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Sobre o processo criativo de Zé Ramalho como compositor e poeta

Capítulo 2: Zé Ramalho compositor e tradutor de Bob Dylan no Brasil

2.9 Sobre o processo criativo de Zé Ramalho como compositor e poeta

Zé Ramalho desenvolveu, paralelamente à sua obra como compositor e músico, trabalhos voltados para a poesia. Esses trabalhos se encontram disponíveis em seu site oficial , na página http://www.zeramalho.com.br/sec_livros_list.php. Além da influência da poesia de repente e de cordel na obra de Zé Ramalho como compositor, é oportuno destacar a influência do texto bíblico em seu livro Apocalypse. As imagens presentes nesse livro da Bíblia foram inspiração para esse trabalho, composto em versos em estilo Martelo Agalopado e Galope à Beira-Mar 1 (KOLIVER, 2013, p. 151). Ramalho comenta que o momento da composição dos repentistas é motivado por uma espécie de “transe”, um evento de natureza espiritual comparável ao mantra indiano. Ele lembra que a arte do repente corre o risco de se extinguir em virtude das mídias atuais, mas acrescenta que o improviso dos rappers significa uma continuidade dessa forma de expressão (KOLIVER, 2013, p. 158).

Indo além da presença do repente e do cordel, com suas regras definidas, Zé Ramalho explora em seus livros a união entre poesia e prosa poética. Em Carne de Pescoço, explora a intertextualidade com sua própria obra, ao explicar seu “AVÔHAI / AVÔ & PAI” (ZÉ RAMALHO, 2019). Em Pássaro Cativo, uma narrativa simbólica traz a história do momento de libertação de Neon Lupo de Gás, homem comum que se torna homem-pássaro e é abatido em pleno voo. No cordel A peleja de Zé do caixão com o cantor Zé Ramalho (ZÉ RAMALHO, 2019), o personagem de José Mojica Marins e Zé Ramalho são retratados com elementos típicos desse gênero, entre imagens de natureza religiosa e do imaginário popular.

Figura 70: capa do livro Pássaro Cativo

Figura 71: capa do livro A Peleja de Zé Ramalho com Zé do Caixão Disponível em:< https://zeramalho.com.br/sec_livros_view.php?id=14>. Acesso em:26.dez.2019

Zé Ramalho também foi tema de poemas de cordel escritos por outros poetas: Peleja

de Zé Ramalho com Raul seixas, de Silas Silva, de Campina Grande, Peleja de Zé Ramalho com Zé Limeira, de Arievaldo Vianna, e Peleja de Severino Noé com Zé Ramalho na Terra de Avôhai, de Afonso Costa (ZÉ RAMALHO, 2019).

Figura 72: capa do livro Peleja de Zé Ramalho com Raul Seixas Disponível em:<https://zeramalho.com.br/sec_livros_view.php?id=20>. Acesso em:26.dez.2019

Figura 73: capa do livro Peleja de Zé Limeira com Zé Ramalho da Paraíba Disponível em:<https://zeramalho.com.br/sec_livros_view.php?id=17>. Acesso em:26.dez.2019

Figura 74: capa do livro Peleja de Severino Noé com Zé Ramalho na Terra de

Avôhai

Disponível em:<https://zeramalho.com.br/sec_livros_view.php?id=18>. Acesso em:26.dez.2019

Outro elemento da cultura nordestina presente na obra de Zé Ramalho é o movimento do cangaço. Zé Ramalho ressalta a contribuição que os cangaceiros trouxeram para a música, lembrando que o ritmo do xaxado nasceu entre eles, pois “eles marcavam o ritmo da dança com o pé e o cabo da espingarda” (KOLIVER, 2013, p. 158). Ramalho expressa sua relação com o universo dos cangaceiros:

O cangaço sempre estará presente em meu trabalho, com sua loucura e ousadia. Lampião, Antônio Silvino, Padre Cícero, Frei Damião, Antônio Conselheiro são pessoas que misturam religiosidade, política e loucura, selvageria e muita violência. É o caldeirão nordestino, cheio de figuras messiânicas, visionários, profetas loucos... O Nordeste é cheio dessas histórias, que me impressionaram muito, porque eu venho daí. Os cangaceiros eram cabeludos, eram todos popstars. Era uma coisa selvagem e ao mesmo tempo de uma plasticidade estranha... As pessoas correndo no meio daqueles garranchos, vestidas com aquelas roupas esquisitas. Isso deixou toda uma série de contos, que foram transmitidos por meio de cordel, dos contadores de histórias, que andavam pelos sertões. (KOLIVER, 2013, p. 164)

Outro fator importante nas criações de Zé Ramalho é a dimensão mística, às vezes motivada por estados alterados de consciência. Ramalho buscou combinar elementos simbólicos em composições, como em “Mote das Amplidões”:

