, móveis, carros e cosméticos, prontos para servi-lo ou homenageá-lo de acordo com o grau de inserção social de seu portador. O rico não disciplina o corpo a não ser por motivo de embelezamento ou de jogo social; o pobre o mortifica, em função de excesso de trabalho e de decepções, tornando-o flácido, obeso e sujeito a diversas doenças que se descortinam a partir de carências.

Em nossa civilização ocidental, a visão de um corpo bonito parece sempre deslocar-se do campo da genética para o entendimento sociológico que ali está o resultado de um paradigma de riqueza ou de ascensão social. Assim, os meios de comunicação social vão inundando a cabeça das crianças no sentido de que “é de bom tom” transformá-las em modelos fotográficos e de passarela, todas obviamente adaptadas ao perfil anoréxico exigido pelo mundo da moda.

O corpo bonito seria o sinal da realização material, da fruição de bens não espirituais, onde a carne bonita não precisa da alma, naturalmente enquanto for graciosa e jovem. Nesse sentido, a salvação seria manter o corpo jovem a qualquer preço, anulando-se, o mais possível, o peso inelutável da natureza, que parece marchar sem dó para o envelhecimento, para o caos e a dissolução.

Em termos de medicina, a cirurgia plástica passou a ser o patamar de salvação dessa crença materialista na juventude eterna. Ela procura disfarçar a depressão causada pelo envelhecimento e pela falta de fé, que caminham juntas entre o corpo e seu infindável sistema de objetos. O materialista “precisa” da

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PATRÍCIO, Z. M. A dimensão felicidade-prazer no processo de viver saudável individual e

coletivo: uma questão bioética numa abordagem Holístico-Ecológica . Florianópolis, 1995. Tese

(Doutorado em Enfermagem) - Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina. p.97

juventude, que representa energia, prazer, atividade e despreza a velhice, que representa intimidade, introversão e espiritualidade, que de nada servem ao sistema capitalista. O sonho americano, do pobre que vai ascendendo e chega ao topo cheio de dinheiro, é acalentado pelos jovens e corresponde à idéia calvinista de predestinação que fundou as bases ideológicas da nação norte-americana. No entanto, o paroxismo dessa tendência gerou, nos menos afortunados, um sentimento de fracasso que, em termos sociais, facilitou várias patologias, incluindo aí a disseminação da droga e da criminalidade.

Os não adaptados a esse tipo de mundo dinâmico, competitivo, selvagem e, por que não dizer, darwinista, refugiam-se, muitas vezes, na depressão. Ela se caracteriza, segundo a bioenergética, como “uma incapacidade de reagir”82, tratável

e superável na maioria dos casos, mas que demonstra que vários seres humanos não aceitam o “status quo” e desejam refugiar-se em planos diversos de irrealidade.

Da mesma maneira, a cirurgia plástica, em termos metafóricos, poderia representar uma fuga para a irrealidade da harmonia não existente e que deve ser necessariamente produzida para além do que a natureza oferece. Nesse contexto, a sua disseminação é proporcional à insatisfação dos pacientes em relação ao seu modo de vida, a tal ponto que querem se aproximar de corpos idealizados, normalmente impostos como paradigma por um consenso oculto entre “especialistas” (diretores de TV, costureiros, estilistas, professores de ginástica e donos de SPAs), sem qualquer substrato científico que os justifique.

Para a obtenção de “um corpo irresistível, harmonioso e sensível” foram feitas, em 2001, no Brasil, 350 mil cirurgias plásticas, ou seja, de cada grupo de 100

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mil habitantes, 207 pessoas foram operadas83. Argumentam os especialistas que as

cirurgias são benéficas para a auto-estima, esta entidade abstrata que é produzida pelo consenso social dos que nos circundam e que estabelecem os padrões de nosso sucesso e qualidade de vida. Seios siliconados, “liffitings”, lipoaspirações e outras preciosidades colocam os (as) pacientes numa posição social muito significativa, diversa do povo em geral. Ou seja, as classes altas entregam-se, de bom grado, ao culto da “aparência”, enquanto aos pobres dá-se o privilégio de conviver com as próprias “essências”, a realidade nua e crua do dia a dia da deformação corporal e rejeição cultural.

Não responder adequadamente ao sistema dos objetos capitalista leva à depressão e da depressão em diante às diversas e conhecidas formas de escapismo (drogas, álcool, barbitúricos e entorpecentes), expressando a disjunção entre a realidade a que são submetidas as classes mais baixas e os estímulos com que são bombardeados pelos meios de comunicação.

Esses estímulos refletem na consecução de uma política de pessoal e de recursos humanos, embora não expressos por escrito nas normas de admissão e demissão das empresas, pressupondo-se que não é usual que se admitam que fatores abstratos e filosóficos venham a ser tão determinantes para os executores das teorias administrativas. No entanto, tais elementos cada vez mais são imperativos para a estruturação de um sistema de filtros na conceituação da ampla questão da “boa aparência”, que vem trazendo grandes problemas funcionais, sociais e morais para as organizações e na convivência interpessoal de seus colaboradores.

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Cf. Anna Paula Buchalla e Karina Pastore. Corpos à Venda. In Revista Veja, 06/03/2002, edição 1741, pp. 84-91.