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Como vimos na introdução desta tese, o momento de emergência do primeiro modelo metapsicológico freudiano foi investigado por mim em trabalho anterior (CAMPOS, 2004). Naquela ocasião, tratei do nível tópico da metapsicologia, por meio do estudo do aparelho psíquico proposto no livro sobre a interpretação dos sonhos em sua conexão com a hipótese representacional. Introduzi tanto o problema das diversas modalidades dos representantes psíquicos ideativos, quanto o da angústia como derivado afetivo do processo defensivo, afirmando que uma dimensão não-representacional suplementar pode ser traçada à margem da teoria da representação. Assinalei, ainda, que a operação de supressão de uma concepção radical de processo primário – na qual o pulsional atua como uma exigência de ligação em representação e não apenas como o livre curso da realização de desejos inconscientes – estaria relacionada ao abandono da noção de trauma em detrimento de uma concepção de realidade psíquica na qual o registro da fantasia inconsciente atua, na dinâmica psíquica, como único pólo energético imantador do conflito.

As considerações acerca da metapsicologia dos sonhos foram suficientes para demarcar um campo de problemática inicial, no qual pôde ser identificada a seguinte linha de desenvolvimento no pensamento de Freud: a ―opção‖ de explorar até as últimas conseqüências a hipótese representacional na compreensão do aparelho psíquico. Por outro lado, esse mesmo campo constitui um ponto de ancoragem pelo qual o movimento pendular do pensamento freudiano deverá retornar quando da elaboração conceitual do campo do não-representacional, a partir da virada dos anos vinte.

Retomaremos agora essa problemática do ponto em que a deixei anteriormente. Desse modo, o presente capítulo, que de fato inicia a abordagem sistemática dos textos freudianos nesta tese, examina o desenvolvimento do pensamento freudiano até o ápice do seu primeiro modelo tópico e pulsional: os

artigos de metapsicologia, de 1915-1917. Irei, portanto, abordar os desdobramentos

isso, teremos um quadro mais completo do desenvolvimento da teoria representacional freudiana em sua articulação com o arcabouço da metapsicologia. O objetivo é examinar a complexidade crescente da teoria freudiana e o seu esforço derradeiro de síntese no projeto dos ―artigos de metapsicologia‖, evidenciando como a introdução de novas problemáticas, articuladas em torno dos conceitos de narcisismo e de identificação, colocarão a teoria psicanalítica em um novo patamar, deixando o projeto dos ―artigos‖ como uma pretensão inacabada.1

Seguindo a organização proposta por Mezan (2001), os ―anos de maturidade‖ da psicanálise compreendem o período entre 1905 e 1920 em que a produção teórica freudiana atinge seu apogeu. Seus marcos externos são a definição da teoria sexual, em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (FREUD, 1905/1996) e a revisão das hipóteses metapsicológicas a partir dos anos vinte, em Além do Princípio de

Prazer (FREUD, 1920/1996, 1920/2006). Trata-se de um período de ampla produção

teórica na qual se configura uma malha teórica própria, cujo marco central em torno do qual gravitam as questões é a elaboração do conceito de pulsão.

Assim, é sobre a grande oposição entre as pulsões sexuais e as de auto- conservação que se desenvolvem as temáticas desse período, as quais se organizam para formar o arcabouço teórico da Psicanálise freudiana, definido por Mezan como a árvore da Psicanálise (2001, p. 154, 245-250). Como vimos anteriormente, esse modelo coloca o conceito de pulsão como a raiz de toda a teoria freudiana, a partir de onde se desenvolve o tronco, constituído, por um lado, da teoria da sexualidade e da organização da libido e, por outro, da gênese e dinâmica do ego. Desse tronco principal saem os ramos derivados, o conceito de defesa e o de complexo de Édipo, os quais darão sustentação para a copa, que é formada pela teoria das neuroses. Essa grande árvore que articula progressivamente a metapsicologia, a teoria do

1 Sabe-se que a intenção original de Freud era redigir 12 artigos de metapsicologia, abordando os

grandes temas da teoria psicanalítica. Sua motivação decorria de uma confluência de razões para uma síntese teórica: (1) do ponto de vista propriamente teórico, havia a exigência por conta da crescente complexidade conceitual; (2) do ponto de vista político-institucional, havia a necessidade de defesa da psicanálise em meio às dissidências do movimento psicanalítico (Jung e Adler); (3) do ponto de vista pessoal, havia a preocupação das conseqüências de sua morte para o legado da psicanálise. O fato é que, com o final da guerra, Freud destruiu os manuscritos dos demais artigos, publicando somente aqueles que constituíam o núcleo duro da metapsicologia até então: a articulação entre pulsões e recalque na criação da tópica. De qualquer forma, deixarei de lado as determinações psicobiográficas da história do movimento psicanalítico para explorar sua dinâmica intrínseca, naquilo que delimitei no capítulo de considerações metodológicas como horizonte interno à obra.

desenvolvimento e a psicopatologia, por sua vez, produz seus frutos, que são a concepção de cura própria da Psicanálise e sua teoria da técnica.