[...] O dia estava amanhecendo, e eu estava louco para dar uma olhada nos arredores [...]. Havia muitos pássaros cantando, em meio a uma natureza exuberante, e em determinado momento eu me deitei na beira de um regato que passava perto da varanda. Fiquei olhando para o céu, que estava claro, e ouvindo o barulho de água correndo, e de repente comecei a sentir uma vibração ao redor, que parecia partir da frequência do barulho da água... Era o som da natureza em sua forma pura. Era o som do OM que parecia provir de uma gigantesca harpa. Que coisa linda! Foi um

êxtase muito profundo. Eu imaginei a amplidão do que eu estava sentindo, o firmamento, o poder dos sons da natureza, e o quanto são limitadas nossas percepções ordinárias. Tudo aquilo provocado por um pequeno regato. Foi essa experiência que inspirou o “Mote das Amplidões”. Surgiram as imagens mitológicas do cavalo Pégaso... [...] (KOLIVER, 2013, p. 162)

A letra da canção “Frevo-Mulher” é definida por Zé Ramalho como “extremamente psicodélica e surreal” (KOLIVER, 2013, p. 164), também foi escrita em uma situação de estado alterado de consciência:

A intenção, com “Frevo-Mulher”, era fazer algo para a Amelinha gravar. Tudo que veio naquele momento veio sem elaboração. Está mais próximo da mediunidade do que da intelectualidade, foi uma descarga elétrica que eu recebi. Eu sabia que a ambiguidade estava correndo solta: elementos como pessoas e como forças da natureza. Homens que eram inverno, homens frios, e outros que eram verão, quentes e também como verbo, irão ver. Outonos caindo secos no solo da minha mão. São as rimas mais ricas “ar” e “ão”. Aquilo estava saindo direto, eu não analisava, porque senão se perde a impetuosidade, típica da idade. [...] “O tempo sacode a cabeleira”, eu imaginava a cabeleira do tempo enorme, com fios vermelhos. (KOLIVER, 2013, p. 162)

Koliver (2013, p. 259) comenta os principais símbolos e imagens presentes na obra de Zé Ramalho, destacando o elemento feminino, presente em canções como “Mary mar”, “Frevo-mulher”, “Mulheres”. Outro elemento abordado por por Koliver (2013, p. 267) são os cabelos, presentes nas composições “Frevo-mulher”, “Táxi Lunar”, “Banquete dos Signos”. A imagem do cometa é outro elemento presente em mais de uma composição: “Galope Rasante”, “Martelo Rap-Ecológico”, “Cidades e Lendas”, “Pepitas de Fogo”, “Kriptônia”, “Metrópolis Dourada” (KOLIVER, 2013, p. 270).

Zé Ramalho teve a imagem de “profeta da caatinga” associada à sua obra, e credita esse fato a certos fatores, como sua apresentação física no começo da carreira, usando cabelos compridos e às vezes uma capa longa e um chapéu, que fazia lembrar um personagem de

Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Entretanto, ele afirma que mesmo ao

mudar seu visual nos anos 1980, a essa imagem de “profeta” continuou associada a ele; e que as letras de suas canções (principalmente nos primeiros álbuns), com figuras mitológicas contribuíram, em grande parte, para criar essa imagem. Zé Ramalho não se sente incomodado com esse fato, e considera que sua origem nordestina é um fator que reforça essa visão, pois afirma que “A coisa do profeta está também ligada ao sertão do Nordeste, por causa de Antônio Conselheiro, e de todas essas figuras messiânicas que andaram e ainda andam por esses sertões” (KOLIVER, 2013, p. 198). Alceu Valença, ao comentar sobre a obra de Zé Ramalho, também ressalta essa imagem profética:

Passávamos a noite tocando viola e fazendo desafios na casa de amigos. Identifiquei-me muito com a figura do Zé por ele ser do interior, do sertão, como eu. Zé Ramalho é uma pessoa mística, e acredita naquilo que diz, no discurso que faz, e isso lhe dá um grande carisma. [...] O carisma de Zé Ramalho está associado à sua figura profética. O conteúdo de sua poesia é enigmático, mas existe um sentido. Ele procura sempre, ou quase sempre, deixar uma mensagem, transmitir algo. Por meio de todas as suas metáforas, esconde-se um discurso pleno de lógica. (KOLIVER, 2013, p. 228)

As raízes nordestinas de Zé Ramalho possuem uma dimensão maior, pois seria incompleto considerar o começo de seu trabalho como algo individualizado, fora do contexto brasileiro dos anos 1970. Geraldo Azevedo lembra a importância do chamado “movimento nordestino” dessa década, quando diversos artistas nordestinos tornaram-se mais conhecidos em todo o país, projetando seus trabalhos principalmente do Sudeste, mais precisamente do eixo Rio-São Paulo, onde estavam sediadas grandes gravadoras e emissoras de TV. O movimento revelou ao país, entre outros, Alceu Valença, Zé Ramalho, Raimundo Fagner, Amelinha, Belchior. Geraldo Azevedo considera que esse movimento não recebeu, à época, a devida atenção por parte da mídia, mas “representa um marco cultural muito importante, no fim do século XX. É um movimento muito ligado à terra, às raízes, e o Zé Ramalho é um grande representante disso” (KOLIVER, 2013, p. 219/220).

