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3. O PUNK E SUA HISTÓRIA

3.1 ANTECEDENTES

Na bibliografia encontrada sobre o punk, há divergências entre vários autores sobre o período de nascimento do movimento, bem como seu verdadeiro local de origem (Nova Iorque ou Londres?) e se o punk foi apenas um fenômeno pontual na história do rock’n’roll, tendo um período auge e deixando de existir. A visão melhor aceita sobre a história do punk é que os primórdios do movimento datam de 1973-1974, originando-se em Nova Iorque, em torno dos clubes CBGBs e Max’s Kansas e da existência das bandas Television, Patti Smith, Ramones e Blondie, que nos rementem à sonoridade e atitude das bandas rock de garagem americanas dos anos 1960 como o Velvet Underground, MC5, Stooges, The Modern Lovers e New York Dolls. O punk londrino teria começado logo depois por volta de 1975-1976, tendo como grande responsável Malcolm McLaren, que teria importado dos Estados Unidos à ideia de punk, principalmente o visual e a música. Essa tem sido a linha narrativa seguida por uma série de livros e documentários42 bem embasados nos últimos anos.

No entanto, se colocarmos que um dos elementos centrais que define o punk é a ênfase política, pode-se supor que o punk só poderia ter começado na Inglaterra no fim dos anos 1970. O punk surge a partir de uma recessão econômica mundial que atingiu os Estados Unidos e a Inglaterra. Ambos os países viviam contextos parecidos, mas Londres foi mais severamente atingida pela combinação de desemprego, inflação e tensões raciais. A qualidade da experiência na América era diferente e menos politizada:

O punk de Nova Iorque foi inicialmente caracterizado por uma combinação de política reacionária e extremo formalismo; o punk de Londres foi parecido na forma-consciente, mas tendendo mais à esquerda em geral, com uma medida de consciência social decorrente da opressão, em parte,

a partir de uma identificação com minoria indiana do oeste da cidade43

(HOBERMAN, 1983, p.278, tradução nossa).

42

Como, por exemplo, o documentário Punk Britannia (Andrew Dunn, 2012) exibido como série no canal BBC.

O punk não nasce como um movimento isolado e, segundo estudos voltados às ciências sociais, ele faz parte dos desdobramentos de outras “cenas juvenis”44, como os beat, os provos45 e os hippies. Antes de entrar densamente nas questões

relativas ao cinema punk, é preciso esclarecer esses termos que usualmente nos deparamos em textos relativos ao punk. Por diversas vezes o punk é classificado por autores como sendo parte de uma contracultura e também classificado como uma subcultura. Mas é preciso refletir um pouco sobre o uso e os abusos dessas terminologias, atualizando-os e procurando precisar a distinção entre esses conceitos.

Segundo Massimo Canevacci, em seu livro Culturas Extremas: Mutações Juvenis

nos Corpos das Metrópoles (2005) a expressão “contracultura”, já anuncia sua

perspectiva através do prefixo “contra”, de ser uma oposição das novas culturas juvenis à cultura dominante ou hegemônica.

[...] contracultura transita, portanto, de uma oposição radical contra alguma coisa dominante, em relação a propostas criativas, para algo totalmente distinto. Contra a cultura do poder e para as culturas da revolta, para a transformação do mundo, para acender um processo revolucionário nem tanto na estrutura socioeconômica, mas, sobretudo, no cruzamento de novas formas de pensar velhas ideologias. (CANEVACCI, 2005, p.14)

Também em relação ao conceito de subcultura, Canevacci (2005) nos diz que subcultura é uma classe menor dentro de uma maior (a cultural em geral). O prefixo “sub” não tem um valor depreciativo na expressão “subcultura”, não indica algo que esta abaixo e, assim, inferior em relação a alguma outra que está “acima”. O uso do termo serve para identificar, recortar em partes características comportamentais de estilos, ideologias e valores homogêneos.

extreme formalism; London punk was equally form-conscious but more generally left wing, with a measure of underdog social consciousness arising in part from an identification with the city’s West Indian minority.”

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Referência ao livro de mesmo nome. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano de Helena Abramo (1994)

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Os Provos (1965-1967) foi um grupo contra cultural de jovens que surgiu na Holanda, nas palavras de Matteo Guarnaccia " Provo nunca foi nem partido nem movimento. Podemos vagamente defini-lo como um conjunto instável de indivíduos absolutamente heterogêneos que, no ápice do próprio sucesso, não contava com mais de vinte agitados/agitadores" (GUARNACCIA, 2010, p.14)

Em relação às culturas juvenis (das quais o punk se insere), uma subcultura não significa, por sua natureza, uma contracultura, porque pode ser ela de uma natureza pacificada, organizada, mística, etc. Por isso, é importante distinguir os dois conceitos que não coincidem ou que, de qualquer modo, podem não coincidir. No caso do punk, encontramos em toda a bibliografia autores abordando o punk nos dois sentidos: como uma contracultura e como uma subcultura. De acordo com os conceitos aqui apresentados, no punk, esse dois conceitos se coincidem. No período em que o punk surgiu com mais força, na década de 1970, para os estudiosos do campo social, “subcultura” e “contracultura” faziam sentido, mas hoje em dia, esses termos são contestados e perderam sua força.