Ainda segundo Mezan (2001, p. 245), a trama conceitual que articula os sete conceitos da árvore da Psicanálise se desenvolve em três sub-períodos circunscritos que se encadeiam em uma temporalidade lógica: (1) O período de conceituação das pulsões (1905-1911); (2) O período da introdução do narcisismo (1911-1915); e (3) O período da emergência da metapsicologia (1915-1920). Os artigos de metapsicologia comparecem, portanto, como a tentativa de sistematização dos desenvolvimentos advindos do adensamento da teoria pulsional e do desenvolvimento da libido, além da introdução da problemática do narcisismo na compreensão da gênese e desenvolvimento do ego. De fato, tomados em perspectiva, os três aspectos da descrição metapsicológica, a saber, os pontos de vista tópico,

dinâmico e econômico, refletem os três momentos em que a Psicanálise procurou se

estruturar como sistema (MEZAN, 2001, p. 249).

Dessa forma, a descrição tópica vincula-se ao desenvolvimento do primeiro modelo topográfico (FREUD, 1900/1996). Naquele primeiro momento, o conflito psíquico era entendido principalmente em termos de oposições entre instâncias, enquanto a dinâmica subjacente, bem como seu substrato energético, estavam relegados a um segundo plano. O desenvolvimento do ponto de vista dinâmico só pôde se efetuar com o desenvolvimento da teoria pulsional e a definição do conflito psíquico em função da oposição entre pulsões de auto-conservação e sexuais, o que é levado a cabo entre 1905-1911. Com a introdução do narcisismo e a atribuição ao seio do ego de uma confluência do interesse das pulsões de auto-conservação e da libido das pulsões sexuais, ganha relevo a problemática econômica para elucidar a natureza e a magnitude da energia em jogo nos processos defensivos. Isso vem resgatar a dimensão energética, muito presente nos textos dos anos 1890, mas deixada em suspenso desde então.

Essas considerações são suficientes para marcar a complexidade dos desenvolvimentos teóricos do período e alertar para a confluência de meadas conceituais que alimentam a rede teórica dos artigos de metapsicologia. Optei por focar a discussão nesses textos porque é neles que se articula toda a problemática precedente, bem como aparecem os primeiros transbordamentos do arcabouço teórico da primeira tópica. Minha hipótese é de que o esforço de sistematização

teórica não se dê apenas pela exigência de alinhamento dos conceitos desenvolvidos a partir das hipóteses da primeira tópica, mas, também, pelas tensões criadas pela introdução do narcisismo e, principalmente, do conceito de identificação. Nesse sentido, a análise dos três artigos que constituem o ―núcleo duro‖ da síntese metapsicológica – sobre as pulsões (FREUD, 1915a/1996, 1915a/2004), o recalque (FREUD, 1915b/1996, 1915b/2004) e o inconsciente (FREUD, 1915c/1996, 1915c/2006) – será acompanhada dos dois textos capitais do período: Introdução ao

Narcisismo (FREUD, 1914/1996, 1914/2004) e Luto e Melancolia (FREUD,

1917a/1996, 1917a/2006).2 Como o percurso proposto nesta tese se dá por meio das vicissitudes da teoria representacional na metapsicologia freudiana, torna-se imprescindível analisar o estatuto conceitual dos afetos e da angústia no período. Embora algumas questões gerais sobre os afetos sejam trabalhadas no texto sobre o inconsciente, a teoria específica sobre a angústia não é focada suficientemente nos artigos de metapsicologia. Para tanto, irei recorrer à conferência introdutória que aborda o tema, que é do mesmo período (FREUD, 1917b/1996).

A leitura mais próxima desse conjunto de textos, contudo, não pode ser efetuada sem levar em conta o desenvolvimento teórico precedente. Irei, para tanto, acompanhar de perto a organização proposta por Mezan e sua descrição para o período em exame, efetuando, contudo, um recorte elegendo três temas principais: (1) teoria pulsional e desenvolvimento da libido; (2) gênese e desenvolvimento do

ego; (3) angústia e recalque. Recapitularei em linhas gerais cada um desses tópicos e

examinarei de forma mais detida sua situação nos textos que elegi como objeto principal de análise.