• Nenhum resultado encontrado

Os primórdios – a fundação

Inês Amorim*

1. As obras de misericórdia: os encargos, sua natureza

1.1. Os primórdios – a fundação

As obras de misericórdia preconizam um conjunto de obrigações a cumprir. Os compromissos desenham não só as obrigações como a estrutura orgânica, as competências de cada um no cumprimento

31 Ver MADUREIRA, Nuno – Oito ocupações de Lisboa no século XVIII. In AMORIM, Inês, coord. – Qualificações, memórias e identidades de

trabalho. Lisboa: IEFP, 2002, p. 321 ‑335.

32 Ver CARVALHO, Joaquim Ramos de; CAMPOS, Maria do Rosário – Reconstituição de redes do poder local. In CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE PODER LOCAL EM TEMPO DE GLOBALIZAÇÃO, Coimbra, 2002 – O Poder Local em tempo de Globalização: uma história e um futuro:

comunicações. Coord. Fernando Taveira da Fonseca. Viseu: Palimage, 2005, p. 225 ‑238.

33 Ver BORASAY, Anne; SHAPELY, Peter, ed. – Medicine, Charity and Mutual Aid: the consumption of Health and Welfare in Britain, c. 1550 ‑1950. Cherry Street: Ashgate, 2007, p. 1 ‑10 e COOPER, Sheila – Kinship and welfare in early modern England. Sometimes charity begins at home. In BORASAY, Anne; SHAPELY, Peter, ed. – Medicine, Charity and Mutual Aid: the consumption of Health and Welfare in Britain, c. 1550 ‑1950. Cherry Street: Ashgate, 2007, p. 55 ‑69.

34 É esta a perspectiva que desenvolve FONTAINE, Laurence – L’économie morale: pauvreté, crédit et confiance dans l’Europe préindustrielle. Paris: Gallimard, 2008, p. 26 ‑31.

35 Ver SÁ, Isabel dos Guimarães – A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1995.

36 Ver ARAÚJO, Maria Marta Lobo de; FERREIRA, Fátima Moura, org. – A infância no universo assistencial no Norte da Península Ibérica (sécs.

das tarefas que a misericórdia encarnava. Os encargos exigiriam uma disponibilidade total e, por isso, se consignou, logo no Compromisso primitivo da Misericórdia de Lisboa, que serviria de modelo a tantos outros, o princípio de que os irmãos que governassem anualmente fossem “escusos de todos os carregos e officios do comcelho”37. Por esta passagem se admite, à partida, um perfil de direcção: homens já experientes

na governação do município ou outra, na administração pública ou senhorial (ou que o tivessem sido, ou com competências para o serem), habituados a lidar com as coisas do mundo.

O provedor, figura máxima, teria o poder de decidir sozinho se os encargos distribuídos a cada um dos 12 oficiais que, conforme os seus compromissos, compunham a governação das santas casas, estariam a ser cumpridos, aplicando pena “spritual segundo o casso requerer”, mas no que dizia respeito ao temporal – despesas, entenda ‑se – nenhum dos 13 poderia decidir sozinho, como inscreve o Compromisso de Lisboa de 1520: “e em as cousas de despessa de dinheiro nem de vestidos pera pobres

nem despachos de pitiçõoes o dito provedor nam mandara nem fara nada sem acordo e comselho dos doze ou maior parte delles”38.

O modelo era este, o seu cumprimento foi uma realidade, mas fica certo que os designativos apresentados no Compromisso, para cada elemento da governação, alcançaram mais sentido à medida que se lhes deu uma posição funcional ou social. Vejam ‑se os organigramas seguintes, baseados neste mesmo Compromisso de Lisboa, os quais procuram sintetizar hierarquias funcionais (tempos de exercício das competências e respectivos designativos, figura 1) e sociais (estatuto socioprofissional, figura 2) dos 13 elementos da governação da Casa:

Figura 1 – Orgânica funcional geral segundo o Compromisso de Lisboa de 1520

9 conselheiros (anual) 1 escrivão (anual) 2 mordomos (mensal) Provedor

Figura 2 – Orgânica social segundo o Compromisso de Lisboa de 1520 • homem nobre • oficiais • de “doutra condiçom” 1 Provedor 6 Conselheiros 6 Conselheiros

A averiguação das realidades assistenciais, espirituais e materiais exigia um meticuloso trabalho colectivo, entre conselheiros de condição e oficiais, lado a lado, no terreno, o que pressupunha disponibilidade total. Veja ‑se que ao provedor lhe é definida uma presença constante “na capella o mais que for possivel” e aos restantes um trabalho específico de visitação, devidamente registado em livros e róis, evidências de uma vigilância mútua39. Veja ‑se a tabela seguinte, elaborada a partir do mesmo Compromisso de 1520.

