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Esses são alguns pontos que gostaria de marcar para uma primeira configuração dos desdobramentos da pulsão de morte como o estranho na metapsicologia. Pude marcar quais os limites para além e aquém da teoria da representação que coincidem com os dois grandes caminhos abertos por Freud a partir da virada dos anos 1920. Quis marcar que destinos a teoria da pulsão de morte nos deixa, a partir do trinônimo que intercala ligação, irrepresentabilidade e agressividade. Mostrei, além disso, como esse amplo campo de hipóteses sobre a dinâmica das pulsões de morte está assentado em um desvio biologizante característico dessa última etapa da obra de Freud que implica uma série de problemas para a compreensão da dimensão do originário na metapsicologia. Discuti as interpenetrações desses níveis tentando traçar os esboços do movimento de teorização de Freud e as perspectivas que são retomadas por alguns comentadores pós-freudianos.

Partimos de um esclarecimento quanto à articulação das duas teorias pulsionais, já que a própria concepção de pulsão não é a mesma na primeira e na

segunda versão. Pois se a primeira teoria pulsional é entendida como uma demanda de elaboração psíquica marcada pelas quatro características definidoras da pulsão – a fonte, a pressão, a meta e o objeto – a segunda teoria pulsional carece de alguns desses elementos. O principal é a idéia de que a pulsão não é mais uma exigência de trabalho psíquico, mas, como já assinalei, uma categoria quase ontológica ou transcendental.

Observa-se, então, como é a própria noção de conceito-limite entre o somático e psíquico que se apaga. Esse apagamento não se dá apenas no sentido de que a pulsão agora é uma força biológica-psicológica-social, mas também que a própria distinção entre o campo das representações e o da libido como território do psíquico é suprimida. Desse modo, o que é apagado é a noção da pulsão como conceito articulador entre a representação psíquica e uma exigência que é externa a ele. Nesse sentido, convém lembrar que o Id do modelo estrutural será o caldeirão das pulsões de vida e de morte, que se abre na extremidade inferior para o corpo (FREUD, 1933b). Ou seja, as pulsões saem do campo somático e, simultaneamente, o psíquico passa a se desvincular daquilo que é estritamente representado. Contudo, se por um lado essa ―nova‖ teoria pulsional implica em uma abertura para o irrepresentável e uma desvinculação como o plano somático, ela tende a ser amarrada a uma origem última é não só ontológica, mas também biológica.

Essas modificações trazem alguns problemas para as tentativas de unificação das duas teorias pulsionais. Parece-me, inclusive, que a proposta de Laplanche pode também incorrer no problema de colocar as pulsões sexuais de vida e de morte no mesmo nível de trabalho psíquico, quando esse desnível é fundamental para a problemática que Freud inaugura. Mas não é só por esse motivo que as teorias pulsionais não são equacionáveis. Outro problema que permanece é a inexistência de um objeto para a pulsão de morte. Ora, se a pulsão de morte é puro desligamento, pura descarga, não pode aí haver um objeto. Daí sua assimetria com a concepção de pulsão de vida que, grosso modo, ainda pode ser definida em termos das quatro características essenciais da pulsão.

O exame do desvio biologizante e de seu tratamento na tradição francesa nos levou um pouco além da problemática específica das pulsões, mas foi bastante útil na compreensão da ampliação do conceito de originário, passando a comportar o aspecto fundamental da alteridade. Contudo, se o papel do outro e a especificidade

do domínio pulsional são afirmados, alguns prejuízos e limites também são criados. O principal deles diz respeito à ênfase em uma concepção semiótica que tende a deixar de lado a proposição de uma irrepresentabilidade radical e, também, de uma dinâmica das identificações estruturante do aparelho psíquico como um sistema de instâncias. De qualquer forma, as hipóteses de Laplanche e Mezan nos permitiram avançar na elaboração do impacto traumático da pulsão de morte. Podemos, a partir daí, propor uma lógica de dois tempos na elaboração pulsional, que configuraria um processo primário radical sob o princípio de prazer absoluto ou de nirvana em oposição ao processo primário relativo sob o princípio de prazer propriamente dito.

