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Capítulo 2: Zé Ramalho compositor e tradutor de Bob Dylan no Brasil

2.8 Anos 2000 e 2010

Zé Ramalho destaca-se pela inventividade em colocar em composições suas características de gêneros musicais brasileiros e estrangeiros, sem, no entanto, perder as referências de suas raízes nordestinas. Em 2000, Zé Ramalho lançou o álbum Nação

Nordestina, com o objetivo de “deixar um painel, ainda que incompleto, de autores e tradições

da cultura nordestina para gerações futuras” (KOLIVER, 2013, p. 123). O álbum duplo tem uma proposta política e social:

Meu trabalho se baseou nisto: na consciência política que o nordestino, considerado subdesenvolvido, tem. O nordeste é uma região subdesenvolvida com pessoas analfabetas, desnutridas e famintas – é essa a ideia que o Nordeste passa. Minha intenção foi mostrar que existe algo mais do que pobreza no Nordeste. A reunião dessas composições incomodou muito o poder, o objetivo era esse. Ao mesmo tempo que existe essa discriminação, o Nordeste é imprescindível para o país, cultural e produtivamente. A mão de obra em todas as grandes metrópoles do Brasil é nordestina. A começar por Brasília, que foi construída pela mão de nordestinos. (KOLIVER, 2013, p. 123)

Figura 63: capa do álbum Nação Nordestina

Disponível em:< https://zeramalho.com.br/sec_discografia_view.php?id=15>. Acesso em:26.dez.2019

A proposta do álbum Nação Nordestina nasceu do encontro de Zé Ramalho com o trabalho de um compositor alternativo que realiza um trabalho de raízes nordestinas:

A cena é mais ou menos esta: estou no interior da Bahia indo para uma apresentação, e na camioneta vejo uma fita no toca-fitas, que nem ligado está. É uma cópia caseira. Olho e descubro que é de um sanfoneiro paraibano chamado Flávio José, um cara que tem músicas maravilhosas mas que não está dentro do circuito apodrecido das grandes gravadoras. Ele tem seu próprio selo, grava seus trabalhos em casa, manda prensar, dentro de um esquema familiar. Ele anda por aí, fazendo seus shows, vendendo seus discos, e não se envolve com essas coisas de arrecadação, diretos, etc. Ele faz seu próprio jogo. Exímio sanfoneiro, canta muito bem. No fim, o cara da

camioneta me dá a fita de presente e diz para eu escutar em casa. Quando eu começo a escutar, a música que entra em meus ouvidos me inspira todo o projeto. Uma música que se chama “Meu país”, cujos autores são três caras da Paraíba que eu conheço. [...] O refrão da letra é o seguinte: “Tô vendo tudo, mas bico calado, faz de conta que eu sou mudo”. (KOLIVER, 2013, p. 124)

A canção mencionada na citação, composta por Livardo Alves, Orlando Tejo e Gilvan Chaves, é um dos destaques do álbum por sua letra, uma crítica política que permanece extremamente atual. O álbum conta com canções de autoria de Zé Ramalho e de outros compositores nordestinos, como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Lula Cortês, Oliveira de Panelas, Geraldo Vandré, João do Vale, Dominguinhos, Vital Farias (KOLIVER, 2013, p. 125). O trabalho teve participação de artistas nordestinos como Fagner, Dominguinhos, Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos, Ivete Sangalo, Elba Ramalho. A produção foi de Robertinho do Recife (KOLIVER, 2013, p. 131/2). Em 2001, o álbum foi indicado ao prêmio Grammy na categoria de melhor álbum de música regional. Assim como outros álbuns de Zé Ramalho, a gravação e a letra das canções estão disponíveis no seu site oficial, http://www.zeramalho.com.br/.

Zé Ramalho lançou em 2001 Zé Ramalho canta Raul Seixas, um álbum-tributo, também produzido por Robertinho do Recife. Ele relata que encontrou dificuldades com a autorização para utilização das composições feitas em parceria com outros autores, como Paulo Coelho (KOLIVER, 2013, p. 134/5). Ramalho incluiu no disco a canção “Para Raul”, composta por ele em homenagem ao amigo e ídolo.

