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Ana Isabel Coelho Silva*

2. Desvio à norma

Misericórdia de Goa, no ano de 1742, em aceitar para irmão um antigo servidor que tinha sido “porteiro de massa”139, outras houve em que a norma não foi cumprida, como no caso dos cristãos ‑novos, que, apesar

da proibição, continuaram a ser admitidos em algumas instituições140.

Com a admissão na Misericórdia, os irmãos adquiriam uma série de deveres, definidos nos compromissos, consubstanciados quer em tarefas concretas, quer num comportamento que se queria modelar. O facto de o Compromisso de 1618 dedicar um capítulo específico às situações em que se aplicava o despedimento ou risco de irmãos remete, desde logo, para o eventual desrespeito daquelas obrigações, o qual já foi abundantemente comprovado em diversos estudos sobre misericórdias, para todas as épocas. A admoestação e a expulsão de irmãos foram motivadas, entre outros aspectos, pela desobediência ao provedor ou à Mesa; pelo confronto verbal ou mesmo físico com outros irmãos ou mesários; pelo aproveitamento da sua posição privilegiada no governo da instituição em benefício próprio, quer em termos financeiros (arrematação de bens da Misericórdia, empréstimo de dinheiro), quer ao nível da economia matrimonial ou inclusivamente das relações pessoais íntimas141; pelo desrespeito da Misericórdia em actos públicos,

que podia consistir no simples descuido com os trajes a envergar, questão sensível dada a importância da imagem e da representação para estas instituições; pela recusa no cumprimento de tarefas consideradas desprestigiantes ou pela falta de comparência aos actos da Irmandade, em particular aos enterros142.

A importância e a recorrência do problema da desobediência e do desentendimento entre irmãos são sugeridas pelo facto de ser a única causa de admoestação e expulsão contemplada nos compromissos de Lisboa de 1498 e 1516143. Foi em respeito ao Compromisso, adoptado em 1586 e fortemente inspirado

naqueles, estipulando que “não deve ser irmão dela senão homens simples e brandos”, que a Mesa da Misericórdia de Aveiro votou, em sessão de 10 de Maio de 1609, o risco do irmão Manuel Rodrigues, acusado de ofensas públicas a Francisco Cardoso, provedor em exercício, por este ter tentado cobrar ‑lhe verbas em dívida144.

Entre os restantes compromissos analisados, o do Fundão de 1685 fornece um testemunho de conflito entre irmãos, particularmente grave por ambos já terem sido provedores. Entre as notas marginais tomadas no documento original, resumindo decisões e actos posteriores, destaca ‑se a seguinte, assinada por um terceiro provedor: “Que nenhum Irmão seja descomposto, ou de escandalos nos actos, & ajuntamentos da Irmandade; & das penas que porisso terá”: “Risquei as notas que abaixo estavão escriptas por serem escandalosas as chufas que continhão e jogavão entre si dois irmãos que havião sido provedores”145.

O desrespeito pela obrigação de possuir roupas adequadas à imagem pública da Irmandade é ainda patente, por exemplo, numa das disposições da Mesa da Misericórdia de São João da Pesqueira de

139 ARAÚJO, Marta Lobo de; PAIVA, José Pedro – Introdução. In PMM, vol. 6, p. 14.

140 Ver a referência que lhes é feita na apostila ao Compromisso da Misericórdia de Peniche de 1629 ‑1632, atrás citada. O incumprimento a este nível é também demonstrado, por exemplo, pelo facto de, ainda em 1648, o rei ter emitido um alvará a proibir a admissão de cristãos ‑novos na Misericórdia de Lagoa. “E em 1717, já bem entrado o século XVIII, na de Monchique, um chegou a ser eleito para tesoureiro da Mesa”, cf. ARAÚJO, Marta Lobo de; PAIVA, José Pedro – Introdução. In PMM, vol. 6, p. 14.

141 Neste caso, é sintomático que uma das causas de despedimento de irmãos prevista no Compromisso de Lisboa de 1618 seja o facto de tratarem casamento para si ou para outrem com as recolhidas na Casa das Donzelas, administrada pela Misericórdia, sem ordem expressa da Mesa, ou terem “amizade escandaloza” com essas recolhidas, com visitadas da Santa Casa ou suas filhas ou com as órfãs dotadas no ano em que servissem na Mesa. Tratava ‑se de uma questão de tal modo sensível e susceptível de macular a imagem pública da Casa que, para a condenação do irmão, “bastarà provar ‑se contra elle a fama com probabilidade calificada ainda que se não prove effeito da tal desordem, porque nas materias desta calidade tanto prejudica ao bom credito e reputação da Irmandade a fama como a obra”, ver PMM, vol. 5, p. 279 ‑280.

