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De 1618 ao final do século X

Ana Isabel Coelho Silva*

1.2 De 1618 ao final do século X

O Compromisso da Misericórdia de Lisboa de 1618, aprovado por alvará régio de 19 de Maio e cuja primeira impressão data de 1619, foi o mais duradouro dos seus regulamentos, vigorando até 183452.

Surgiu em pleno período filipino, época que, para as misericórdias, se caracterizou, em traços gerais, pelo maior “reconhecimento público, reforço da interferência do poder central, enriquecimento patrimonial, situação de privilégio no exercício das práticas de assistência organizada institucionalmente (por exclusão das restantes confrarias), intensificação do processo de organização interna, elitização”53. A afirmação da

autoridade régia sobre as misericórdias e, antes de mais, sobre a de Lisboa, está patente, por exemplo, no alvará de 29 de Junho de 1610, em que o rei criticava as frequentes modificações ao Compromisso (“alterando, accrescentando e moderando algumas cousas delle”) e estipulava que no futuro “se não podesse mover cousa alguma sem se lhe dar primeiro conta”54. Neste contexto, a reforma estatutária que

conduziu à elaboração do Compromisso de 1618 é considerada um dos acontecimentos de maior relevo no período filipino das misericórdias, medida para uso interno, “sob a forma de um organigrama funcional que, em teoria, lhes garantiria organização, eficácia e excelência”55.

Mais do que uma ruptura profunda, nas práticas e no enquadramento jurídico face ao passado, o Compromisso de 1618 consubstancia “algo de novo na forma como são conduzidos os processos de

51 Ver introdução de Ivo Carneiro de Sousa à edição do Compromisso, SEABRA, Leonor Diaz de, ed. – O compromisso…, cit., p. 4.

52 Publicado em PMM, vol. 5, doc. 182, p. 275 ‑322. Este regulamento foi sucessivamente reimpresso em 1640, 1645, 1662, 1674, 1704, 1739 e 1745.

53 ABREU, Laurinda; PAIVA, José Pedro – Introdução. In PMM, vol. 5, p. 7 ‑30. 54 Citado em SÁ, Isabel dos Guimarães – As Misericórdias…, cit., p. 47. 55 SÁ, Isabel dos Guimarães – As Misericórdias…, cit., p. 51.

institucionalização, codificação de procedimentos e normas já há muito em vigor”56. Assim, de um modo

geral, dá continuidade ao caminho de redução da espiritualidade e de crescente burocratização iniciado pela reforma do Compromisso de 1577, desenvolvendo as inovações que aquela trouxera relativamente ao de 1516 e introduzindo outras.

O documento compõe ‑se de 41 capítulos (mais 3 do que em 1577) e, dispensando o prólogo e a enunciação das obras de misericórdia, entra de imediato nas disposições relativas aos irmãos, nomeadamente, ao número e qualidades, às obrigações e às causas de despedimento. O numerus clausus mantém ‑se em 600, conforme fixado em 1577, mas cria ‑se um grupo adicional de 20 letrados (juízes da Casa da Suplicação ou dos outros tribunais da cidade), possivelmente para conferir prestígio à Confraria e defender legalmente os seus interesses, e prevê ‑se a possibilidade de, havendo impedimento de um número significativo de irmãos, se tomar em lugar dos ausentes até mais 30, de modo a não prejudicar o serviço. Apesar disto, é evidente a preocupação em que o limite de 600 não fosse ultrapassado (regressando os ausentes, os entretanto admitidos só entrariam no lugar dos que fossem falecendo), o que se compreende tendo em conta o processo de elitização social das misericórdias57. Este está igualmente patente no

reforço da exigência das condições de admissão (em número de sete, para além das qualidades morais referidas desde 1516), que excluem os cristãos ‑novos, exigindo limpeza de sangue, e configuram um nível socioeconómico elevado, obrigando à posse de oficina própria caso se tratasse de oficial (ou seja, apenas eram admitidos os mestres), saber ler e escrever e ter meios de fortuna que permitissem a dedicação às actividades da Confraria. Procurava garantir ‑se o respeito por estes requisitos através de um cuidadoso processo de admissão de novos irmãos, cuja descrição é pela primeira vez incluída no Compromisso58. É

