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A pesquisa em Psicanálise se efetiva em diversos níveis de investigação. Devem-se levar em consideração algumas distinções clássicas sobre esse campo de pesquisa, de forma que se possa inserir a presente tese nesse contexto.

A produção de conhecimento em Psicanálise pressupõe sua operacionalização no âmbito de um setting transferencial, onde o inconsciente pode emergir. Dessa forma, a verdadeira pesquisa em Psicanálise é aquela que emerge da clínica psicanalítica. Essa posição clássica é defendida, em sua versão mais ortodoxa, por Freud nas suas considerações sobre as limitações presentes na proposta de ensino de Psicanálise na universidade, em que defendia uma concepção que visasse à divulgação da teoria psicanalítica de forma dogmático-crítica (MEZAN, 1998b).

Evidentemente, o saber psicanalítico não é uma mônada fechada sobre si mesma e articulações muito profícuas foram estabelecidas entre a Psicanálise e as demais ciências, bem como entre a modalidade de produção que lhe é específica e as da pesquisa acadêmica clássica. De qualquer forma, a especificidade da pesquisa que emerge da clínica é o ponto essencial da teorização psicanalítica. Assim, tem-se um primeiro tipo de pesquisa psicanalítica, a qual pode ser propriamente denominada de

pesquisa em Psicanálise (GARCIA-ROZA, 1994) ou de pesquisa clínica (MEZAN,

1994). A teoria em Psicanálise é, fundamentalmente, um trabalho de pensamento, abstração e elaboração que ocorre depois da escuta analítica e a partir dela, constituindo o cerne do saber psicanalítico.

Além da vertente de investigação dos processos psíquicos por meio do método psicanalítico, encontram-se as pesquisas sobre Psicanálise (GARCIA- ROZA, 1994). É nessa proposta que se inserem as pesquisas propriamente acadêmicas. Dizem respeito à investigação da história das idéias psicanalíticas, quer seja no plano exclusivamente histórico-conceitual – as articulações e desenvolvimentos conceituais de uma teoria psicanalítica – ou no plano mais

epistemológico – a inserção de teorias psicanalíticas no contexto da produção de

conhecimento em geral (MEZAN, 1994).

Mezan diferencia, ainda, a pesquisa de caráter aplicado, que diz respeito à articulação da compreensão psicanalítica com a cultura. Essa idéia de uma ―aplicação‖ da teoria psicanalítica, contudo, não deve ser entendida nos mesmos moldes da distinção entre pesquisa básica e pesquisa aplicada, já que a teorização em Psicanálise emerge do seu próprio método e nele se efetiva. Essa discussão, contudo, não interessa para o presente trabalho, que é uma pesquisa de caráter estritamente teórico e não será aprofundada aqui.4

Apesar de apresentarmos as definições de Mezan e Garcia-Roza como equiparáveis, há algumas distinções entre elas. Garcia-Roza é mais restritivo, considerando o lugar da pesquisa eminentemente como o de uma pesquisa em Psicanálise, enquanto a leitura sistemática caberia aos comentadores e se inseriria no âmbito de uma pesquisa epistemológica e não psicanalítica. Já Mezan é mais flexível, reconhecendo o lugar de uma pesquisa teórica de caráter histórico ou teórico-conceitual como complemento à indagação do campo clínico.

Em comum com o conhecimento científico, o campo psicanalítico possui aspectos de coesão interna, comunicabilidade, verificabilidade e cumulatividade. Contudo, essas noções devem ser entendidas na particularidade da produção de conhecimento em Psicanálise, em especial na configuração do campo psicanalítico como um espaço necessariamente dispersivo em que as formações teóricas não são

redutíveis entre si, o que coloca empecilhos a uma redução da Psicanálise a noções

epistemológicas como a de paradigma (MEZAN, 1998c). Na verdade, uma abordagem rigorosa dessa questão, implica a distinção dos diferentes níveis de

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Considerações mais aprofundadas sobre as modalidades de pesquisa em Psicanálise podem ser encontradas em outros trabalhos meus (CAMPOS, 2008a, 2008b).

teorização em Psicanálise, bem como dos diferentes modos de abordagem e investigação da Psicanálise como campo de saber.

