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As misericórdias orientavam a sua actividade caritativa tendo por matriz as catorze obras de misericórdia. Programa ambicioso que procurava garantir a satisfação de algumas das necessidades básicas de uma população carenciada, assegurando uma dieta mínima, roupa e calçado, mas também o apoio na doença. De igual forma se encontra uma impressiva intervenção no apoio disponibilizado a homens e mulheres a contas com a justiça, desde que as acusações suportadas não colidissem com o disposto nos compromissos. Não menos importante era a realização de cerimónias fúnebres adequadas e os correspondentes ofícios religiosos. Concluído o apoio na Terra, culminava ‑se o programa caritativo estabelecendo uma ligação para o Além, através das missas e de outros actos de culto em benefício da alma.

É dentro deste extenso território de intervenção que se encontra, desde os primeiros anos, um grupo numeroso de pobres a quem as santas casas procuravam atenuar um dia a dia marcado pela precariedade. Muitos desses assistidos beneficiavam de apoio regular, constando de listas que permitiam a vigilância dos que vulgarmente eram designados como os “pobres do rol”. Por esta via é possível identificar grupos de carenciados que ao longo de vários anos permaneciam nas listagens de beneficiários. Além destas esmolas de carácter regular havia ainda o atendimento que era feito aos que se abeiravam das instituições, configurando as chamadas “esmolas aos pobres da porta”. Porém, ao pretender ‑se analisar mais de quatro séculos de vida de uma instituição, que em geral obedecia a um modelo que nas suas linhas estruturantes assentava no definido na Misericórdia de Lisboa, deve ter ‑se na devida conta a variabilidade de procedimentos e adaptações aos diferentes contextos locais. Antes de mais, essas mutações resultam do normal processo de nascimento e afirmação de cada misericórdia, além das contingências próprias de tempos de expansão e recessão do panorama económico e social da localidade em que se inseriam, acrescendo o facto de terem recebido a influência da mudança operada em termos de assistência numa cronologia tão alargada1. Espaço e tempo constituem duas variáveis fundamentais quando se pretende

caracterizar a população assistida.

Nos alvores de Quinhentos, quando as primeiras misericórdias se fundaram, é possível distinguir práticas de caridade ainda muito tributárias da tradição medieval, esmolando ‑se sem grandes marcas discriminatórias os pobres que se aproximavam das instituições. Na verdade, nota ‑se alguma indefinição entre uma pretensão de estender a caridade a todos os que procuravam auxílio junto dos benfeitores e

* CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» – Universidade do Minho.

1 Sobre a evolução do pensamento e atitudes perante a pobreza no Portugal Moderno, ver LOPES, Maria Antónia – Protecção Social em Portugal

práticas activas de selecção e discriminação. Encontram ‑se igualmente algumas reminiscências de rotinas tardo ‑medievais através da marca religiosa do acto de esmolar. O assistido contribuía com as suas orações para a salvação do assistente, numa peculiar conta corrente entre o Céu e a Terra2. A carta de 1518 enviada

pelo rei D. Manuel à vereação da Câmara do Porto, exortando à renovação do apoio à Misericórdia local, assenta igualmente nessa ligação estreita entre a disponibilização da esmola terrena e o “galardão espiritual” que retribuía3. Encontramo ‑las sobretudo na primeira metade do século XVI, o que indicia uma maior relação

de proximidade entre esses pobres e a instituição que disponibilizava o auxílio, indicador de que se estava ainda sob a influência das práticas medievais de caridade. Muitas vezes as misericórdias eram também meras intermediárias no processo de distribuição de esmolas, estabelecendo a ponte entre o doador e os pobres. Esse foi o procedimento adoptado pelo Duque de Bragança, em 1532, ao ordenar a entrega na Misericórdia de Arraiolos de 3.000 reais para distribuir por uma lista de 75 pobres, oscilando as esmolas entre os 20 e os 80 reais, entregues “segundo a sua necessidade”, no julgamento da Mesa4. Porém, gradualmente, começou

a observar ‑se a existência de mecanismos de selecção, os quais impunham aos candidatos à esmola a demonstração da dupla condição de necessitados e merecedores. Veja ‑se a preocupação da Misericórdia de Redondo, em 1578, ao deliberar sobre as esmolas que eram concedidas no Natal, sobretudo porque se entendia que algumas eram entregues a quem não exibia efectivas necessidades, assentando que os irmãos procurassem averiguar a verdadeira condição dos pobres a fim de se decidir em Mesa5. Ao caminhar ‑se para

o final do século XVI começam a sentir ‑se as peias de um conjunto de formalismos, ditados também pelo crescimento das confrarias e o consequente aumento do número de providos.