142 Podem colher ‑se vários exemplos de todas estas situações nas diversas introduções e nos documentos publicados nos volumes anteriores desta colecção. Ver, por exemplo: PMM, vol. 4, p. 12 ‑13; vol. 5, p. 28 ‑29; vol. 6, p. 23; vol. 7, p. 20 ‑21.

143 Ver PMM, vol. 3, p. 386 e p. 412.

144 Ver Arquivo da Misericórdia de Aveiro – PT ‑SCMAVR/SCMA/B/01/1/59. Sumário em http://infogestnet.dyndns.info/infogestnet2007/Default. aspx.

3 de Maio de 1771, anexada ao Compromisso de 1755. Este obrigava todos os novos irmãos a apresentar em Mesa, antes do juramento, vestes “de cor preta, ao menos de sarja e que não dem escandalo por serem rotas”, tendo dois meses para as reformar caso se estragassem, sob pena de risco (cap. 10)146. A disposição

era enquadrada por palavras apologéticas da virtude da humildade, citando ‑se o episódio da Visitação, mas esclarecendo ‑se que “esta humildade de coração se não deve extender ao ornato modesto, conforme a possibilidade de cada hum, principalmente nos actos publicos a que for a Irmandade encorporada”. Em 1771, a Mesa constatava o incumprimento desta norma, havendo “irmãos aceytes a mais de quinze annos sem terem vestes, nem com ellas assistirem as procissões da Caza, nem aos enterros”, e reforçava o estipulado no Compromisso147.

A fuga dos irmãos ao desempenho de tarefas socialmente menos prestigiantes, como os peditórios ou a distribuição de alimentos aos presos, era sintoma do crescimento das misericórdias e da reputação que ganhavam, levando a que muitos se preocupassem mais com as actividades de representação do que com a prática das obras. Reflectia, portanto, a elitização destas instituições. Ao longo dos séculos XVI e XVII, registam ‑se casos de contratação de assalariados para a realização daquelas tarefas, que os compromissos atribuíam aos irmãos148. O pejo na recolha de esmolas levava, já em meados do século XIX,

a comissão que elaborou o Compromisso de Vila Flor a justificar com a necessidade de humildade cristã a inclusão de um capítulo obrigando os irmãos a realizar peditórios em favor da Irmandade (cap. XIV). A Casa recolhia esmolas para acudir aos pobres desde a fundação e não havia motivo para que um acto praticado por tantas gerações “pareça a mais d’um duro de cumprir”; os antepassados “não reputavam indecoroso às suas pessoas e ierarchia irem, de porta em porta, de povoação em povoação, pedir e colher esmolas”; “O nosso amor proprio e vaidade talvez se resinta, mas então mais meritorio se torna o cumprimento d’um tal dever”149.

A tarefa cujo cumprimento mais problemas terá levantado foi, porém, a do acompanhamento dos enterros, sendo inúmeros os testemunhos de fugas a esta obrigação, sobretudo registos de sessões das Mesas dando conta de expulsões, punições e procura de soluções, como o escalonamento mensal dos irmãos ou penas pecuniárias. Veja ‑se, por exemplo, a tentativa de reforçar este dever no espírito dos irmãos patente em acta de sessão da Mesa da Misericórdia de Aveiro, de 28 de Outubro de 1654, em que se decidiu gravar numa tábua e fixá ‑la na sala da tumba – onde os irmãos se reuniam para formar o cortejo fúnebre – o artigo do Compromisso que obrigava todos a participar no enterro de irmãos falecidos150.

