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CAPÍTULO 3 – PERCEPÇÃO DA APARÊNCIA

3.6 O PODER DO OLHAR

A valorização da auto-imagem na sociedade contemporânea é um retorno a pressupostos narcísicos, que pontuaram a humanidade desde os gregos. De fato, a sedução, o encantamento de ver-se, de admirar-se com a própria imagem, aparece desde os tempos da mitologia grega (o mito é uma “fala” e, ao mesmo

tempo, “um saber”), a partir da conhecida figura de Narciso, um homem enamorado pela própria imagem, em estado de êxtase.

A imagem greco-latina (“imago”) significa cópia, figura, sombra e imitação, designando a representação de um objeto apreendido pelos sentidos que com ele guarda semelhança perceptiva, numa espécie de percepção gestáltica e apetecível que torna o feio bonito, de acordo com o ponto de vista cultural adotado.

O narcisismo no espelho, largamente adotado em nossos tempos pela mídia, que instaura a admiração e o sucesso pela televisão, mexe com a duplicação do real e sua deformação como signo (o simulacro), revelando uma imposição não- criticável da sociedade industrial em detrimento de outras formas de representação.

O simulacro é inicialmente um duplo, uma duplicação do real, dissolvendo a diferença entre verdadeiro e falso e provocando a fascinação de uma relação privada entre sujeito e objeto. O narcisismo constrói um estado de falsa segurança, em que a pessoa sozinha e atemorizada se confunde com o próprio mundo ao redor, inflacionando o ego e subestimando o que lhe é exterior.

Embora várias pessoas transformem suas energias narcísicas em criatividade e trabalho, o que é uma forma benigna de realização em diversas profissões, outras cultivam um narcisismo maligno que valoriza o ter, a posse de bens e qualidades, que prescinde do relacionamento com os outros e modifica a estrutura de identidade e imagem dos indivíduos.

No jogo da imagem com o real, o olho assume o primeiro plano de importância, já que é o meio que registra e estabelece a ilusão. Nesse sentido, o poder do olhar amplia-se através de diversas técnicas: a pintura, o teatro, o livro, a

fotografia, o cinema, a televisão e a internet, numa ordem gradativa de apropriação, que vai da apreensão do que é a realidade até o seu usufruto propriamente virtual95.

O olho é convidado a introjetar a ordem estabelecida, refletindo os valores

ideológicos permitidos pela sociedade industrial tecnoburocrática. Ele é ampliado

através de equipamentos multimídia, analógicos e digitais, que manipulam o real através da interatividade de fontes difusoras e veículos receptores. O próprio real não é mais incorporado pelo sujeito comunicante, mas passa a haver uma cisão entre sujeito e objeto, que não têm mais realidade independente, mas se intercambia e se dissolve nas redes de conexões digitais e informacionais, completamente livres da noção de “propriedade de fonte”, como já estamos presenciando acontecer na grande rede de informação mundial, denominada “internet”.

Modificando os dispositivos de representação, a Internet estrutura o comportamento narcísico numa proposta nova de arquitetura de redes e interconectividade: sujeito e objeto não subsistem mais como nos pressupostos da velha teoria do conhecimento, tendo a sua separação clássica aparentemente dissolvida pelas aproximações eletrônicas. Uma extensa gama de novos serviços é posta à disposição dos consumidores, capazes de cobrir todas as atividades humanas independentemente de jurisdições e obstáculos geográficos.

Como o desejo, num mundo de simulacros, é uma demanda sempre insatisfeita, o capitalismo, para não perder domínio sobre camadas crescentes de consumidores, precisa proporcionar à massa de seus trabalhadores meios de satisfação de seus desejos, esperanças e fantasias, aprisionando-os, sempre que possível, no reino de novas necessidades.

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Aqui o termo “real” não se opõe a “virtual”. “Virtual” seria uma deformação do real por mecanismos de representação. Assim, virtual seria uma espécie de “cancelamento do atual”, do dado imediato da consciência, colhido pelos sentidos, ponto inicial da psicologia.

