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Os capitais: tenças, padrões de juro e empréstimos

Inês Amorim*

2. A formação do património: financiamento e

2.2.2 Os capitais: tenças, padrões de juro e empréstimos

Como se viu, a acumulação de legados transportou, para o seio das misericórdias, hábitos anteriores à criação das santas casas. Não se trata de uma prática que lhe fosse exclusiva, porque outras confrarias (em Portugal como na Europa e mesmo Novo Mundo) associavam irmãos que fizeram fortunas à volta da cobrança de juro, encomendando sufrágios pela sua salvação do purgatório e, por outro, para sustentação dos legados e capelas, praticaram o empréstimo a juros138. Na verdade, logo em 12 de Agosto

de 1502, uma carta régia concedera um padrão de juros anual, de dez mil reais de esmola, à confraria da Misericórdia de Tânger para que fossem despendidos em obras pias139, princípio que se multiplicará no seio

das misericórdias, decorrente destas doações por iniciativa régia e particular.

A prática de cobrança de juros e do seu reinvestimento eram inevitáveis. Instituições como a Misericórdia do Porto viram ‑se, obrigatoriamente, empenhadas numa gestão de juros, sobretudo desde que recebeu o importantíssimo legado de D. Lopo de Almeida, constituído por juros perpétuos cobrados desde a Galiza até Roma140, ou quando se viu obrigada a avaliar os dinheiros da Índia141, ou em gerir, por vezes

de forma conflituosa, os atrasos nos pagamentos dos padrões de juro142. No caso de Lisboa, em 1621, a

Misericórdia só em letras, correspondendo ao pagamento de juros, movimentou 11508 cruzados e 357 réis (ou seja, 4 603. 557 réis), provenientes “da India e de outras partes fora do reino”, o que equivaleria a 20% do total das receitas desse ano143.

Se o processo de acumulação de verbas era decorrente dos legados, também é bem verdade que se observam quer entradas de padrões de juros, por via dos legados, quer porque a Misericórdia “compra a x”, o que não são mais do que empréstimos, ou, sob outra expressão, “venda de x” à Misericórdia. Por exemplo, entre muitos, e apenas para o ano de 1589, a Misericórdia de Lisboa regista uma carta de padrão de juro no valor de 100 mil reais assentes na Alfândega de Lisboa, comprado pela Misericórdia e Hospital de Todos os Santos dessa cidade. E, ainda no mesmo ano, uma carta de padrão de juro, no valor de 400 mil reais, foi vendido à Misericórdia de Lisboa por Francisco Rodrigues de Elvas144.

Se familiarizadas com a gestão dos juros, eram ‑no, também, em grande medida, porque sofriam a pressão da administração central na compra de padrões de juro145. Caso paradigmático é o do período

da Guerra da Restauração que criou na Misericórdia do Porto resistências e cedências a empréstimos ao financiamento da mesma, ao ponto de a instituição, em 1665, passar por grandes dificuldades financeiras146.

Assim, no ano de 1659, comprou um padrão de juro no valor de 500 mil réis, à fazenda régia, para ajuda das despesas da guerra na comarca de Entre Douro e Minho147, que só em 1683 virá a ser reconhecido como

138 Ver DEHOUVE, Danièle – La réglementation du crédit: quelques définitions. In CHAMOUX, Marie ‑Noëlle, [et al.], dir. – Prêter et emprunter:

pratiques de crédit au Mexique. Paris: Ed. Maisons des Sciences de l’homme, 1993, p. 5; BERTHE, Jean ‑Pierre – Taux d’intérêt, cens et dépôts

en Nouvell ‑Espagne. In CHAMOUX, Marie ‑Noëlle, [et al.], dir. – Prêter et emprunter: pratiques de crédit au Mexique. Paris: Ed. Maisons des Sciences de l’homme, 1993, p. 19.

139 Ver PMM, vol. 3, doc. 120.

140 Ver BASTO, Artur de Magalhães – História…, cit., vol. 2, p. 23 ‑32.

141 Trata ‑se de entregas efectuadas pela Misericórdia do Porto e registadas no livro Do dinheiro da Índia, na segunda metade do século XVI, ver BASTO, Artur de Magalhães – História,…cit., vol. 1, 456 ‑461.

142 Ver PMM, vol. 5, doc. 274.

143 Dados calculados por GRAÇA, L.; GRAÇA, J. – História das misericórdias Portuguesas: II Parte [History of the Portuguese Holy Houses of Charity.

Part Two], 2002 (http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos70.html, consultado em 27 Agosto 2011).

144 Ver PMM, vol. 5, p. 81 (documentos de 1589, Agosto 27, e de 1589, Setembro 18). 145 Ver ABREU, Laurinda – Misericórdias: patrimonialização… cit., p. 5 ‑24.

146 Ver ARAÚJO, Maria Marta Lobo de – As Misericórdias e a guerra de Restauração: a contribuição financeira da Santa Casa do Porto. In CONGRESSO DE HISTÓRIA DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DO PORTO, 1, Porto, 2009 – A solidariedade nos séculos: a confraternidade

e as obras: actas. Porto: Santa Casa da Misericórdia, 2009, p. 287 ‑300.

dívidas e, como tal, a Misericórdia autorizada a cobrar 599 529 réis de retroactivos de juros, referentes a dívidas dos anos de 1659 e 1665148.

