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Capítulo 1: Canções e Poemas de Bob Dylan

1.21 Rolling Thunder Revue

Em 1975, Bob Dylan já havia passado por grandes mudanças em sua carreira e em sua vida, havia lutado para expressar sua poesia e sua melodia e tinha conquistado seu próprio espaço dentro da cultura norte-americana. Mas, apesar de ter se tornado uma voz única dentro do folk, do rock, do country, dentro da música de seu país (e também fora dele), Dylan manteve os laços com o Village, um lugar que fora para ele uma espécie de berço musical, onde o embrião de sua genialidade musical se desenvolvera com uma liberdade que a fama tomara-lhe em parte: a de poder ir e vir, entrar e sair em bares, ouvir e ser ouvido, e principalmente poder experimentar e provar diferentes sonoridades e musicalidades com toda a vontade que um jovem pode possuir diante do novo. Dylan havia mudado, mas sua disposição para cantar e compor continuava tão forte quanto nos primeiros dias. Após visitar a família e gravar um tributo a John Hammond (seu primeiro produtor), ele teve a ideia de “uma turnê com clima circense pelo nordeste da América do Norte, com toda a ação sendo registrada por câmeras de cinema” (SHELTON, 2011, p. 617). Entre os músicos que compunham a banda de apoio estavam Howard Wyeth, Luther Lix, Mick Ronson (que tocara

com David Bowie), Scarlet Rivera, T-Bone Burnette e David Mansfield. Os cantores eram Dylan, Neuwirth, Ronee Blakley, Roger McGuimm, Jack Elliott e Joan Baez (SHELTON, 2011, p. 617). Dylan comentaria sobre a turnê: “Éramos todos muito próximos. Tínhamos aquele fogo dez anos antes, e agora ele voltou a arder” (SHELTON, 2011, p. 616). O poeta

beat Allen Ginsberg juntou-se ao grupo fazendo backing vocals. Diversos amigos foram se

juntando à turnê, que começou em outubro. Segundo Shelton (2011, p. 617), a Rolling

Thunder Revue chegou a contar com mais de cem pessoas; incluindo cantores, músicos,

seguranças, técnicos de som, organizadores, pessoal de filmagem.

Em 23 de outubro, em meio à preparação da turnê, Bob Dylan fez uma surpresa para Mike Porco (dono da casa Folk City, onde Dylan tinha se apresentado no início da carreira), e levou amigos como Joan Baez e Patti Smith para cantar o Happy Birthday e fazer outras canções. O show-surpresa foi filmado pela equipe da turnê (SHELTON, 2011, p. 618).

O clima da turnê era especial, algo entre amigável e familiar. Mas Dylan tinha mais surpresas preparadas. E gravou “Hurricane” em meio aos ensaios da turnê. A canção narra a história do boxeador Rubin Carter, que tinha sido condenado (juntamente com um amigo) à prisão perpétua, e por quem Dylan e outros artistas realizaram protestos pedindo a revisão de seu julgamento. Dylan escreveu a canção, com a colaboração de Jacques Levy, depois de ler a biografia de Carter, The Sixteenth Round, que ele próprio havia enviado a Dylan (SHELTON, 2011, p. 629). A canção narra a história do crime pelo qual Carter e o amigo John Artis foram reús; e o julgamento de ambos, considerado extremamente injusto por parte da sociedade. Um filme sobre a história de Carter, dirigido por Norman Jewison e estrelado por Denzel Washington, foi lançado em 1999, e teve a canção de Bob Dylan como tema principal.

A primeira parte da turnê teve concertos de outubro a dezembro, incluindo apresentações de apoio à Rubin Carter, como “Night of the Hurricane I”, em 8 de dezembro de 1975, que teve a presença do campeão Muhammad Ali, falando em defesa da causa (SHELTON, 2011, p. 630), e “Night of the Hurricane II”, em 25 de janeiro de 1976, que contou com a participação de Stevie Wonder, Carlos Santana, Ringo Starr e Stephen Stills, entre outros artistas. Dylan estava muito feliz e se relacionou bem com todos durante a turnê. E se reinventou:

A partir do fim de semana de Quatro de Julho e durante toda a etapa de primavera da Rolling Thunder, mudanças significativas foram observadas em Dylan. No palco, ele exibia grande mobilidade, movia-se como o cruzamento de um roqueiro dos anos 1970 com um técnico de futebol, que empurra seu “time” para a frente. O homem em movimento não tinha medo de mudar interpretações, letras, postura no palco, aparência. Dylan pintava o rosto com pancake. Usava echarpes multicoloridas, diferentes chapéus. Ele chamava tudo de “commedia dell’arte”. No primeiro show em Plymouth, as máscaras usadas pela banda também lembravam o gênero italiano

de comédia do século 16, no qual os atores improvisavam livremente. As pessoas com menos referências históricas viam a nova cara de Dylan como um rock teatral à la Bowie ou Peter Gabriel. (Dylan disse que a maquiagem ajudava as pessoas nas últimas filas a ver seu rosto.) Sempre explorador, Dylan tomava mais “liberdades” com as músicas a cada show. (SHELTON, 2011, p. 621)