Também os compromissos dão conta destas preocupações, como é o caso do de São João da Pesqueira (1755), que, estipulando aquela obrigação, fixava uma multa de 30 réis por cada falta, ou mesmo a pena de expulsão, havendo inclusivamente um irmão eleito anualmente para procurador e fiscal destas condenações. As disposições anexadas ao Compromisso, em 1771, dão conta da “pouca observancia” do regulamento àquele nível e do “pouco zello que ha nos irmãos desta Irmandade no enterro dos defuntos”. Foi necessário determinar que “se dem escritos aos mezes para os irmãos hirem com suas vestes aos enterros que sucederem nos mezes que lhe forem lanssados e o que faltar acompanhar os enterros que se fizerem no seo

146 O Compromisso da Misericórdia de Galizes também dedicava um original capítulo, o último, a esta questão, estipulando com detalhe que os novos irmãos comprassem, no prazo de um mês após a sua admissão, “veste de sarge ou estamenha preta, a qual sera tão comprida que ao menos chegue a cobrir meia perna, aberta por diante com sua murça que cubrira mais de meio braço com seu capello”, ver PMM, vol. 6, p. 290.

147 Ver PMM, vol. 7, p. 288. Preocupações idênticas em Vila Flor, Compromisso de 1854, cap. III.

148 Ver, por exemplo, XAVIER, Ângela Barreto; PAIVA, José Pedro – Introdução. In PMM, vol. 4, p. 13 e ABREU, Laurinda; PAIVA, José Pedro – Introdução. In PMM, vol. 5, p. 28.

149 PMM, vol. 8, doc. 91, p. 156.

150 Ver Arquivo da Misericórdia de Aveiro – PT ‑SCMAVR/SCMA/B/01/7/99. Sumário em http://infogestnet.dyndns.info/infogestnet2007/Default. aspx.

mes será condemnado na pena de duzentos reis […] e alem disso será riscado irremediavelmente sem que por outra Meza possa ser admetido, sem que haja provizam de Sua Magestade”151.

Ao longo da história das misericórdias, um dos maiores focos de turbulência interna e de corrupção foram as eleições para a Mesa. A atenção concedida a este aspecto pela reforma do Compromisso de Lisboa de 1577 e, sobretudo, pelo de 1618, pode ser encarada como uma resposta aos problemas que se faziam sentir. O Compromisso de 1618 incluía mesmo a corrupção eleitoral, ou “fazerem parcialidades e negociaçõens para sy ou pera outrem no tempo das elleições”, entre as causas de expulsão de irmãos (cap. 3º). Apesar do estipulado, o crescimento das misericórdias fez com que o seu governo fosse cada vez mais apetecido, tornando as suas eleições vulneráveis a procedimentos menos correctos, com “a tendência para forjar o seu resultado através de acordos e conluios pré ‑eleitorais entre os irmãos”152. Tais faltas levaram

à intervenção do poder régio, por vezes em resposta a denúncias de irregularidades ou a pedido das próprias instituições. Particularmente no período filipino e, mais tarde, durante o pombalismo, épocas em que foi mais evidente a acção da coroa sobre as misericórdias, aquela interferência manifestou ‑se, consoante a gravidade das situações, na fiscalização das eleições por funcionários régios, na nomeação de provedores ou mesmo da totalidade dos mesários ou na recondução de Mesas por largos anos, neste caso para viabilizar obras de grande vulto, dificultada pela rotatividade anual das administrações153. Na principal Misericórdia

do Reino, cujas desordens eleitorais motivaram abundante correspondência entre os vice ‑reis e Madrid, entre 1605 e 1613, dando conta de fraudes, subornos e corrupção154, a intervenção do poder central

culminou na dissolução da Mesa e na nomeação dos seus dirigentes, a partir de 1834.

A arbitragem régia foi necessária, por exemplo, para solucionar o conflito eleitoral que se arrastou na Misericórdia de Peniche entre 1686 e 1688, bem como para repor a legalidade do Compromisso de 1629, que fora emendado nas passagens relativas ao número de eleitores. Em 1686 a existência de “sobornos públicos” levou a que a eleição se fizesse “a uma voz” por toda a Irmandade, isto é, de forma directa, sem eleitores, contra o estipulado no Compromisso. Por carta régia de 20 de Maio de 1688, foram dadas ordens ao provedor da Comarca de Leiria para anular essa eleição, tendo ‑se realizado outra em 1688, já na presença do provedor e respeitando o processo indirecto, com a escolha de dez eleitores155. No entanto, esta não fora

a única irregularidade praticada na Casa de Peniche e relacionada com as eleições, visto que, sobretudo nos primeiros tempos da instituição, fundada em 1626, era frequente o desrespeito pela rotatividade obrigatória na ocupação dos cargos dirigentes. Segundo o Compromisso de 1629, não poderiam ser eleitos para provedor e mesários os que tivessem ocupado esses cargos nos dois anos anteriores (cap. 4º); porém, “a necessidade de estruturar a Irmandade, a dedicação e o esforço financeiro necessário […] levaram a que o cargo de provedor se mantivesse na pessoa do Conde de Atouguia, ou em familiares seus”, verificando ‑se também, pelo menos até ao final do século XVII, a repetição de pessoas ou famílias nos lugares da Mesa, num processo de favorecimento de elites e clientelas156.