É certo que se assistiu, neste processo, a uma evolução na própria tolerância ao empréstimo, sempre que houvesse uma razão superior que legitimasse a sua existência149. No século XVIII, a questão

da articulação entre moral, utilidade e felicidade desenvolveu ‑se no sentido de que o interesse individual, inerente ao empréstimo (e ao juro), sendo legítimo, não se orientaria espontaneamente no sentido do interesse público, a não ser que sob as regras estabelecidas pela lei, pelo Estado. Só a intervenção deste esvaziaria de sentido moral as atitudes particulares (lícitas ou ilícitas), sempre que fossem canalizados para o serviço público – e, por isso, tornaram ‑se úteis ao interesse geral da sociedade150. Por isto mesmo,

quando o Marquês de Pombal se apercebeu do capital acumulado, entendeu as vantagens que havia em movimentá ‑lo, mas acautelando ‑se. Nesta linha, em 1768, foi promulgado um alvará régio prescrevendo as normas a observar pela Misericórdia de Lisboa quando emprestasse dinheiro a juro151. A partir de então,

qualquer autorização teria que passar pela Mesa do Desembargo do Paço, com os devidos registos dos montantes, hipotecas e fianças, como se observa na seguinte ordem: “mando que para maior segurança das sobreditas consignaçoens e pagamentos todas as pessoas que pedirem dinheiro a juro declarem nos seus requerimentos, com a maior distinção e clareza: primo a quantia que pedem; secundo, os bens que

à segurança della hipothecam, com a especificação do que valem de capital e do que costumam render

annualmente; tercio, que ajuntem os titulos das propriedades hipothecadas e seus arrendamentos; quarto e finalmente que sobre tudo o referido exhibam o justo calculo dos annos que as sobreditas consignaçoens mostrarem necessários para a extensão dos capitaes e juros na sobredita forma”152.

A evolução deste processo mereceria uma avaliação quantitativa, aqui impraticável. Mas, qualitativamente, multiplicam ‑se os casos de reconhecimento das dívidas à Misericórdia de Lisboa, e da sua renegociação, aspecto comum, certamente, a outras misericórdias153.

2.3 As lotarias

Em 1783 iniciou ‑se o movimento de criação de lotarias em Portugal, aprovado por decreto da rainha D. Maria I, pelo qual, a pedido da Misericórdia de Lisboa, esta foi autorizada a criar uma lotaria, cujos lucros se deviam repartir em três partes iguais a reverter para o Hospital de S. José, Casa dos Expostos e Academia Real das Ciências. O cálculo era o de um capital de trezentos e sessenta mil cruzados, distribuindo‑ ‑se os bilhetes até perfazerem a referida importância154. Em 1785, uma ordem régia continha um plano e

instruções sobre o funcionamento da lotaria da Misericórdia de Lisboa155, clarificando e publicitando os

procedimentos de impressão da lotaria, prémios e selecção de números. Poucos anos depois, em 1792 surge

148 Ver PMM, vol. 6, doc. 69.

149 Sobre o assunto em geral, ver CAILLÉ, Alain; LAZZERI, Christian; SENELLART, Michel – Histoire raisonnée de la philosophie morale et politique:

le bonheur et l’utile. Paris: Ed. La Découverte, 2001, p. 277.

150 Ver CAILLÉ, Alain; LAZZERI, Christian; SENELLART, Michel – Histoire raisonnée de la philosophie… cit., p. 407. 151 Ver PMM, vol. 7, doc. 21.

152 PMM, vol. 7, p. 76.

153 Ver PMM, vol. 7, rubrica 1.2.3.1. Sumários de chancelarias, p. 107 a 161. 154 Ver PMM, vol. 7, doc. 91.

a do Porto156. Outras se seguiram, com o movimento de lançamento de lotarias a estender ‑se a Coimbra,

em 1807, a Aveiro em 1821, a Valença em 1827157.

As motivações eram sempre idênticas, a saber, a falta de verbas para a edificação de imóveis ou a sustentação de despesas. Mas a sua fundação e legitimidade levantou problemas morais e mesmo económicos. A propósito da criação da Misericórdia de Belém do Pará, em 1805158, eles foram apresentados.

O desembargador, procurador da coroa, argumentava que “o objecto era digno de contemplação, o meio, porem, era funesto”. As razões apontadas eram, simplesmente, o facto de a lotaria ser origem “de grandes males, fazendo jogar aos pobres hum jogo muito insensato e prejudicial para que os creados e escravos illudidos pela esperança de grandes lucros, enganavão e roubavão os amos e senhores, e os caixeiros e comissarios arrancavam o dinheiro a alheio”159. Defendia ‑se que seria, reconhecidamente, um mal geral que

atingia igualmente as misericórdias do continente. Contudo, e observe ‑se a argumentação, estas operações ainda se faziam mais prejudiciais no Brasil “pelo grande numero que havia de escravos ladinos, molatos espertos e comissarios industriosos”160.