A turnê teve a participação ocasional de diversos artistas, como Joni Mitchell, Robbie Robertson, Roberta Flack, Arlo Guthrie (cantor e compositor, filho de Woody Guthrie). Como Bob Dylan estava engajado na causa de libertar Rubin Carter (juntamente com outros artistas), a turnê teve canções dedicadas a ele, especialmente “Hurricane”. (SHELTON, 2011, p.622)

No dia 7 de dezembro de 1975, a turnê se apresentou na New Jersey State Prison, onde Rubin Carter cumpria pena de prisão perpétua. O caso foi revisto e Carter foi libertado meses mais tarde, mas a revisão de seu caso e o novo julgamento mantiveram a condenação de Carter e Artis. As acusações contra Carter só foram retiradas em 1988 (SHELTON, 2011, p.629).

Todas as ações realizadas pelos artistas e por todos os que se sensibilizaram por sua causa e se manifestaram em sua defesa contribuíram para que sua situação fosse mais conhecida dentro e fora dos Estados Unidos; além de representar apoio e força para que o ex- boxeador não desistisse de lutar pela revisão de seu caso. Sobre Dylan e seu envolvimento na causa, Rubin Carter disse: “As palavras são uma das drogas mais poderosas conhecidas pelo homem. Bod Dylan veio à penitenciária me visitar e eu conheci um homem que é pela vida e pelo viver, não pela morte e pelo morrer” (SHELTON, 2011, p.629).

Rolling Thunder Revue foi uma turnê única, tanto na carreira de Dylan quanto no

contexto da música popular norte-americana dos anos 1970. O grupo de músicos, técnicos, produtores e amigos liderados por Dylan fez apresentações e filmagens de improviso, e se permitiu realizar concertos não planejados originalmente. Além disso, o grupo se expressava livremente. Na visita ao túmulo do poeta beat Jack Kerouac, em Lowell, Massachusetts, Allen Ginsberg leu poesia, Dylan tocou violão e gaita e brincou com sua própria imagem midiática, deixando-se fotografar ao lado de uma estátua de Jesus Cristo. Tudo foi filmado (SHELTON, 2011, p.617-27).

Além do lançamento de uma caixa com CDs e discos de vinil (na verdade relançamentos) com gravações da turnê Rolling Thunder Revue, um documentário de Martin Scorsese foi lançado em junho de 2019 (Bob Dylan – The Official Bob Dylan Site, 2019). O documentário foi exibido pela NETFLIX.

Figura 18: capa do álbum The Rolling Thunder Revue: The 1975 Live Recordings (2019) Disponível em: <https://www.bobdylan.com/albums/bob-dylan-the-rolling-thunder-revue-the-1975-live-

recordings/ >.Acesso em:26.dez.2019.

A relação entre Joan Baez e Bob Dylan, outrora arranhada por desentendimentos e pelos rumos que cada um tomou em sua carreira, tornou-se renovada e reconstruída; e Baez disse em uma entrevista à revista Rolling Stone:

A sensação é ótima, porque todos têm espaço no palco [...] Bob tem um efeito muito poderoso sobre muitas vidas [...] Ainda sou profundamente tocada pelas canções [...] pela presença dele. Não vi nada parecido, a não ser em Muhammad Ali, Marlon Brando e Stevie Wonder. Bob entra num lugar e todos os olhos se voltam para ele. Há olhos em Bob quando ele está se escondendo [...] eu costumava ser muito crítica com ele[...] Não espero mais que Bob apoie as minhas causas. Aprendi que ele não é um ativista, o que não significa que ele não se importa com as pessoas. (SHELTON, 2011, p. 622)

Os shows da Rolling Thunder Revue tinham três horas ou mais de duração. A recepção geral era sempre muito calorosa e elogiosa: “Fãs, imprensa e participantes chamavam a turnê de ‘show de menestréis’, ‘espetáculo de variedades’, ‘turnê de mistério e mágica’, ‘jogo de dados musical flutuante’” (SHELTON, 2011, p.626). Apesar do clima harmonioso, a turnê teve pequenos problemas de organização, com alguns seguranças sendo descritos como “bando de brutamontes” por um jornal (SHELTON, 2011, p.627).

A turnê também manteve, no palco e fora dele, laços com a cultura nativa norte- americana. Shelton (2011, p. 619) lembra que “rolling thunder” (“trovão retumbante” em português), é uma expressão que significa “falar a verdade” para os nativos norte-americanos, e que Dylan teria ficado muito feliz ao saber disso. Em 16 de novembro, a trupe da Rolling

Thunder Revue foi fazer uma visita à reserva indígena Tuscarora. O grupo cantou, tocou e

também apreciou canções e danças dos nativos. Uma celebração digna do espírito da turnê concebida por Dylan (SHELTON, 2011, p.628).