Isso, contudo, não se mostra suficiente para dar conta do problema. Em primeiro lugar, porque se a ligação que o ego efetiva da pulsão de morte pode caracterizar um registro originário distinto daquele prenunciado pelas teses filogenéticas freudianas, isso não dá conta da totalidade da questão da gênese das instâncias psíquicas. Nesse ponto é que as contribuições de Green sobre o narcisismo negativo parecem lançar uma luz adicional ao problema, ao marcar a complexidade das operações de objetalização e desobjetalização na gênese do aparelho psíquico e do ego. Em segundo lugar, porque o exame detido dessa questão das origens, a partir de Figueiredo, nos apontou a necessidade de transcender uma lógica meramente identitária e supor uma suplementaridade na constituição desses princípios metapsicológicos.

Assim, novamente encontramos um descompasso entre os atributos de um modelo representacional – que articula um um contínuo as dimensões originária, primária e secundária na elaboração psíquica da pulsão – e a lógica de um modelo identificatório – em que são introjetados mais do que as representações de objeto, mas também suas funções no manejo pulsional. Veremos, a seguir, como esse problema das identificações na origem do psiquismo se desdobrará na chamada segunda tópica freudiana.

Um outro problema específico no desenvolvimento da teoria da pulsão de morte é a tendência de sua restrição ao parâmetro da agressividade ou destrutividade. Essa é uma tendência no pensamento freudiano que será aprofundada em algumas leituras pós-freudianas, como é o caso de Klein. O problema, no caso, não é a vinculação entre pulsão de morte e agressividade, mas a simplificação do problema. É evidente que a dinâmica da pulsão de morte se faz mais presente nos casos em que

há uma espécie de sadismo auto-dirigido, como nas identificações melancólicas ou mesmo nos pares sádico-masoquista. Não é à toa que a agressividade e a destruição sejam as manifestações da libido mais marcadas pela pulsão de morte. A questão contudo, é que Freud recua em igualar agressividade e pulsão de morte, lançando mão da hipótese da fusão e defusão das pulsões. De qualquer forma, parece bastante claro que para Freud o trabalho silencioso da pulsão de morte é o de sabotar o ego, quer seja por intermédio do sadismo superegóico, quer seja pela efração traumática ou mesmo pelo masoquismo originário.

Aqui entramos em um campo espinhoso, que é o de deslindar essa dinâmica pulsional entre instâncias, o que é ligeiramente diferente de pensar a ação pulsional no plano das representações. Parece-me que é aqui que a metapsicologia freudiana necessita desenvolver um pouco mais a idéia de internalização de um bom objeto como condição de constituição do espaço psíquico e de projeção de parte da pulsão destrutiva para o exterior como condição de manutenção desse espaço. Esse caminho, como vimos, foi abordado na tradição kleiniana-bioniana, levando à definição de dinâmicas reativas próprias do narcisismo negativo e da função desobjetalizante, com o trabalho de Green.

Contudo, é preciso aprofundar outro aspecto da questão que Freud também deixa em aberto: se a pulsão de morte é desligamento e descarga, como ela alimenta o superego em seu controle do ego? Nesse aspecto, parece que a pulsão de morte precisa ser entendida pelo viés de um impulso agressivo que investe uma estrutura psíquica como objeto de sua destrutividade. Esse é o ponto em que se coloca a questão, tão cara aos kleinianos, das origens arcaicas do superego, ou seja, de como o superego se constitui em vínculo direto com o id, obtendo daí o impulso sádico que o caracteriza.

É pelo caminho que toma a pulsão de morte tanto em seus aspectos de irrepresentabilidade e traumatismo à trama de representações psíquicas, quanto de destrutividade e agressividade no relacionamento entre instâncias, que devemos enveredar para aprofundar a compreensão do legado freudiano sobre a pulsão de morte. Nesse ponto, acredito que o trabalho de Green possa ser interessante, pois ele vai tomar justamente os desdobramentos da Psicanálise inglesa, com Klein e Bion, para pensar a idéia de um ataque aos objetos internos proporcionado pela pulsão de morte, o que configuraria o objeto da pulsão de morte como um objeto negativo.