Segundo Canevacci (2005), as contraculturas se extinguiram, pois para ele morreu “a politica como utopia” que transformaria o mundo num futuro próximo: “não há mais contracultura, pois não há mais o contra. O término da hegemonia, o fim da ideologia e o fim da política enxugaram o contra.” (CANEVACCI, 2005, p.15). Também em relação ao conceito de subcultura, Canevacci diz sobre o gradativo esgotamento do termo. A ideia de subcultura herda todos os limites do conceito antropológico de cultura do qual é parte, que tende a ser marcada por ideias generalistas, homogeneizantes, reproduzindo estereótipos: “é tempo de defender os fragmentos, as parcialidades, as diferenças, como uma parte da antropologia já começou a fazer” (CANEVACCI, 2005, p. 18). Mas não gostaríamos de nos aprofundarmos tanto sobre a utilização dos termos “subcultura” e “contracultura”, e sobre seu desuso em estudos de casos atuais. Trazemos aqui Canevacci para problematizar esses conceitos, demonstrando que no campo dos estudos sociais, eles já não se adequam tão bem quanto ocorria há quase 50 anos.

Voltando, as origens do punk e da emergência das subculturas juvenis que se originaram do período pós-segunda guerra (1950-1970), é consenso entre os autores, como Helena Abramo, José Carandell e Ondina Pires de que o aparecimento dessas manifestações está diretamente ligado às novas condições da juventude. A partir de 1950, houve um período de relativa prosperidade econômica, e tecnológica nos EUA que propiciou uma explosão criativa e consumista. Há uma ampliação ao tempo livre, e ao lazer, um ciclo de desenvolvimento da indústria cultural e aos meios de comunicação. “[...] a maioria dos jovens brancos americanos

começava a dispor de dinheiro para comprar discos, aparelhagens, instrumentos musicais, roupas, idas ao cinema etc.” (PIRES, 2009, p.78). É o tempo em que a televisão desenvolve-se, moderniza-se e integra uma rede nacional que, na década 70, multiplica seus espectadores. As outras áreas da indústria cultural e de entretenimento exploraram um admirável crescimento, ocasionando diversas publicações de livros e revistas, lançamentos de filmes, música, bandas, discos preferencialmente dirigidos ao público jovem. (ABRAMO, 1994, P.61)

Apesar das diferenças de motivação, caráter e amplitude, essas subculturas carregam contestações semelhantes de uma crítica ao sistema capitalista e suas bases de sustentação, a começar pela recusa aos valores burgueses da família, da disciplina do trabalho e da moral sexual, passando à reivindicação do direito à liberdade e do direito a fazer as próprias escolhas. A faixa etária desses conjuntos parece ser determinante para o fenômeno de transgressão juvenil que passou a ganhar importância por essa nova condição do jovem do pós-guerra.

A partir dos anos sessenta essas manifestações iriam se acentuar de maneira mais radical. O período de prosperidade econômica, social e tecnológica, nos EUA, por exemplo, demonstra a coexistência de diferentes realidades, nem sempre num convívio pacifico. Ondina Pires (2009) pontua três exemplos que demonstram essa convivência simultânea conflituosa como foram as atividades governamentais contra o Comunismo (período conhecido como “caça as bruxas”) e a contestação intelectual e artística sobre os beats, alguns deles comunistas; a repressão sexual em relação aos adultos versus o dossiê Kinsey, os livros polêmicos de Wilhelm Reich, ou amor livre dos adolescentes na parte de trás dos automóveis; a euforia consumista versus a pobreza e racismo que vitimaram as comunidades de negros e outras minorias. (p.78).

Paralelamente a esses problemas, nasce, no inicio dos anos cinquenta, o rock’n’roll, uma forma de música popular americana surgida de uma fusão entre rhythm’n’blues negro e o country hillbilly branco. Nas gírias usadas pelos afro-americanos dos anos trinta, “roll” e “jazz” significavam “sexo”. Assim, o rock em sua origem negra tem uma conotação sexual, componente essencial das músicas tocadas nos honky-tonkies46 das comunidades negras pobres. A música popular realizada por negros (Blues e

Jazz) traz abertamente em suas letras temas sexuais e relações de poder entre

homens e mulheres ou patrões e negros explorados, “sempre associada pelo

mainstream branco e negro aos vícios e à preguiça.” (PIRES, 2009, p.79). O rock’n’roll trouxe em sua essência essa associação ao proibido, ao sexo livre e

desinibido, ao selvagem e a diluição de tradições negras e brancas. Os puritanos de ambas as etnias rejeitavam sua manifestação.