também novidade a tipificação de uma série de causas que motivariam o despedimento ou risco de irmãos, no sentido de assegurar que a sua conduta, após a admissão, se mantinha fiel ao perfil que lhes era exigido. Para além da desobediência, já mencionada em 1516, conduziriam à expulsão da Irmandade situações como o viver “escandalosamente”, a violação do sigilo relativo aos assuntos da Confraria, a corrupção eleitoral ou a má prestação de contas pelos cargos desempenhados. Por todas as causas definidas perpassa a ideia de que os irmãos tinham de ter um comportamento cristão exemplar, bem como a preocupação com o crédito e a imagem pública da instituição, dos quais dependiam, entre outros aspectos, a captação de heranças, importante fonte de rendimento59. Por fim, as principais obrigações dos irmãos continuam a

ser acudir quando chamados e aceitar as ocupações que lhes fossem atribuídas, mas aumenta para cinco o número de momentos do ano em que tinham de comparecer na Confraria, acrescentando ‑se o dia de S. Lourenço (10 de Agosto), para a eleição dos definidores.

56 ABREU, Laurinda; PAIVA, José Pedro – Introdução. In PMM, vol. 5, p. 10.

57 Durante o período filipino, assistiu ‑se “a um movimento tendente a aumentar o número de irmãos nas [misericórdias] já existentes e, simultaneamente, a fixar o seu limite máximo, impedindo a sua exagerada expansão”, cf. ABREU, Laurinda; PAIVA, José Pedro – Introdução. In PMM, vol. 5, p. 12. Segundo Isabel Sá, o aumento do número fixado nos compromissos foi motivado quer pelo crescimento demográfico, quer pela necessidade de elementos operacionais, face à existência de muitos irmãos impossibilitados (por velhice, invalidez ou ausência) mas que não podiam ser riscados. No entanto, a uma tendência inicial para admitir um número crescente de irmãos, seguiram ‑se instruções da Coroa no sentido de limitar essas admissões, tendo algumas misericórdias recebido ordens régias para o reduzir progressivamente até ao

numerus clausus fixado, ver SÁ, Isabel dos Guimarães – Quando o rico…, cit., p. 97 ‑100.

58 O processo começava com a apresentação de uma petição pelo candidato a irmão, da qual devia constar uma série de elementos (entre outros, a identificação de pais e avós e respectivos locais de naturalidade, seus e de sua mulher, se fosse casado; a indicação do “officio que tem e bairro em que pousa”); seguiam ‑se a averiguação, por parte da Confraria, da veracidade das informações prestadas e a votação secreta nos peticionários, através de favas brancas e negras; por fim, a prestação de juramento pelos irmãos aceites ou recebidos (cap. 1º).

59 Vejam ‑se, por exemplo, as seguintes expressões: “com menos exemplo do que se requere nas pessoas que andão no serviço de Deus e de Nossa Senhora”; “pode dar presunção de menos sinceridade e menoscabar o credito e reputação da limpeza com que na Casa se deve proceder”; “dão occasião para que as pessoas que desejão desencarregar suas consciências se fiem menos do que convem da charidade com que os irmãos da Misericordia custumão a executar semelhantes obras” (cap. 3º).

Seguem ‑se quatro capítulos relativos às eleições anuais dos mesários e às suas obrigações, este último uma novidade. Há uma complexificação do processo de escolha dos eleitores (os irmãos elegiam 20, 10 nobres e 10 oficiais, cabendo ao provedor cessante tirar de duas bolsas, à sorte, nomes de 5 de cada categoria); prevê ‑se a possibilidade de desentendimento entre os pares de eleitores, na escolha dos mesários, recomendando ‑se aos nobres que ouvissem os oficiais na escolha dos oficiais e vice ‑versa, pois cada um conhecia melhor o seu estrato social; desaparecem as referências ao exemplo de Cristo e dos apóstolos, a propósito do cuidado na escolha dos eleitos, bem como à recompensa exclusivamente espiritual destes pelo seu trabalho. No entanto, um dos seus deveres era servir a Casa de forma desinteressada e contida, lembrando ‑se que dispunham das coisas “não como senhores mas como puros administradores”, de Deus e dos defuntos e pessoas que lhes confiavam os bens. Assim, cabia ‑lhes proceder exemplarmente, o que implicava uma atitude cristã, de humildade, e a prática devocional concreta (confessar ‑se e comungar por devoção todos os primeiros domingos do mês e por obrigação quatro vezes por ano; assistir à missa todos os domingos). Foi introduzida a obrigação de cada Mesa realizar uma visita geral, após o Natal, para averiguar do estado material e da qualidade dos serviços e da assistência praticada nos vários equipamentos e sectores de acção da Casa.