Parece-me que aí há a possibilidade de pensar a interpenetração entre esses dois aspectos que elejo como centrais em minha investigação, a irrepresentabilidade e o objeto interno. Pensar a dinâmica pulsional da negatividade no aparelho psíquico, talvez seja esse um caminho para pensar as questões que Freud deixa em aberto com a ―virada‖ dos anos vinte.

Esses, portanto, são os pontos para levar em consideração na continuidade de nossa análise da obra de Freud. Gostaria, antes de encerrar este capítulo, de propor uma síntese mais efetiva da compreensão sobre o problema da pulsão de morte que pode emergir da discussão que fizermos. Acredito que o essencial deste segundo tópico em relação ao campo aberto no primeiro, onde diferenciei as temáticas da irrepresentabilidade, da ligação e da destrutividade, é a indicação mais clara de um papel estruturante dos objetos na constituição do psiquismo e a relação dessas identificações com o narcisismo, sente este entendido não só como uma dinâmica positiva, mas também como um narcisismo reativo que opera o trabalho do negativo.

Novamente é Figueiredo (2003) que pode vir ao nosso auxílio na organização do campo de problemátização sobre a pulsão de morte. Embasado em ampla discussão dos chamados casos-limite ou borderlines e recorrendo a alguns autores da tradição inglesa, francesa e norte-americana da Psicanálise contemporânea, anuncia o que chama de três hipóteses sobre a pulsão de morte: (1) compulsão à repetição; (2)

constituição do próprio e (3) insistência da vida.

A primeira hipótese é a da expressão da pulsão de morte por meio da compulsão à repetição, que busca uma descarga a qualquer preço por ―não ter encontrado nos objetos primário o apoio (holding) e a continência para o exercício das operações mais básicas de mediação, ligação e separação‖ (FIGUEIREDO, 2003, p. 152). Essa afirmação é muito importante, pois sinaliza para uma solução em direção ao que venho discutindo ao longo deste capítulo: a importância de se compreender a dinâmica de identificações com o objeto como constituinte das instâncias psíquicas e dos circuitos representacionais. Isso quer dizer que as funções de mediação simbólica da pulsão por meio da linguagem são fruto de uma dinâmica de identificações com objetos, que cria espaços e funções que ordenam e estruturam o aparelho psíquico. Assim, a expressão compulsiva da pulsão de morte em sua manifestação mais crua, uma pulsionalidade que simplesmente pulsa na busca de objetos primários que possam exercer a as funções primárias de ligação e instauração

dos circuitos eróticos e dos princípios de prazer e de realidade. Desse modo, a tendência à descarga e a desobjetalização seria fruto de um malogro da pulsão em sua procura pelo objeto, uma falha bastante comprometedora na articulação e constituição do aparelho psíquico.

A segunda hipótese é de que essa repetição, mesmo quando reduzida a essa pulsionalidade mais primitiva de destruição e desligamento, representa uma procura ―de afirmação do mesmo à revelia do outro‖ (FIGUEIREDO, 2003, p. 153), ou seja, um desinvestimento do objeto para garantir algum grau de consistência egóica, mesmo que paralisada e enrijecida pelas expressões afetivas da defusão pulsional. Nesse sentido, é a repetição que insiste na manutenção de um narcisismo marcado pela pulsão de morte, um narcisismo essencialmente negativo. Esse mecanismo descreve uma desobjetalização do outro simultânea a um auto-aniquilamento e destruição do ego com vistas à anulação das diferenças e da própria separação entre o sujeito e o objeto, daí a definição de um regime totalitário e monadológico do

próprio, um investimento narcísico extremamente defensivo e que visa à manutenção

do mínimo do eu e, portanto, extremamente empobrecido em seus potenciais vitais e libidinais: ―Onde não se admite a diferença, nem eu nem outro, nem sujeito nem objeto se constituem, e o paradoxal é que seja nesse nível que o próprio deva se afirmar, uma auto-afirmação no limite, uma vida in extremis‖ (FIGUEIREDO, 2003, p. 153). Essa é a imagem mais ilustrativa do chamado ―narcisismo de morte‖, onde o autor mostra seu alinhamento com as hipóteses de Green.