Porém, logo essa música é assimilada pela indústria da cultura e transformada em meros produtos medíocres e/ou melosos para entretenimento e fácil assimilação do público. Cada um desses grupos subculturais via na música e principalmente no rock, um elemento importante de representação de suas identidades individuais e coletivas, podendo nela aspirar e projetar outro modo de vida. Na década de 70, o Rock Progressivo, o Hippie Rock, o country rock e o soft rock são a “onda” do momento, ganhando o status de música pop tornando-se um grande negócio para a indústria do entretenimento. (KUGELBERG; SAVAGE, 2012, p. 43). A música punk inspira-se principalmente em estilos musicais que nascem como reação a esses estilos, misturando elementos principalmente dos estilos musicais Glam Rock e Pub Rock.

A indústria criada para as massas juvenis, ao mesmo tempo em que entretêm e aliena, dissemina um conflito de gerações entre adultos e adolescentes. Durante os anos cinquenta e sessenta, o cinema destinou atenções à figura do “jovem rebelde”, que se tornou tema de muitos filmes como O Selvagem (The Wild One, Laslo Benedek, 1953), Sementes de Violência (Blackboard Jungle, Richard Brooks, 1955),

Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, Nicholas Ray,1955), Running Wild

(Abner Biberman, 1955), The Motorcycle Gang (Edward L. Cahn, 1957) e O Poço da Perdição (Live Fast, Die Young, Paul Henreid, 1958). Eles repetiam a receita lucrativa de “sexo-violência” adaptando-a para o público jovem, hedonista e endinheirado que encontrou nos drive-ins, no rock’n’roll e na maneira peculiar de se vestir um escape à vida aborrecida dos adultos. Figuras como Elvis Presley, Jerry Lee Lewis, Marlon Brando, Mamie Van Doreen e James Dean servem de exemplos de subversão desses valores tradicionais norte-americanos.

Mas o uso dessas temáticas transgressivas de “sexo-violência” não chega a ser uma inovação: remetem ao gênero fílmico dos exploitation movies, que, ao contrário do

que se pensa, são muito anteriores ao cinema dos anos cinquenta que se inclinou sobre os fenômenos de transgressão, quer fossem de cunho sexual, violência ou drogas.

Por volta de 1947, a indústria cinematográfica americana sofreu um duro golpe a sua atmosfera criativa com o início das atividades da House of Un-American Activies

Comittee que visava identificar e perseguir ações comunistas. Diversas produções e

artistas e profissionais do cinema foram acusados de propaganda comunista que passaram a ser boicotados pelos grandes estúdios. Alguns, como Charlie Chaplin, Orson Welles, Paul Robeson e Yip Haburg, deixaram os EUA ou passaram a atuar na clandestinidade. Consequentemente, grandes produtoras tiveram grandes cortes orçamentários que provocaram um colapso do cinema e o desemprego de muitas pessoas do ramo. Durante o período de retrocesso da indústria cinematográfica de Hollywood, divergindo do cinema mainstream, floresceu o cinema tipo “B” e os

exploitation movies dos produtores independentes. Embora os exploitation movies

possuíssem em sua grande maioria uma qualidade contestável, eles são a primeira forma de cinema independente alternativo a Hollywood.

Os exploitation movies atraíam muito público das classes mais baixas porque aludiam temáticas do dia a dia violento dos subúrbios das grandes cidades, assemelhando-se ao gênero literário conhecido como pulp fictions. O público mais culto, exigente e conservador viam nos exploitation movies e nos romance pulp

fiction formas culturais inferiores e primitivas, devido ao seu caráter transgressor e a

um enredo destituído de artifícios artísticos.

É importante essa contextualização e demarcações do universo simbólico juvenil, que a partir dos anos 50 é alicerçado pela fruição de bens veiculados ao mercado dentre as principais: a música e o cinema. Helena Abramo ao falar sobre esses bens de consumo diz: “Há uma relação de apropriação e reapropriação recíprocas entre jovens e indústria cultural. Os grupos juvenis realizam criações culturais e inovações, a partir de bens fornecidos pela indústria cultural e esta capta, reproduz e divulga essas criações” (ABRAMO,1994, p.88). Como se observou, a identificação com certos modelos é um processo juvenil normal, mas quando estes modelos representam contornos de delinquência, ou tendem a ideologias de extrema- direita/esquerda, esse reconhecimento torna-se alarmante para as instituições

políticas e/ou religiosas vigentes. No entanto, a singularidade desse fenômeno de “rebeldia juvenil” no cinema, no rock’n’roll, na moda e nos comportamentos foi mais bem aproveitada pela indústria cultural. Os movimentos nascidos de forma espontânea, entre as camadas mais jovens da sociedade rebelando-se contra o

mainstream, depressa foram absorvidos pelos media.

No documento Metamorfoses do cinema punk (1975-1990) (páginas 48-54)