A série de capítulos relativos aos diversos agentes administrativos remete para o crescimento institucional e assistencial da Misericórdia. O requisito de nobreza, exigido para o provedor, estende ‑se agora ao escrivão e ao recebedor das esmolas, fechando um movimento que “oficializava a nobilitação da administração das misericórdias” nos cargos do seu núcleo central60. As obrigações do recebedor,

relacionadas com a recepção e guarda de todas as esmolas, incluindo as recebidas por testamento, são aqui particularmente desenvolvidas face ao Compromisso de 1577. O mesmo acontece com os encargos dos mordomos dos presos e dos três pares de visitadores, cujo lugar era reconhecido como “o mais occupado e de mor trabalho de todos os que ha na Irmandade”, pois cabia ‑lhes prover mensal e semanalmente grande quantidade de assistidos, percorrendo a pé o terço da cidade de Lisboa correspondente (cap. 12º). São criados os cargos de tesoureiros das letras e dos depósitos (dois pares, cada um composto por um nobre e um oficial), os primeiros encarregues “de fazer acceitar as letras que vem da India logo que chegarem as naos e de arrecadarem o dinheiro dellas”, para depois o entregarem a quem pertencia, e os segundos responsáveis por todo o dinheiro depositado na Casa, bem como pela cobrança de juros, foros e rendas (cap. 15º ‑16º); neste caso, prescrevem ‑se detalhadamente os cuidados a ter com os registos contabilísticos e com a segurança do dinheiro pertencente a depósitos e à fazenda da Casa, que não poderia ser retirado do cofre a não ser para os pagamentos previstos. Para dar resposta às exigências da administração patrimonial e às diversas valências assistenciais da Misericórdia, foram ainda introduzidos os cargos de mordomos dos testamentos, das demandas e das cartas (um nobre e outro oficial de cada), de oficiais da Casa do Recolhimento das Donzelas (dois nobres, um tesoureiro e um escrivão) e de mordomo da bolsa das donzelas (um mês nobre, outro mês oficial); para além dos cargos já existentes de mordomo da bolsa, da capela, da botica (um mês nobre, outro mês oficial para cada) e do Hospital de Nossa Senhora do Amparo (um nobre e outro oficial), estes últimos criados em 1577, mas aqui mais desenvolvidos (ver cap. 17º ‑25º). Todos estes responsáveis eram eleitos anualmente ou mensalmente pelo provedor e pelos mesários, sendo que apenas os da bolsa e da capela fariam simultaneamente parte da Mesa.

A par do trabalho dos irmãos, a Mesa recorria ainda ao de servidores assalariados, com destaque para os capelães, que respondiam agora a um conjunto de requisitos mais exigente (serem cristãos velhos, pessoas de virtude, ciência e reputação, com não menos de 30 anos de idade e destros em canto),

definindo ‑se também com pormenor o seu processo de admissão, as multas e as admoestações a que estavam sujeitos se não cumprissem as suas obrigações, bem como as possíveis causas de despedimento (cap. 26º). Aos capelães juntava ‑se uma série de outros novos servidores por salário, que não podiam ser irmãos, nomeadamente, um escrivão (tomava conta do cartório), alguns moços da capela (“limpos de raça, pobres”, que auxiliavam na missa e igreja), os “servidores de azul” (procurando ‑se que “não tenham raça”, cumpriam os serviços ordinários da Casa) e os procuradores das demandas e presos (solicitadores); isto para além dos pedidores de pão para os presos, um por cada freguesia, cargo já existente desde 1498 (cap. 27º). A preocupação com o comportamento e o desempenho dos assalariados é patente na definição “Do modo com que se ha ‑de inquirir sobre as pessoas da Casa a quem se da estipendio” (cap. 39º), devendo o provedor fazer anualmente inquirição sobre todos os não irmãos, mediante o testemunho destes e dos próprios assalariados. Há a necessidade de justificar esta acção relativamente aos capelães, explicando não se tratar de uma ingerência do poder temporal sobre o espiritual61.