Em um texto mais recente sobre a epistemologia da Psicanálise, Mezan (2002) retoma muitas de suas teses para definir uma epistemologia que ocupe uma posição mediana na investigação teórica em Psicanálise. Nesse texto, Mezan retoma a problemática da especificidade do saber psicanalítico em sua discussão com a epistemologia. Em consonância com as perspectivas epistemológicas mais contemporâneas, notadamente a epistemologia francesa de Bachelard e Lebrun, afirma que ―uma disciplina se emancipa e se torna autônoma quando define seu campo, seus métodos, sua problemática própria‖ (MEZAN, 2002, p. 437), de tal modo que cada ciência é responsável pela construção de sua própria racionalidade. Esse ponto é fundamental, pois recoloca o problema da epistemologia para além de sua concepção unívoca de verdade.

Em maior consonância com a virada lingüístico-pragmática da filosofia contemporânea5, essa concepção epistemológica ―fraca‖ lida com a idéia de racionalidades regionais, próprias de cada campo de saber. Assim, uma investigação epistemológica passa pela descrição e pela análise do sistema de enunciados de um determinado campo de saber, mostrando como ele funciona e como constrói seu horizonte de conhecimento. Nesse sentido, não se trata mais de referir o saber da Psicanálise – ou de qualquer outro conhecimento – a um determinado crivo epistemológico que garanta a verdade de um método ou de um enunciado teórico. Nesse sentido renovado, a epistemologia passa a ser um instrumento de análise da coerência interna de um campo de saber. Somente nesse segundo sentido, resultado da inflexão do problema hermenêutico sobre a epistemologia tradicional, podemos pensar no valor de uma análise epistemológica da Psicanálise.

Sendo a Psicanálise tanto um aparelho conceitual como uma prática, é preciso demarcar qual a especificidade de suas diferentes formas de fazer e de pensar. Nesse ponto o texto de Mezan é muito esclarecedor, pois propõe uma esquematização dos modos de abordagem da psicanálise, o que certamente é de grande valia para o delineamento metodológico de uma pesquisa.

5 Para uma consideração mais aprofundada sobre as modificações presentes na filosofia

contemporânea e sua implicação para uma compreensão da epistemologia, os textos de Figueiredo (2002), Phillips (1991) e Oliveira (1996) podem ser consultados. A denominação específica de

Segundo o autor, podemos definir dois tipos de abordagem histórica da teoria psicanalítica. Uma primeira modalidade remete à história externa da teoria, definida como a ―análise histórica do contexto científico e cultural no qual surgem as idéias psicanalíticas‖ (MEZAN, 2002, p. 443). Uma segunda modalidade remete à história

interna da teoria com seus desenvolvimentos e rupturas. O importante nessa posição

é que ambas as abordagens históricas constituem um preâmbulo necessário para a análise epistemológica. Ou seja, a análise epistemológica precisa levar em consideração tanto o horizonte externo de uma teoria como seu desenvolvimento interno. A posição mediana da epistemologia em Psicanálise se dá por ela pressupor um trabalho histórico em nível teórico-conceitual e por fundamentar as abordagens da Psicanálise como prática. Assim, a análise epistemológica da estrutura teórica da Psicanálise é o que possibilita fundamentar a ―discussão clínica stricto sensu, que por sua vez ganha densidade quando situada nos contextos mais amplos do movimento analítico e da cultura em geral‖ (MEZAN, 2002, p. 443).

Levando em consideração a esquematização apresentada, podemos, então, compreender melhor o lugar que uma discussão teórico-conceitual tem na pesquisa sobre a Psicanálise. Como se pode notar, a análise histórica ou epistemológica não está fora do campo da Psicanálise, embora não seja exatamente uma pesquisa em Psicanálise, como definido acima. Da mesma forma, elas são necessárias para a compreensão do campo psicanalítico em seus horizontes internos e externos.

Portanto, é no nível de uma abordagem da história interna da teoria freudiana que esta tese procura fazer uma análise dos limites epistemológicos da teoria da representação na metapsicologia.