Figura 64:capa do álbum Zé Ramalho canta Raul Seixas Disponível em:< https://zeramalho.com.br/sec_discografia_view.php?id=16>. Acesso em:26.dez.2019

No álbum O Gosto da Criação, de 2002, Zé Ramalho buscou representar a essência de sua voz criativa. Entre os artistas convidados estão os instrumentistas-compositores

Dominguinhos e Yamandu Costa. Segundo o próprio autor, as temáticas das canções são voltadas ao cotidiano (KOLIVER, 2013, p. 140); entretanto a composição “O Apocalipse de Zé Limeira” foge a essa característica.

O álbum Estação Brasil, de 2003, forma uma trilogia com Antologia Acústica (1997) e

Nação Nordestina (2000). Nele, Zé Ramalho grava canções de música brasileira cobrindo um

período de cerca de 50 anos, em um período que vai da Jovem Guarda ao movimento “Mangue Beat” (KOLIVER, 2013, p. 141), fazendo sua releitura de canções como “Águas de Março”, “Bete Balanço”, “Caçador de Mim”, “Planeta Água”, “Romaria”, “Meu bem querer”, “Malandragem dá um tempo”. Destacamos a gravação de “O Trenzinho do Caipira (Bachianas Brasileiras No. 2)”, de Heitor Villa-Lobos, com letra do poeta Ferreira Gullar.

Figura 65:capa do álbum Estação Brasil

Disponível em:< https://zeramalho.com.br/sec_discografia_view.php?id=18>. Acesso em:26.dez.2019

Como as parceiras são constantes no trabalho de Zé Ramalho, era esperado que ele celebrasse suas parcerias em um álbum. Em Parceria dos Viajantes, de 2007, ele gravou canções que compôs em parcerias com Zeca Baleiro (“O rei do rock”), Jorge Mautner (“Montarias sensuais”), Chico Cesar (“A nave interior”), Dominguinhos (“Porta de luz”), o grupo Cidade Negra (“Chamando o silêncio”), Oswaldo Montenegro (“Do muito e do pouco”), José Neumâne Pinto (“O norte do norte”), Robertinho do Recife (“Farol dos mundos”) (KOLIVER, 2013, p. 142).

O álbum Zé Ramalho da Paraíba, de 2008, exibe um registro histórico de sua obra, com shows realizados por ele no Nordeste entre 1973 e 1977, antes de ele se mudar para o Rio de Janeiro. Os shows, que misturavam música e performance, numa aura de protesto, marcaram o início da carreira de Zé Ramalho fora do circuito dos bailes e shows inspirados na Jovem Guarda, bem como sua expressão como autor, músico, poeta:

“Esses shows representam minha fase de primeiras realizações em palco. O teatro Santa Rosa, em João Pessoa, capital da Paraíba, foi o palco para essas montagens de meu tempo de rebeldia social. As músicas ainda estavam recém-acabadas e o tempo era de experiências psicodélicas, aberturas da mente e do corpo. O rock era o que sobressaía mais, eu ainda estava concluindo o meu processo de misturar essas formas musicais em meu trabalho: nordeste, pop, futurista e cheio de raízes” (KOLIVER, 2013, p. 144).

Entre 2008 e 2012, Zé Ramalho gravou álbuns-tributo a artistas que tiveram influência na sua carreira de. Em 2008, ele gravou Zé Ramalho Canta Bob Dylan – Tá Tudo Mudando, que em 2009 foi indicado ao prêmio Grammy latino na categoria de melhor disco de rock:

“Tenho fascinação por Dylan desde a Paraíba. Eu era um cara muito curioso. Na rádio Borborema de João Pessoa tinha um acervo de discos que nunca tocava na programação, o discotecário era meu amigo e deixava que eu mexesse em tudo. Eu gravava tudo isso em fita e ficava horas ouvindo em casa. Tive acesso a Dylan por meio desse processo. Longas letras como as de Dylan me fascinavam. Um puta poeta!!! Eu não sabia inglês direito na época, então pedia ajuda a professores. Eles traduziam para mim e eu ficava horas e horas escutando. Um grande mensageiro, um grande profeta! Aí eu pensava: você pode fazer uma música com uma história longa, sem se preocupar com o tempo, que vão tocar na rádio, fora dos padrões. Iluminou- me muito. Tudo que a gente ouve, a gente absorve. Você vai misturando com seu potencial próprio, seu talento [...]” (Depoimento dado a Jorge Salomão) (KOLIVER, 2013, p. 145)