Quanto a órgãos administrativos, a grande novidade trazida pelo Compromisso de 1618 foi a criação da Junta dos Definidores, que teria de ser consultada pela Mesa nas decisões mais importantes, como a admissão e a readmissão de irmãos ou as relativas à aquisição e ao governo patrimonial e financeiro, para além de todos os assuntos extraordinários ou que fossem contra o Compromisso (cap. 13º). Já existia a obrigatoriedade de recorrer, em situações como estas, ao conselho de um certo número de responsáveis eleitos pela Irmandade sempre que necessário; porém, agora é criado um corpo específico de definidores, escolhidos anualmente pelos eleitores da Mesa, no dia de S. Lourenço (10 de Agosto). As resoluções conjuntas da Mesa e da Junta teriam a mesma força que o Compromisso, podendo até alterá ‑lo, embora apenas em alguns aspectos, como o numerus clausus de irmãos, o empréstimo de dinheiro ou o pedido de comutação de legados ao papa; ficava, assim, salvaguardada a possibilidade de resposta a situações mutáveis ou inesperadas (cap. 14º). É dada liberdade de decisão aos dois órgãos na questão particular da gestão das heranças e legados provenientes de portugueses falecidos no ultramar, a qual é considerada “carga tão grande e trabalhoza sem nenhum proveito seu temporal”, apesar de se tratar de uma obra pia e de um serviço benéfico para o Reino. De resto, a importância das questões relativas à aceitação e à execução dos testamentos reflecte ‑se também no desenvolvido capítulo que lhes é dedicado (cap. 28º), fazendo eco do aumento significativo das heranças deixadas em benefício da Misericórdia e do seu engrandecimento patrimonial62. É de salientar a definição dos cuidados a ter para evitar problemas com a execução, que

provavelmente já teriam sido sentidos.

O aumento do património, quer por via das heranças e respectivas obrigações, quer pela anexação de hospitais, com destaque para o de Todos os Santos em Lisboa, foi um dos factores responsáveis pelo crescimento das responsabilidades assistenciais das misericórdias, merecendo igual realce a situação de exclusividade que lhes foi criada em relação às outras confrarias em termos da acção assistencial63. Neste

Compromisso, são contemplados todos os grupos de assistidos já referidos em 1577, desde os presos, cuja

61 A justificação reside no facto de os capelães servirem a Casa, cabendo ao administrador desta a responsabilidade de averiguar e garantir que todos os serviços funcionavam bem: “nem he inconveniente perguntar o provedor cousas pertencentes a clerigos sendo elle secular, porque o não faz por tomar jurisdição alguma sobre elles […], mas por saber se são idoneos para o serviço da Misericordia” e “porque ainda sobre isto tem aução para saber as cousas que perjudicão ao bem e authoridade da Casa […], assim por evitar inconvenientes que dentro de sua casa pòde aver, como por se conservar em reputação publica e não acontecerem escândalos” (cap. 39º).

62 O aumento do património das misericórdias detectável no período filipino resulta do afluxo de doações que lhes eram feitas; este iniciara ‑se há muito e aprofundara ‑se após o Concílio de Trento (1545 ‑1564), ao relevar a doutrina do Purgatório, ver ABREU, Laurinda; PAIVA, José Pedro – Introdução. In PMM, vol. 5, p. 14. Isabel dos Guimarães Sá fala mesmo em “revolução patrimonial” das misericórdias, através dos bens encapelados, que se fez sentir em Lisboa a partir de meados do século XVI, associando este fenómeno à regulamentação das atribuições do corpo de religiosos que servia a Santa Casa, no citado capítulo do Compromisso de 1618 relativo aos capelães, ver SÁ, Isabel dos Guimarães – As Misericórdias…, cit., p. 57.

sustentação e livramento deviam fazer ‑se “com particular caridade e diligencia” por ser esta “a primeira obra em que se empregàrão os primeiros irmãos que instituirão esta Irmandade” (cap. 11º), às crianças desamparadas (embora não os enjeitados), passando pelos pobres em geral, os pobres envergonhados (designados por “pessoas visitadas”, cap. 30º), as órfãs em idade núbil, os cativos e os doentes. A este leque acrescem agora as donzelas da Casa do Recolhimento, órfãs com idade compreendida entre os 12 e os 20 anos, que ali permaneciam por um período limite de 4 anos, obtendo a prioridade máxima na atribuição de dotes para casamento, “por serem as verdadeiras filhas da Casa da Misericordia” (cap. 29º)64; e as merceeiras, mulheres pobres, viúvas ou não casadas, com pelo menos 50 anos de idade, que