Era muito variado o leque dos pobres assistidos pelas diversas esmolas que resultavam da actividade caritativa das misericórdias. Para a primeira metade do século XVI, os registos existentes são relativamente escassos em elementos caracterizadores dos beneficiados, geralmente arrumados em designações genéricas e com reduzidos elementos de identificação. A partir da centúria seguinte o nível de detalhe da informação disponibilizada melhorou consideravelmente, sendo possível estabelecer uma síntese das esmolas distribuídas. Apesar disso, deve ter ‑se presente que nem tudo se registava, fosse pela necessidade de resguardar a identidade de certos providos, fosse pelas incipientes práticas consolidadas de escrituração. Isso mesmo se verificava em registo da Misericórdia de Torres Vedras referente a 1597, onde o escrivão anotou terem sido assistidas outras pessoas, mas de que não se fazia lembrança nesse registo6. Porém, seja

qual for a geografia e o tempo considerados, constata ‑se a prevalência de um grupo numeroso de pobres de ambos os sexos, ainda que maioritariamente feminino. Muitas misericórdias só proviam os homens que se revelassem de todo incapazes de garantir o sustento, caso dos cegos ou dos entrevados, como se distingue numa lista de assistidos na Misericórdia de Monção, em 16307. Em 1705, em Aljustrel, figuram apenas três

homens numa lista de 80 beneficiados8, identificando ‑se cenários idênticos em Alcochete em 16109, ou em

Almada, em 165110. Todos procuravam manter uma existência com o mínimo indispensável à subsistência,

ou à manutenção do estatuto social. Na verdade, para uma esmagadora maioria, a grande questão que diariamente se colocava não era como viver, mas procurar um meio de sobreviver11.

2 Ver SÁ, Isabel dos Guimarães – As Misericórdias Portuguesas de D. Manuel I a Pombal. Lisboa: Livros Horizonte, 2001, p. 126. 3 Ver PMM, vol. 3, p. 324. 4 Ver PMM, vol. 4, p. 377 ‑382. 5 Ver PMM, vol. 4, p. 507 ‑508. 6 Ver PMM, vol. 5, p. 400. 7 Ver PMM, vol. 5, p. 495. 8 Ver PMM, vol. 6, p. 455 ‑457. 9 Ver PMM, vol. 5, p. 437. 10 Ver PMM, vol. 6, p. 387 ‑388.

Pelos registos disponíveis constata ‑se esse amplo espectro de esmolas e esmolados. Com maior ou menor sucesso, muitos eram os que se abeiravam das instituições procurando auxílio na busca de uma solução para problemas pontuais ou permanentes. Provavelmente muitos foram os que não conseguiram reunir os requisitos fundamentais que os tornassem credores dessas esmolas. As misericórdias impunham regras comportamentais, registando algumas em livro próprio os cortes resultantes das sanções aplicadas, como acontecia em Setúbal12. Nas petições apresentadas identifica ‑se a preocupação em declarar que não

se dispunha de meios suficientes para garantir o sustento devido à doença ou a qualquer outra incapacidade para o trabalho, visando tornar claro que a pobreza não resultava da ociosidade, como se documenta para Coimbra13. Porém, muitos foram os que colheram sucesso, passando a integrar o rol dos que eram

regularmente contemplados.

Ao pobre era exigido que demonstrasse ser merecedor do óbolo. O acesso à caridade institucional era um processo muitas vezes dificultado por mediações com diferentes protagonistas e de intensidade variável, obrigando o candidato a um “processo de certificação” que tornasse documentalmente válida a sua condição de pobre. Esta imposição processual assumia diferentes graduações, desde a simples petição escrita para a esmola ocasional, até a um grau superior de complexificação que poderia exigir o recurso a testemunhos abonatórios e múltiplas certificações. Estão neste conjunto os candidatos à inscrição num rol de providos com esmola permanente, ou de uma forma ainda mais notória, as mulheres que pretendiam obter um dote que lhes permitisse casar. A obrigatoriedade de percorrer sucessivas etapas conducentes à obtenção do benefício, obrigava, na maior parte dos casos, à intervenção de um outro agente que se responsabilizava pela formalização escrita da petição. A condição de pobre era objecto de múltiplas e sucessivas fases de exposição14.