Foi igualmente numa situação de incumprimento da rotatividade, neste caso dos eleitores, associada à existência de subornos, que o provedor e os irmãos da Misericórdia de Aveiro escreveram ao rei pedindo a sua intervenção. Em resposta, por provisão de 1625, D. Filipe III mandava que não se votasse para eleitores em pessoas que o tivessem sido nos dois anos anteriores e que os eleitores não pudessem

151 PMM, vol. 7, p. 287 ‑288.

152 Ver, por exemplo, SÁ, Isabel dos Guimarães – As Misericórdias…, cit., p. 38. 153 Ver LOPES, Maria Antónia – As Misericórdias…, cit., p. 85.

154 Ver ABREU, Laurinda; PAIVA, José Pedro – Introdução. In PMM, vol. 5, p. 19.

155 Ver FERREIRA, Florival Maurício – A Santa Casa…, cit., p. 390, nota 1040, p. 78 ‑79, nota 148 e notas das p. 92 ‑93. O traslado da carta régia está publicado na p. 457.

escolher ‑se a si próprios ou elementos que tivessem servido como mesários nos dois anos passados, o que correspondia ao estipulado no Compromisso de Lisboa de 1618 (cap. 4º e 5º)157. Mais tarde, já em

meados do século XVIII, uma provisão de D. José I dirigida ao provedor da comarca de Esgueira, ordenando que fizesse cumprir o Compromisso e mais provisões da Misericórdia de Aveiro quer quanto ao governo financeiro da Casa, quer em relação às eleições, indicia novo incumprimento158.

Por fim, pela sua clareza, merece ser citado o relatório da comissão redactora do Compromisso de Vila Flor de 1854, que justificava da seguinte forma a introdução de eleições directas: “A eleição por meio de pautas ou eleitores dava e deu azo a muitos abusos, e o menor talvez não foi a facilidade dada ao provedor de, a arbitrio seu, alterar a escolha da Mesa, pois que além do desempate dos votos, podia limpar o menos votado, ou chamar mesmo quem não recebera voto algum, o que infelizmente succedeu mais d’uma vez, mesmo nesta nossa Santa Casa, como se vê d’algumas actas antigas e modernas, e dos protestos e queixas d’alguns irmãos lesados.” No caso de Vila Flor, os registos de actas consultados pareciam demonstrar que as irregularidades eleitorais começavam em 1771, tomando várias formas, a saber: apenas a Mesa cessante assistia à eleição, sem a convocatória e a participação de toda a Irmandade; o escrivão do ano anterior era à partida o provedor da nova Mesa, sem ser eleito como os restantes mesários; não era o provedor da Mesa cessante quem fazia o apuramento da nova, etc.159

O desvio em relação ao estipulado não se limitava aos membros da Irmandade, estendendo ‑se ao seu por vezes vasto corpo de funcionários remunerados. Para além dos muitos e variados testemunhos de situações de conflito e despedimento de assalariados, por incumprimento das suas obrigações, que poderiam aduzir ‑se, é significativa a justificação dada no Compromisso de Lisboa de 1618 para a introdução de um capítulo relativo à vigilância sobre aqueles, onde se lê: “a esperiencia tem mostrado que aonde não ha vigilancia sobre os ministros sempre se achão faltas de consideração, principalmente servindo por respeito de interece” (cap. 39º), pelo que se faria anualmente inquirição sobre todas as pessoas à conta da Casa e não irmãos, começando pelos capelães.

Outra área que motivou abusos foi a administração patrimonial e financeira, que, como vimos, se complexificou com a crescente importância destas instituições, reforçando ‑se, em paralelo, a vigilância e a intervenção da coroa160. Tendo sido as heranças a principal via de enriquecimento patrimonial destas

instituições, em novo capítulo sobre a aceitação e cumprimento de testamentos, o Compromisso de Lisboa de 1618 evidenciava preocupações com problemas ligados à execução, que provavelmente já teriam sido sentidos, estipulando uma série de cuidados a ter para os evitar, como dever a Casa recusar ser testamenteira quando a fazenda deixada não fosse “certa e liquida”, de modo a poder ‑se logo cumprir o testamento, pois de contrário “se seguem demandas e queixas dos legatorios e accredores que causam notavel perturbação e muitas vezes descredito da Irmandade” (cap. 28º).

