• Nenhum resultado encontrado

No capítulo anterior, pude mostrar a grande reviravolta no pensamento freudiano que ficou conhecida como ―virada‖ dos anos vinte. Essa retomada e ampliação dos fundamentos metapsicológicos mais essenciais foi marcada pela introdução de uma dimensão propriamente além do princípio de prazer, circunscrita ao conceito de pulsão de morte. Esse momento propriamente especulativo da metapsicologia foi minuciosamente discutido no sentido de explicitar as ambigüidades conceituais e o campo de aberturas e possibilidades que essa nova teoria das pulsões engendra na trama dos conceitos metapsicológicos.

Esse movimento de abertura na metapsicologia foi seguido de um segundo momento em que Freud tenta operar uma síntese desses desdobramentos, como mostra claramente o primeiro parágrafo do texto O Ego e o Id:

Os presentes estudos constituem novo desenvolvimento de algumas seqüências de pensamento que expus em Além do Princípio de Prazer, e para com as quais, como então observei, minha atitude era de um tipo de benevolente curiosidade. Nas páginas que se seguem, esses pensamentos são vinculados a diversos fatos da observação analítica e faz-se uma tentativa de chegar a novas conclusões, a partir dessa conjunção. No presente trabalho, contudo, não existem novos empréstimos tomados à biologia, e, devido a isso, ele se encontra mais próximo da Psicanálise do que Além do Princípio de Prazer. Tem mais a natureza de uma síntese do que de uma especulação, e parece ter tido em vista um objetivo ambicioso. Estou consciente, porém, de que não vai além do mais grosseiro esboço e acho-me perfeitamente contente com essa limitação. (FREUD, 1923/1996, p. 23)

Neste trabalho, darei continuidade a reflexões iniciadas em Além do Princípio de Prazer. Naquela ocasião, expliquei que julgava não ser ainda aquele momento adequado de submetê- las a um crivo severo; era preciso primeiro deixar-lhes vôo livre, mantendo perante elas uma atitude de benevolente curiosidade, como que observando até onde chegava sua amplitude. Agora, contudo, estamos em outro momento e as hipóteses deverão ser relacionadas a fatos estritamente derivados da observação psicanalítica, o que, espero, permitir-nos-á progredir e chegar aos resultados que tanto almejamos. Portanto, desta feita, nossa discussão estará mais próxima da Psicanálise. Diferentemente das hipóteses que desenvolvi em Além do Princípio

de Prazer – especulativas e calcadas em empréstimos tomados da biologia –, trata-se aqui de

uma síntese de fatos realmente observados. Devo, contudo, admitir que, não obstante minha ambição de que essas novas formulações tenham grande alcance, sei que, na verdade, não passam de aproximações precárias dos processos psíquicos, mas, enfim, é preciso saber viver com essa limitação. (FREUD, 1923/2007, p. 27)

Tento, no presente capítulo, retomar essa perspectiva sintética e mostrar como a proposição do modelo estrutural é fruto de um movimento de amarração de uma

série de noções que vinham se avolumando no campo da metapsicologia desde suas origens e ao longo das tentativas anteriores de síntese por parte de Freud. Nesse sentido, este capítulo irá retomar muito das questões dos dois capítulos anteriores, renovando o movimento da problemática que elegi como objeto de pesquisa.

Para tanto, irei partir do texto fundamental sobre o ego e o id (FREUD, 1923/1996, 1923/2007), ponto de convergência inicial desses movimentos. Contudo, a problemática não se encerra apenas nesse momento. Ela se desdobra por uma série de textos de cunho metapsicológico ao longo da década de 30 do século XX, até sua tentativa inacabada de síntese no Esboço de Psicanálise (FREUD, 1938/1996). Isso implicará discutir os pormenores das duas versões do modelo estrutural que Freud nos apresenta, no tocante aos conteúdos psíquicos e as relações entre as instâncias. Para tanto, precisarei discutir o complemento natural do modelo de 1923, que é o novo esquema apresentado na Conferência XXXI das novas conferências de introdução à Psicanálise (FREUD, 1933a/1996).

Nesse percurso irei trabalhar duas questões fundamentais, que se referem às linhas mestras desta pesquisa: (1) a abertura para uma noção de negatividade no seio do id; (2) os adensamentos da compreensão da gênese do ego por meio das identificações.

A abordagem dos desenvolvimentos teóricos na década de 30 do século XX leva, necessariamente, a uma discussão mais direta sobre o papel das identificações na estruturação do aparelho psíquico. Como se sabe, é somente nessa última década da obra de Freud que a teoria das identificações se consolida por meio da concepção de que o Complexo de Édipo é o momento estruturante fundamental da subjetividade, tendo como rebento direto uma instância, o superego, que é fruto da identificação edípica. Somente com esse aporte Freud poderá, enfim, fazer essa amarração geral de sua teoria que levará à definição da fase fálica como momento crucial do desenvolvimento psicossexual (FREUD, 1923b). Embora não vá entrar nos pormenores desse amadurecimento da teoria da constituição da subjetividade por meio de complexo de Édipo, é importante não perder do horizonte de discussões essa linha de desenvolvimento teórico absolutamente fundamental. Esses adensamentos estão fundamentalmente centrados nos textos sobre a resolução do complexo de Édipo e as especificidades da constituição subjetiva no gênero feminino (FREUD, 1924c/1996, 1925c/1996, 1931/1996, 1933c/1996). O que interessará para a presente

discussão será a tomada de posição quanto a um primado da dinâmica edípica e de suas modalidades de fantasias e angústias sobre as etapas pré-genitais do desenvolvimento da libido, pois será responsável por uma centralização da teoria do desenvolvimento psíquico sobre a identificação edípica, deixando de lado o papel da identificação primária na constituição do aparelho psíquico.