Dinheiro e géneros alimentares eram as esmolas mais frequentes; a roupa e o calçado também figuravam nas listas. A roupa assumia o duplo papel de protecção do corpo, mas também do estatuto. Na verdade, as ofertas constituídas por tecidos em peça e acessórios permitiam a um tipo especial de pobres manter as aparências, exibindo uma disponibilidade económica que poderia constituir um travão ao seu resvalamento na escala social. Tais esmolas obedeciam ao mesmo calendário das demais acções caritativas das santas casas, podendo ser entregues na satisfação das habituais petições que chegavam à instituição, como resultante do normal provimento do rol de pobres existente na confraria, na distribuição realizada em festas de particular destaque para a instituição, ou numa única doação por conta de legados testamentários. Exemplos desta multiplicidade de ocasiões encontram ‑se em várias misericórdias de norte a sul, por exemplo em Almada15 ou em Vila Alva16. Algumas destas práticas mantiveram ‑se activas ao longo do século XIX,

como se identifica, entre outras, em Guimarães17, Aveiro18, Leiria19, Redondo20 ou Castelo de Vide21.

O vestuário tinha muita importância nas esmolas disponibilizadas pelas misericórdias. Roupa que se comprava ou se mandava confeccionar, mas também a que era legada pelos benfeitores da instituição,

12 Ver ABREU, Laurinda Faria dos Santos – A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal de 1500 a 1755: aspectos de sociabilidade e poder. Setúbal: Santa Casa da Misericórdia, 1990, p. 75.

13 Ver LOPES, Maria Antónia – Pobreza, assistência e controlo social. Coimbra (1750 ‑1850). Viseu: Palimage Editores, 2000, vol. II, p. 200. 14 Processos idênticos ocorriam noutros contextos geográficos. No século XVIII havia em Madrid notários especializados em subscrever

documentos que atestavam a condição de pobre, ver MAZA ZORILLA, Elena – Pobreza y hospitalidad publica en la ciudad de Valladolid a mediados del siglo XVIII. Investigaciones Históricas. 3 (1982) 39.

15 Ver PMM, vol. 6, p. 389. 16 Ver PMM, vol. 8, p. 494. 17 Ver PMM, vol. 8, p. 476. 18 Ver PMM, vol. 7, p. 480.

19 Ver IAN/TT – Chanc. de D. Maria I, Doações, Ofícios e Mercês, liv. 61, fl. 211 ‑211v. 20 Ver PMM, vol. 8, p. 358.

e ainda a que ficava dos doentes que faleciam nos hospitais destas confrarias. Quando não era reclamada pelos herdeiros, nada era desperdiçado, sendo reutilizada no circuito habitual das esmolas ou então conferia‑ ‑se ‑lhe uma nova utilidade. O registo dos objectos e roupas deixados pelos doentes falecidos no hospital da Chamusca em 1874, fornece um bom exemplo das sucessivas reutilizações desse espólio22.

Alguns dos pobres que constavam da lista regular dos providos eram assistidos em contexto domiciliar, pelo que as visitas constituíam um dos momentos de forte impacto da actividade caritativa da instituição. Ao aproximar ‑se desses beneficiados os irmãos assistiam os doentes e consolavam os que sofriam, praticando dessa forma a quarta obra de caridade espiritual que impunha “consolar os tristes e desconsolados”23, mas também eram elevados pelos esmolados a um pedestal de reconhecimento. Havia

um movimento biunívoco de ganhos entre os que recebiam e os que se viam reconhecidos pela intervenção nas práticas de caridade. Quando se interrompia esse fluxo, sobretudo se resultava de causas externas à instituição, as misericórdias faziam a devida referência, como se vê em Goa, em 1741, com os lamentos da Mesa por não atribuir as habituais esmolas da porta há bastante tempo, devido à falta de pagamento da verba que a Fazenda Real deveria disponibilizar para o efeito24.