37 PMM, vol. 3, p. 404.

38 PMM, vol. 3, p. 427, itálico meu. 39 Ver PMM, vol. 3, p. 427 ‑430.

Tabela 1 – Orgânica funcional específica, segundo o Compromisso de Lisboa de 1520 Actividade Conselheiro oficial Conselheiro de outra

condição

Acção Registos escritos

Hospitais e pobres doentes

1 1 Visitar e ver necessidades

– cada segunda ‑feira de cada semana pão e dinheiro

– pousadas e camas

Rol em que darão contas ao provedor

Doentes pobres

1 1 Visitar doentes pobres e presos

– dar mezinhas, vestidos, camas e pousadas – “meezinhas” espirituais como a confissão,

comunhão e extrema unção

– se o doente em “passamento” acompanhar na hora da morte

Caderno para dispender di‑ nheiro com as mezinhas

Presos sãos e pobres

1 1 Dar de comer

– duas vezes por semana: domingo e quarta‑ ‑feira;

– ao domingo pão que baste e uma posta de carne e meia canada de vinho

– quarta ‑feira, pão que baste até domingo e meia canada de vinho

Rol com o registo do dinheiro para dispenderem com a car‑ ne e outras coisas “que para cozer som necessarias”

Envergonhados 1 escrivão – Visitar os envergonhados

– Tirar inquirição pelos curas das igrejas, confessores e vizinhança

Rol com todas as pessoas envergonhadas para se dar dinheiro e vestidos

Esmolas 1 1 – Arrecadar esmolas que os defuntos ricos

deixarem

– Arrecadar rendas e foros – Testamentos e demandas Mordomo de

fora 1 ? – soltura de presos – 1 livro do mordomo com o dinheiro a gastar com os pre‑ sos e com as esmolas e des‑ pesas a pagar

– 1 livro de receita e da des‑ pesa na posse do escrivão do escrivão

Mordomo da capela

1? – arrecadar as esmolas e ofertas no altar; – peditórios que se tiram em diferentes “par‑

tes”

– verificar os enterramentos;

– verificar os sacerdotes que devem dizer missa

Mesmo que pouco específica, a atribuição de funções a homens de “condição” e a oficiais (de profissões que não se declaram, neste Compromisso, expressamente, mecânicas, como se verá em estatutos posteriores) fica clara a acção: acudir a presos, pobres e envergonhados, doentes, em perigo de morte ou já falecidos, num processo de conforto espiritual (sufrágios, enterramentos, extrema unção, confissão e comunhão) e de conforto terreno (agasalhar com roupas, pão, vinho, carne, dinheiro, remédios). Por isso, a este núcleo se juntam outros colaboradores: os “pedidores de pam”, três ou quatro, eleitos mensalmente, pelos oficiais conselheiros e provedor, em cada freguesia, para que, em cada Domingo, depois das missas, reunissem o que a comunidade desse para os “pressos e emfermos e necessitados e emverguonhados”; os capelães, em número de três, com funções múltiplas no cantar, confessar, enterrar; o físico da confraria,

o que estipula as mesinhas que os dois conselheiros deverão levar aos doentes pobres e aos doentes presos. E, finalmente, um universo múltiplo de “colaboradores”, todos os que se dirigem à Misericórdia, que fazem “pitições”, os presos e os pobres, que obrigavam, nos dias de conselho e cabido de quartas ‑feiras e domingos, a tomar decisões, a disponibilizar as verbas, a decidir. São estes a potência da Misericórdia.

As receitas obtidas eram, por isso, de organização e vigilância essencial, fosse qual fosse a sua natureza. Na arca “grande”, depositada na capela, fechada a quatro chaves, reunia ‑se “roupa que se der d’esmolla”, redistribuída anualmente, nunca duas vezes à mesma pessoa. Pela cidade “tres ou quatro cepos” postos em lugares “pubricos e notorios”, onde se deixava dinheiro, abertos só com quatro chaves confiadas ao escrivão, ao mordomo da capela, a um “conselheiro nobre e outra hum dos officiaes”. Uma outra arca mais pequena “amdara na messa homde se escrepvem os confrades”, ou seja, onde todos os que fazem parte da confraria (na altura 100) de forma voluntária “segumdo suas sustancias quamtas vezes e quanto poderem pera sempre” registado pelo escrivão, arrumados por freguesia e nome. Finalmente, prevendo ‑se que fossem deixadas propriedades à Misericórdia, elas deveriam ser apregoadas para venda, pelo melhor preço, mas nunca ao provedor e oficiais que estivessem na governação no ano em causa. Esta rubrica, aliás, não merece grande atenção neste Compromisso, não mais de cinco linhas. Esmolas e mais esmolas, de múltipla tipologia: pão, dinheiro, panos e mesmo açúcar, circulam entre mãos, por piedade individual ou protecção régia, como se verá no ponto 2, exigindo um cuidado registo e identificação dos que recebem, pois que os cadernos e os róis (ver tabela 1) auxiliam a memória.

1.2. O crescimento das funções e das obrigações nos primeiros decénios do século XVI