Se o cotidiano é desagradável para a maioria, submetida a trabalhos alienantes e ao desemprego, torna-se necessário recompor as esperanças dos trabalhadores e das classes médias através de estratégias psíquicas de compensação, que compreenderiam a produção de mitos no cinema, na música e na televisão.

Altera-se o espaço público na medida em que a comunicação se imaterializa, com o indivíduo passando a repartir o seu espaço privado e permanecendo ligado ao mundo inteiro graças às tecnologias de comunicação que lhe servem de conexão permanente com “o outro”. O contato imediato, proporcionado pela mídia, com repercussão em qualquer parte do mundo é um exemplo atual de relação imaterializada96.

As belas imagens se sucedem para provar que na verdade “tudo está bem, desde que os olhos aprovem”. Homens e mulheres belos, saudáveis e ricos vão desfilando, exibindo o seu elitismo acima do povo, com o culto à imagem e à vaidade ficando acima do bem e do mal. O mercado, erigido como juiz incontrastável do que deve ser visto ou dito, “privatiza o voyeurismo”, classificando as imagens como “rentáveis”, isto é, capazes de captar a atenção do público, prendê-lo na forma de estatística de audiência e infundindo-lhe novas necessidades que o transformem definitivamente em consumidor amestrado.

Os indivíduos comuns, especialmente as mulheres, num delírio de simulacro e de cópia narcísica, tentam imitar seus ídolos, tornando-se sub-imagens esqueléticas e anoréxicas, freqüentando compulsivamente salões de beleza e academias de ginástica para melhorar a auto-estima e suportar o anonimato. No

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Cf. Maria Inês Reuter Mancuso, “Sociedade da Comunicação, Imagem do Futuro”, in O Estado de São Paulo, 9/02/1991, p. 9.

fundo, essa subserviência a certo modelo feminino de beleza é um instrumento de dominação da cultura burguesa-capitalista.

Essas percepções da sociedade pós-industrial de maneira inevitável também afetaram o mundo do trabalho, retificando posições iniciais, típicas do industrialismo, que popularizaram os paradigmas de Taylor, Fayol e de linha de montagem, que formaram o “berço ideológico” da expansão industrial no século XX. Os mecanismos de cooptação de colaboradores nas empresas não deixaram de ser envolvidos por essas expectativas de representação de beleza (boa aparência), simpatia e motivação.

Os próprios dogmas da Ergonomia, que formularam os documentos de normalização do trabalho físico baseados tão somente naqueles paradigmas, tiveram que se atualizar, diante da realidade das novas máquinas, da robótica e do manejo de computadores pessoais. Hoje, a plena aceitação de normas ergonômicas sobre o trabalho físico não pode deixar de incluir aspectos interdisciplinares da medicina do trabalho, da sociologia, da economia, da administração e como expusemos neste trabalho, das cirurgias corretivas, entre elas a cirurgia ortognática e outras áreas correlatas, que possam melhorar a auto-estima dos indivíduos no espaço de trabalho.

A própria noção de trabalho passa por profunda revisão, ultrapassando as noções antigas de utilização de energia física no deslocamento de objetos, concentração e explosão musculares para determinados objetivos e cálculo dos tempos de execução de tarefas e decréscimo de vigor da mão-de-obra no desempenho de determinados movimentos.

Tudo isso, enfim, já foi racionalizado em tempos atrás, não impedindo que novos cálculos sobre produtividade introduzissem fórmulas novas de maximizar os

lucros, alienar e demitir mão-de-obra, fabricar os componentes de acordo com os padrões geográficos mais adequados e outras medidas, capazes de diminuir ainda mais a capacidade do homem de resistir ao conservadorismo do egoísmo capitalista.

Assim, surgiram perspectivas de análise do trabalho que vão ter enorme importância no século XXI e vão interferir na atividade econômica dos países desenvolvidos e emergentes, embora as percepções antigas da Ergonomia ainda possam ser aplicadas em países subdesenvolvidos do Terceiro Mundo.