Esta acção deveria desenrolar ‑se tendo presente um conjunto de regras que pretendiam colocar os intervenientes ao abrigo de qualquer tipo de suspeição, sobretudo quando a visita tinha as mulheres por destinatárias, mormente no caso de uma mulher só. O Compromisso de Lisboa de 1577 é inequívoco sobre a necessidade de se garantir a honra e o bom ‑nome das pessoas envolvidas. No capítulo 20, regulando a actividade dos visitadores, tornava ‑se claro as especiais precauções que deviam ser tomadas, pois que “avendo ‑se de admitir a visitação da somana alg˜ua molher que for só, se fará com muita consideração”25.

Muito diferente era a situação de um outro tipo de pobres cujo estatuto de dependência económica resultava de processos de progressiva perda patrimonial, correndo o risco de resvalarem para a desqualificação social. Esmolas que procuravam salvaguardar o estatuto dos beneficiados e família. Seria esta a preocupação da Misericórdia de Sintra ao votar, em 1567, uma esmola de um cruzado a um homem fidalgo, atendendo à sua pobreza e ao facto de ter mulher e filhos26. Esses eram os chamados pobres

envergonhados, cuja presença se faz sentir em muitos dos escritos sobre a condição dos necessitados27. Ao

longo do período em análise constituíram ‑se como um dos grupos mais representados entre os beneficiados pelo apoio regular das misericórdias, uma prática que ia ao encontro da atenção que lhes era dedicada pelas disposições do Compromisso. No texto de 1516, o capítulo IX tinha precisamente o título: “De como ham‑ ‑de visitar os emvergonhados”28.

As crianças constituíam outro dos grupos com maior representação dentro das preocupações caritativas das misericórdias, na linha do que já se verificava em épocas precedentes, como se colhe, por exemplo, no que determinava o regimento de 1495 da Confraria dos Clérigos de Montemor ‑o ‑Velho: “Mandamos que criem todos os meninos a que nom parece may nem pai”29. Por norma, qualquer lista

de pobres destinada ao provimento de esmolas em dinheiro, géneros alimentares, roupa ou calçado, sinaliza sempre elementos infantis, seja qual for a geografia e o arco temporal considerados. Evidencia‑ ‑se tal preocupação em Cochim, através de uma carta enviada ao rei a propósito das dificuldades sentidas

22 Ver PMM, vol. 8, p. 424 ‑427. 23 Ver PMM, vol. 3, p. 394. 24 Ver PMM, vol. 6, p. 516.

25 COMPREMISSO da Irmandade da Casa da Sancta Misericordia da cidade de Lisboa. Lisboa: Antonio Alvarez, 1600, p. 13. 26 Ver PMM, vol. 4, p. 452.

27 Sobre a evolução do conceito de “pobre envergonhado”, leia ‑se RICCI, Giovanni – Naissance du pauvre honteux: entre l´histoire des idées et l´histoire sociales. Annales Économie Sociétés Civilisations. 36:1 (1983) 158 ‑177.

28 Ver PMM, vol. 3, p. 415. 29 PMM, vol. 2, p. 105.

pela Misericórdia, afirmando ‑se que cada vez havia mais órfãs, tanto de portugueses como dos naturais da terra30. Identifica ‑se inquietação semelhante em Mora, cerca de um século e meio mais tarde, estabelecendo

um contrato para a criação de dois órfãos, pagando 15 alqueires de centeio31. Esta presença constante

traduz a preocupação com que eram inseridos na actividade corrente da instituição, bem como o facto de constituírem um verdadeiro problema social. As santas casas estabeleciam uma idade limite para que os órfãos pudessem gozar de apoio, geralmente muito baixo, à luz dos actuais conceitos de infância, como era o caso de Évora que através de uma deliberação de 1636 o fixou em sete anos32.

O apoio que era disponibilizado articulava ‑se segundo duas grandes linhas de intervenção, ou seja, através do habitual programa de concessão de esmolas, ou ainda através de linhas particulares de assistência, consubstanciadas no apoio às crianças expostas, bem como na administração de colégios de órfãos. A partir do século XIX, algumas misericórdias avançaram com um novo modelo de actuação, materializado na criação e administração de estabelecimentos de ensino, ou de esmolas para o seu financiamento corrente, como se explicitará adiante.