Já no século XVIII, complicações diversas ligadas à administração da Santa Casa do Funchal estiveram na origem da reforma de 18 de Maio de 1773, que reforçava o Compromisso de 1631, sem o alterar no essencial, visando que a Misericórdia “torne aos seus antigos, santos costumes”. Os autores da reforma pretendiam que esta tivesse o carácter de exemplo, orientado a Misericórdia “a hum verdadeiro e Santo exercício pelo a acharmos toda relaxada nos santos costumes com que foi ereta”, e, simultaneamente,

157 Com a diferença de que os eleitores não podiam eleger os mesários dos três anos anteriores, ver Arquivo da Misericórdia de Aveiro – PT ‑SCMAVR/SCMA/A/01/8/30. Sumário em http://infogestnet.dyndns.info/infogestnet2007/Default.aspx.

158 Ver Arquivo da Misericórdia de Aveiro – PT ‑SCMAVR/SCMA/A/01/8/39v. Sumário em http://infogestnet.dyndns.info/infogestnet2007/Default. aspx.

159 Ver PMM, vol. 8, p. 157 ‑158.

permitisse “evitar os superflus gastos que se fazia sem necessidade em prejuízo do património dos pobres”161.

Em primeiro lugar, proibia ‑se a entrega de esmolas aos pobres que pediam de porta em porta, bem como às amas “e mais comansaos da Caza”, pelo provedor, no dia da sua tomada de posse, pois nem aqueles pobres “necessitam tanto”, nem o cargo de provedor foi criado com aquele ónus, “gastando nella quantia avultada e no fim do anno suprir a falta da despeza regulada pela Receita”. De resto, aquelas práticas eram consideradas “mais acto de vangloria que de serviço de Deos, porque se quizeram exerceram a sua piedosa vontade o poderam fazer em casa de orfãs, honestas e recolhidas, dos pobres presos, ora enfim com os mesmos pobres do hospital”. Acrescentavam ‑se, depois, tópicos específicos de reforma para os vários cargos desempenhados pelos irmãos (escrivão, tesoureiros, mordomos dos presos e do Hospital, irmãos informadores sobre os bens dos pobres) e para os servidores assalariados (capelães, médicos, cirurgiões, moços), destacando ‑se o dever do escrivão observar “inteiramente” o Compromisso, “sendo tudo visto por ele examinando as operasoens dos mais menistros da Caza”. Em diversas passagens, insiste ‑se na necessidade de corrigir “o superfluo gasto e mau costome que a corrusam tem entroduzido”. Por todo o documento perpassa a preocupação com o respeito pelo estipulado no Compromisso, que não vinha a verificar ‑se, em particular com a correcta administração financeira da Casa e o bom governo do património, em benefício dos pobres.

O mau governo dos rendimentos das misericórdias, em alguns casos acusadas de os canalizar preferencialmente para as celebrações religiosas, em detrimento da prática assistencial, terá levado, no século XIX, a nova intervenção do poder régio, primeiro através da portaria de 4 de Dezembro de 1822, que ordenou aos provedores de comarca o envio de relações exactas de todos os encargos assistenciais e religiosos das misericórdias162, e sobretudo por meio de outras portarias de 1835 e 1836. Emanadas do

novo regime liberal, atribuíram aos governadores civis o poder de inspeccionar as contas das misericórdias, informando ‑se sobre os seus bens, rendimentos e despesas, e ordenando aos administradores dos concelhos a resposta a um inquérito sobre a situação daquelas instituições, com o objectivo de fazer cessar “os escandalosos abusos” que se cometiam163.

Por fim, uma breve referência à prática assistencial, nem sempre coincidente com o estipulado nos compromissos, variando em função das disponibilidades financeiras das misericórdias, da vontade dos testadores ou instituidores de legados, das necessidades sociais, dos constrangimentos legais ou impostos pelo poder central e do valor simbólico e representativo atribuído às diferentes práticas. Vejam ‑se, por exemplo, a atribuição de dotes a órfãs nubentes e a remissão de cativos, previstas nos Compromissos