beneficiavam de provisões instituídas por testadores, em troca de orações por alma (cap. 31º). A importância crescente da categoria dos doentes, que, pela incorporação dos hospitais, se tornariam o destino principal dos fundos e das energias das misericórdias que os administravam, é já visível na criação dos citados cargos de mordomos do Hospital de Nossa Senhora do Amparo (responsáveis também pelo Hospital de Santa Ana), e sobretudo no capítulo 40º, relativo à residência do provedor nas casas do Hospital de Todos os Santos. Neste caso, face ao dilema da sobreposição do serviço do Hospital com o da Misericórdia, sendo que “o provedor não pode acudir a ambos em hum mesmo tempo”, estipulou ‑se que aquele passasse a residir no Hospital, elegendo ‑se um enfermeiro ‑mor apenas se “o provedor tiver tão legitimas e forçosas causas” para não viver ali. Assim se procurava manter a unidade da Misericórdia, mediante a integração de tão importante equipamento, sob a autoridade superior do provedor.

O auxílio a qualquer uma destas categorias implicava, antes de mais, a passagem pelo crivo dos critérios de selecção dos assistidos, entre os quais avultavam os atributos morais, particularmente no caso das mulheres (donzelas recolhidas, órfãs dotadas, merceeiras), exigindo ‑se virtude, boa fama e honradez. Perpassa de diversos capítulos do Compromisso a atenção dedicada à verificação do cumprimento daqueles critérios a priori (por exemplo, no caso das órfãs, a recolha de informações pelos irmãos escolhidos implicava a ida a casa das peticionárias e, se necessário, o registo escrito de testemunhas) e à fiscalização constante dos assistidos para aferir da manutenção das condições iniciais (os visitadores fariam duas vezes por ano, pelo menos, inquirição sobre a pobreza e o modo de vida das pessoas admitidas no rol das visitadas).

O Compromisso de 1618 reporta ‑se ainda à sétima obra de misericórdia corporal, enterrar os mortos, quer no capítulo sobre os enterramentos (cap. 35º), que, para além do estipulado sobre os dos irmãos, inclui regras sobre todos os outros realizados pela Confraria, bem como a informação sobre as tumbas existentes (a qual até então acompanhara a dos restantes objectos rituais, como as bandeiras e as vestes, omissa em 1618); quer no título sobre a recolha das ossadas dos condenados da justiça no dia de Todos os Santos (cap. 37º). Esta obra remete, indirectamente, para uma das duas únicas de carácter espiritual contempladas no regulamento em análise, designadamente, a de rezar por alma dos mortos, que pode igualmente associar ‑se à tarefa de acompanhamento dos padecentes (cap. 36º). Por fim, subsiste a referência ao “fazer as amizades” (cap. 38º), numa fórmula talvez mais pragmática que as dos compromissos anteriores, procurando justificar a manutenção desta obra, não só por questões religiosas ou doutrinais, mas também por motivos práticos65, para além de alertar para os seus limites, devendo evitar ‑se

64 A importância conferida a este novo equipamento está patente no facto de se consagrarem dois capítulos à sua administração (cap. 20º “Do governo e officiaes da Casa do recolhimento das donzellas.” e cap. 25º “Do mordomo da bolça das donzellas.”), bem como na referência particular à inquiração sobre o seu funcionamento, feita anualmente pelo provedor, no cap. 39º (o provedor e o escrivão iriam ao Recolhimento das Donzelas e falariam com todas as pessoas dali, começando pela regente, a porteira e a mestra, e com os ministros de fora, informando ‑se sobre vários aspectos, relativos sobretudo ao respeito pelo isolamento imposto às recolhidas).

65 Isto é, “assim por Christo Nosso Senhor encomendar os homens a charidade fraterna com sumo affecto, como pellos muito bens spirituaes e temporaes que della se seguem à Republica” (cap. 38º).

meios vexatórios, não intervir em questões de fazenda e ter cuidado ao imiscuir ‑se em questões de crime e injúria (sendo graves, deviam ser tratadas pela justiça).

Para terminar, importa assinalar que a redução da espiritualidade e a complexificação burocrática traduzidas neste Compromisso não são incompatíveis com a valorização de momentos rituais de cariz religioso, sendo que, pela primeira vez, há dois capítulos consagrados em exclusivo a dois dos mais importantes cortejos processionais realizados anualmente pela Misericórdia, a Procissão das Endoenças (cap. 34º) e a do dia de Todos os Santos. No primeiro caso, em que se descrevem com grande pormenor o percurso e a composição do cortejo, atribuindo ‑se ao provedor e aos mesários a responsabilidade da sua organização, as motivações indicadas são de carácter religioso, de promoção de sentimentos cristãos,