Nos colégios de órfãos procurava ‑se, antes de mais, garantir a satisfação das necessidades imediatas que permitissem a sobrevivência dos internados. Em Coimbra, a Misericórdia tinha sob directa administração, em 1866, dois estabelecimentos deste tipo, albergando cada um, 33 jovens. Garantia ‑lhes vestuário e alimento, “bom e abundante, e talvez superior à classe de pobres”, como defendia no seu relatório, o provedor em final de mandato33. Subsequentemente, tentava ‑se assegurar ‑lhes uma autonomia

futura. Para o efeito pretendia ‑se conferir ‑lhes a aquisição de competências que lhes permitissem a independência quando abandonassem a instituição, geralmente através da aprendizagem de um ofício, pela saída para as colónias ou alistando ‑se como militares. Encontra ‑se esta dupla via em 1651 na Misericórdia de Vila Viçosa através de uma resposta do rei D. João IV a uma carta do provedor. Na missiva dava ‑se anuência a que se desse uma esmola de saída a um rapaz que estava no colégio dos meninos órfãos, caso embarcasse para o ultramar ou então que prestasse serviço militar nas fronteiras34.

A par das crianças apoiadas pela Misericórdia, havia um outro grupo de assistidos que aparece desde os primeiros registos destas instituições, mas que, ao longo dos anos, vai sofrendo sucessivas reconfigurações, fruto da evolução do posicionamento do Estado face aos problemas colocados pela população infantil. Eram as crianças abandonadas à nascença, habitualmente designados por “expostos” ou “enjeitados”35. A sua criação, embora se possa integrar na órbita da actividade caritativa das misericórdias,

resulta sobretudo da incorporação de muitos hospitais locais no universo patrimonial dessas confrarias. Tratou ‑se, todavia, de um processo que não teve desenvolvimento uniforme ao longo dos anos, além de apresentar notórias variabilidades regionais.

Em termos gerais, a coroa entendia essa responsabilidade no quadro das funções do poder local. Contudo, ao longo do período em análise é possível encontrar diferentes abordagens na assistência aos expostos, com protagonistas diversos e mudanças de orientação estratégica. Enquanto numas localidades eram as câmaras que procuravam eximir ‑se a essa responsabilidade, transferindo ‑a para as misericórdias,

30 Ver PMM, vol. 4, p. 373. 31 Ver PMM, vol. 5, p. 479. 32 Ver PMM, vol. 5, p. 512. 33 Ver PMM, vol. 8, p. 388. 34 Ver PMM, vol. 6, p. 192.

35 Além destes termos, há outras variações regionais para classificar estas crianças. No Alto Minho surge por vezes o vocábulo “postiça”, ver FONTE, Teodoro Afonso da – No limiar da honra e da pobreza: a infância desvalida e abandonada no Alto Minho (1698 ‑1924). Tese de doutoramento apresentada à Universidade do Minho. Braga: [s.n.], 2004, p. 121.

noutras eram estas que se disponibilizavam para assumir esse encargo. Vejam ‑se dois exemplos da década de 60 do século XVI em três misericórdias distintas.

Em Braga a responsabilidade pela criação de enjeitados competia à autoridade concelhia36.

Todavia, a vereação procurava trespassar essa responsabilidade, transferindo ‑a para a Misericórdia, argumentando precisamente com a administração que esta exercia sobre o Hospital de S. Marcos. Nos termos de uma notificação do executivo municipal, enviada em 1561, invocava ‑se um costume segundo o qual a Santa Casa, enquanto administradora do referido Hospital, tinha obrigação de criar os enjeitados que aí fossem colocados, bem como na gafaria37. Um século e meio depois, em Leiria, a Santa Casa

mostrava determinação em continuar a responsabilizar ‑se pela criação de enjeitados, embora o fizesse com o auxílio da comparticipação concelhia. Nos termos de uma exposição dirigida à coroa, afirmava ‑se que numa eventual transferência dessa responsabilidade “poderião suceder muitos dezamparos e mortes nos ditos engeitados”38. Já a situação verificada em algumas misericórdias alentejanas traduz as diversas

abordagens que se verificavam nos diferentes contextos regionais. Enquanto algumas procuravam através de variada argumentação furtar ‑se a assumir responsabilidades, outras integravam de motu proprio essa função nas suas práticas de caridade. Está neste grupo a de Serpa. Ali, a Misericórdia manifestava determinação em integrar a criação de enjeitados como uma das componentes da sua prática caritativa. Através de um alvará régio de 1567, constata ‑se que eram os seus dirigentes a invocar a insuficiência de rendas concelhias como argumento determinante para fazerem regressar à instituição esse encargo39. Parece ressaltar desta atitude