A terceira hipótese é de que dinâmica da pulsão de morte e o regime além do princípio de prazer, embora comporte todos os componentes da desobjetalização, do desinvestimento e da destruição dos vínculos representacionais e com o objeto, também fala de uma insistência da vida. A compulsão à repetição também expressa uma tentativa de ligação e restauração dos vínculos representacionais e com o objeto, é uma defesa primitiva contra o puro traumatismo e a efração energética: ―é a

repetição como insistência (muitas vezes, desesperada) na procura de um objeto vivo e saudável e na restauração dos objetos danificados ou mortos (FIGUEIREDO,

2003, p. 153)‖. Nesse sentido, é um movimento desesperado de cura, que se atualiza no próprio processo terapêutico como uma das formas da transferência – o que nos mostra que mesmo no nível mais fundamental do funcionamento psíquico e na constituição mesma do desejo atua uma formação de compromisso. A diferença é

que agora o compromisso é entre as próprias tendências pulsionais e não entre a libido e os imperativos morais.

Em suma, o autor nos propõe que:

A compulsão à repetição, comandada pela chamada pulsão de morte (1) reflete não só a tendência à descarga e ao zero de tensão, pela via destruição das diferenças e da dissolução de si e do outro, como, em vez disso, (2) uma afirmação e mesmo um preservação in extremis do próprio; e não apenas isso, como em vez disso, (3) uma reiterada procura do objeto primordial, uma procura que passa, justamente, pela (1) destruição das diferenças e dissolução de si e do outro, e assim por diante... (FIGUEIREDO, 2003, p. 154)

Como se vê, tem-se aí uma síntese bastante interessante e original sobre a pulsão de morte, na qual cada uma das hipóteses não deve ser tomada como exclusiva, mas sim regidas e entrelaçadas segundo a própria lógica suplementar que a análise epistemológica dessa problemática sugere.

Essa interpretação da pulsão de morte por meio de três vértices – um que reconhece a dimensão de descarga, outro que enfatiza o caráter mortífero do narcisismo e um terceiro que enfatiza, apesar de tudo, a insistência da vida – parece- me muito consistente com todo o desenvolvimento que foi feito neste capítulo sobre os limites e potenciais da problemática da pulsão de morte na metapsicologia. Em especial, parece-me articular de forma muito promissora as três características que a leitura sistemática dos textos freudianos sobre a pulsão de morte sugeriu, a saber: (1)

traumatismo e ligação; (2) desligamento e sentimento inconsciente de culpa; (3) agressividade e destrutividade.

Evidentemente, o pleno desenvolvimento dessa hipótese passa não só por um redimensionamento da problemática em Freud, mas também, pela incorporação das inovações teórico-conceituais e mesmo de perspectivas epistemológicas e ontológicas, de autores pós-freudianos.

O que me parece original e de valioso potencial heurístico nesse redimensionamento da compreensão da pulsão de morte é a ênfase no papel do objeto, enfatizado pela interpretação do desligamento em termos de um desinvestimento do objeto, ou desobjetalização. Além disso, temos também um redimensionamento geral da teoria das pulsões e da própria compreensão das origens do aparelho psíquico em função dessas relações constitutivas, ao colocar a gênese da pulsão em uma identificação primária com o objeto. Decorre daí, igualmente, o valor

das proposições de Green e Laplanche para o desenvolvimento da problemática das pulsões por esse caminho.

Embora todo esse percurso de construção teórica seja bastante interessante, devo admitir que com isso estou transcendendo um pouco os limites do recorte desta tese, que é analisar a problemática no horizonte interno à metapsicologia freudiana. Esse recurso, contudo, nos permitiu o esclarecimento de algumas questões que me parecem fundamentais por meio da contribuição desses comentadores. Ensaios e derivações à parte, voltemos então ao nosso foco.

5 O MODELO ESTRUTURAL DO APARELHO PSÍQUICO