Figura 66: capa do álbum Zé Ramalho Canta Bob Dylan - Tá Tudo Mudando Disponível em:< https://zeramalho.com.br/sec_discografia_view.php?id=66>. Acesso em:26.dez.2019

O álbum-tributo Zé Ramalho Canta Luiz Gonzaga, lançado em 2009, traz canções que estão entre as mais conhecidas de Luiz Gonzaga, como “Asa Branca”, “Pau-de-arara”, “Paraíba”, “Baião”, “ABC do sertão”, “Boiadeiro”, “Assum Preto”, “O xote das meninas”. Ramalho mantém ritmo e gênero das canções, combinando-as com seu próprio estilo e altura de voz, em gravações que foram realizadas ao longo de sua carreira, “um trabalho de garimpo e carinho, que revela todo o envolvimento que tive com esse artista único – o inventor do baião –,que inspira hoje e para sempre as gerações que procuram um algo misterioso que vem de longe e que dá segurança.” (KOLIVER, 2013, p. 142)

Figura 67:capa do álbum Zé Ramalho Canta Luiz Gonzaga Disponível em:< https://zeramalho.com.br/sec_discografia_view.php?id=67>. Acesso em:26.dez.2019

Outro álbum-tributo lançado em 2010 foi Zé Ramalho Canta Jackson do Pandeiro, no qual foram feitas releituras das canções, mas sem perder o ritmo que as caracterizou. Ramalho comenta que esse trabalho:

“É uma homenagem e uma reverência a esse mestre, um cancioneiro com o qual muito aprendi. Em 2009, lancei Zé Ramalho canta Luiz Gonzaga, e com esse trabalho completo o que eu chamo de ‘as colunas do templo da música nordestina’. Esses dois baluartes me forneceram conhecimentos determinantes para meu trabalho. Aprendi muita coisa com esses dois mestres”. (KOLIVER, 2013, p. 146)

Figura 68: capa do álbum Zé Ramalho Canta Jackson do Pandeiro Disponível em:< https://zeramalho.com.br/sec_discografia_view.php?id=68>. Acesso em:26.dez.2019

No álbum Zé Ramalho Canta Beatles, lançado em 2012, estão canções do grupo e canções gravadas em carreira solo, como “God”, de John Lennon, e “Another Day” de Paul McCartney. Em arranjos que contaram com violão, baixo, viola, pandeiro, triângulo, zabumba, sanfona, teclados, samplers e programações (ZÉ RAMALHO, 2019), Zé Ramalho

realizou gravações com sotaque brasileiro, tanto na melodia quanto no canto. Uma proposta ousada e genuína, que foi além do tributo, pois como ele próprio explica, o contato constante com as canções do grupo, ouvindo e cantando, fez com que essas composições fossem cada vez mais absorvidas, memorizadas, interiorizadas. Para Ramalho, “Isso possibilita, a partir do momento em que você pratica o instrumento, em meu caso o violão e a viola, procurar formatar de alguma maneira original minha interpretação para a música deles” (KOLIVER, 2013, p. 147).

Figura 69:capa do álbum Zé Ramalho Canta Beatles Disponível em:< https://zeramalho.com.br/sec_discografia_view.php?id=69>. Acesso

em:26.dez.2019

Em 2012, Zé Ramalho criou o selo Avôhai Music, para gravar e distribuir seu próprio trabalho. Essa criação, segundo o próprio Zé Ramalho, foi uma consequência do fim de gravadoras no cenário musical. O primeiro disco lançado pelo selo foi Sinais dos Tempos, que Zé Ramalho considera um trabalho que expressa sua maturidade artística (KOLIVER, 2013, p. 150). Nesse álbum, Zé Ramalho assina todas as composições, que apresentam as temáticas principais que permeiam seu trabalho: o aspecto místico-filosófico, o cotidiano, a questão sócio-política e o Nordeste, mais especificamente a cultura nordestina. A canção “Indo com o tempo” tem participação do músico Jesse Robinson, do Mississipi, tocando guitarra (KOLIVER, 2013, p. 151).