A obra de Zé Ramalho tem sido objeto de estudo dentro e fora do contexto acadêmico. O livro Zé Ramalho: o profeta do terceiro milênio, de Isaac Soares de Souza, de João Pessoa aborda o desenvolver da carreira de Zé Ramalho em São Paulo e no Rio de Janeiro e comenta influências em sua carreira. Também foram publicados os trabalhos Zé Ramalho: o ancestral

da palavra, de Manoel Monteiro, de Campina Grande; e Zé Ramalho: um visionário no século XX, de Luciane Alves, do Rio de Janeiro (ZÉ RAMALHO, 2019).

A dissertação de mestrado Do rock ao repente: identidades híbridas nas canções de Zé

Ramalho no contexto da década de 1970, de Jandynéa de Paula Carvalho Gomes, depositada

na Universidade Federal da Paraíba em 2012, estuda canções que integram a obra de Zé Ramalho na década de 1970; considerando, a partir do conceito de hibridação, elementos poéticos e culturais brasileiros presentes.

A dissertação de mestrado A/C Zé Ramalho – Eu, ele e a escrita (auto)biográfica, de Cristina Fuscaldo de Souza Melo, depositada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 2015, analisa obra e vida de Zé Ramalho através de narrativa autobiográfica e com apoio de correspondências e entrevistas com Zé Ramalho e pessoas que integram sua história, com a perspectiva de uma análise da relação entre a autora e o artista biografado.

Atualmente está sediado em Brejo da Cruz, na Paraíba, o Acervo Cultural Zé Ramalho, que possui uma página no Facebook,26. O Acervo Cultural Zé Ramalho é gerido pelo fotógrafo Aurilio Santos, também natural de Brejo da Cruz, que cuida pessoalmente do material existente em seu interior. O acervo esteve sediado em endereços anteriores, mas atualmente está localizado na Rua José Alves Ramalho, em Brejo da Cruz. O Acervo Cultural Zé Ramalho realiza atividades culturais como encontros literários, recitais de poesia, exposições fotográficas, lançamentos de cordel, eventos de danças folclóricas e outros. Aurilio Santos programa para 2020 o lançamento do livro “Zé Ramalho na Literatura de cordel” (SANTOS, 2020). Abaixo reproduzimos depoimento de Zé Ramalho sobre o Acervo Cultural Zé Ramalho:

É assim, o Aurílio Santos que espontaneamente começou a reunir o material ligado ao meu trabalho. Isso tudo partiu da cabeça dele, que é um cara sensível, fotógrafo, tem uma pegada muito boa com as lentes das câmaras dele, cuida muito bem da minha relação com o Sertão, com Brejo do Cruz minha terra. Ele é inclusive um cara que nasceu lá também, e vem cuidando do que ele chama de o Acervo Cultural Zé Ramalho, acho assim, uma forma muito sensível, muito romântica, a partir do momento que ele faz isso por amor, por carinho mesmo, por admiração pelo meu trabalho, eu só tenho que agradecer a ele. Procuro ajudar no que é possível, fornecendo material, coisas raras, ou eu encaminho através da minha produtora ou ele conhece minha família em João Pessoa e, recebem também muitas conexões, pra obter informações, de qualquer forma, eu agradeço ao Aurílio, essa carinhosa atenção pelo meu trabalho. Espero que ele continue até onde dê com essa sua empreitada, e que revele também seu lado artístico como fotógrafo, que isso lhe dure tempo, até onde for possível. Domus Hall. João Pessoa-PB / 21 de janeiro de 2012 (SANTOS, 2020).

Figura 75: Acervo Cultural Zé Ramalho Fonte: Aurilio Santos (2020).

O livro Zé Ramalho na Literatura de cordel (2019), de autoria de Aurilio Santos e Kydelmir Dantas, é uma coletânea de poesia de cordel sobre e de Zé Ramalho. O trabalho faz importante registro da poesia de cordel escrita por Zé Ramalho, em metalinguagem, numa intertextualidade que dialoga com a obra do homenageado. Merece destaque a inclusão de imagens dos trabalhos de cordel.

Figura 76:Livro Zé Ramalho na Literatura de cordel (capa e contracapa)

Fonte: Aurilio Santos (2020)

Ao longo de sua jornada até este momento, Zé Ramalho transitou entre gêneros e idiomas, entre música e poesia, entre Nordeste e Sudeste, entre rock, música popular e os elementos da cultura nordestina. A obra de Zé Ramalho permanece aberta a estudos, interpretações e compreensões de sua dimensão poético-musical. Algumas dimensões de sua contribuição para a tradução de canções estão analisadas neste estudo.