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NEW PUNK CINEMA: EXISTE UM NOVO CINEMA PUNK?

No documento Metamorfoses do cinema punk (1975-1990) (páginas 142-146)

5. O CINEMA PUNK: VERTENTES, CINEASTAS E FILMES

5.5 NEW PUNK CINEMA: EXISTE UM NOVO CINEMA PUNK?

Na introdução do livro New Punk Cinema (2005) editado por Nicolas Rombes, ele explica o que seria esse termo que dá nome à publicação. Segundo Rombes, New

Punk Cinema refere-se a uma série de filmes surgidos a partir da metade dos anos

1990, que contestam ou minimamente revisam alguns códigos estéticos e narrativos que governam as produções mainstream de Hollywood. Ele lista uma série de filmes bastante heterogênea, que inclui Gummo (1997) e Julien Donkey Boy (1999) de Harmony Korine, Os Idiotas (1998) e Dançando no Escuro (2000), de Lars von Trier,

Pi (1998) e Requiem for a Dream (2000), de Darren Aronofsky, Festa de Família

(1998), de Thomas Vinterberg, Lola Corra Lola (1998), de Tom Tykwer, A Bruxa de

Blair (1999), de Eduardo Sánchez e Daniel Myrick, Clube da Luta (1999), de David

Fincher, e Time Code (2000), de Mike Figgis.

Mais adiante em seu texto, ele afirma que o New Cinema Punk possui uma dívida estética e política com o punk rock dos anos 1970. Em seguida faz uma ressalva: “O que é imediatamente claro é que esses filmes não eram todos ‘independentes’[…]” 125

(ROMBES, 2005, p. 2, tradução nossa). Ele prossegue justificando que o termo “independente”, nos dias de hoje, tem menos valor, já que “[...] muitos filmes são financiados por redes complexas e interrelacionadas, quando muitos dos grandes estúdios têm suas próprias divisões supostamente 'indie' [...]” 126

(ROMBES, 2005, p. 2, tradução nossa). Segundo nossa demarcação sobre o punk e o Cinema Punk, que é mais bem discutida no início desse capitulo, essas afirmações de Rombes são contraditórias. Além disso, durante todo o seu texto vamos encontrando indícios de outras incompatibilidades.

Retomo aqui, brevemente, o conceito de estética de Jacques Rancière, no qual ele nos indica que estética está associada à politica, bem como a análise de Stacy Thompson sobre a produção econômica do punk, que conclui que a história do punk é dada pela interação entre sua estética e sua economia, além da incidência de uma sobre a outra, para pensar a seguinte afirmação de Rombes: “Consequentemente,

125 No original: “What is immediately clear is that these films were not all ‘independent’ […]”

(ROMBES, 2005, p. 2).

126 No original: “[...] many films are financed by complex and interrelated networks, when many of the

não há estética puramente punk ou economia; nenhum pode ficar sozinho” 127 (ROMBES, 2005, p.22, tradução nossa). Todavia, ao listar essa série de filmes, ele parece estar levando em consideração apenas o lado estético das produções, o que para nós é inconciliável com os termos em que propomos o punk e o Cinema Punk. Ao obter algum tipo de financiamento corporativo, como das grandes gravadoras, ou como no caso do cinema, dos grandes estúdios e/ou produtoras cinematográficas, o termo punk fica esvaziado de sentido. Existe uma questão ética em jogo que se perde quando há a incorporação do punk por grandes empresas. Por definição, o termo New Cinema Punk que Nicolas Rombes propõe não é punk, já que os filmes que ele cita têm vínculos com grandes produtoras cinematográficas, seja por meio de financiamento ou distribuição de suas subsidiárias, ditas como “independentes”.

Rombes prossegue nos dizendo que o “new cinema punk” não é um movimento formal, mas uma tendência e uma aproximação à produção de filmes que compartilham elementos-chave com o punk. E o que liga o grupo de filmes “new

punk” é a sensibilidade do faça você mesmo, a noção “romântica” de que todo

mundo pode criar alguma coisa, o desejo por mais autenticidade e realidade, trazendo uma atenção ao suporte fílmico como um elemento essencial. Segundo o autor, ainda há um interesse pela simplicidade, liberdade e experimentação (ROMBES, 2005, p.12).

A primeira relação que Rombes faz é com o movimento cinematográfico Dogma 95, que, segundo ele, se entrelaça ao discurso do faça você mesmo do punk, assim como à reivindicação por “autenticidade”. De acordo com Rombes, essa reivindicação de “autenticidade” ou “realidade” compartilhada entre o Dogma 95 e o punk é naturalmente baseada na relação dos dois grupos com os grandes e complicados aparatos tecnológicos dos meios de produção industrial. Para sustentar sua tese de aproximação entre o punk e o Dogma, ele usa falas de Amos Poe, que constam no DVD (2001) do filme The Foreigner (1977). Poe comenta sobre seu processo de filmagem e estabelece similaridades com o Dogma 95. Os trechos transcritos das falas de Poe, que comparecem no texto de Rombes, se dirigem especificamente ao som do filme, que não recebe um tratamento na pós-produção e

127 No original: “Consenquently, there is no purely punk aesthetics or economics; neither can stand

é gravado diretamente das cenas. Seguindo seu raciocínio, Rombes mostra a ligação do punk com as tecnologias de qualidade simples e barata, desde o final dos anos 1970, utilizados pelos punks na produção de música e na promoção de selos independentes. Ele também traz trechos de falas de Lars von Trier, de modo a mostrar que o Dogma, assim como o punk, se afasta de todo o perfeccionismo do cinema industrial, defendendo a simplicidade e as novas tecnologias digitais, que ajudam a democratizar os meios de produção. Para Rombes, as câmeras digitais seriam equivalentes as câmeras 8 mm e 16 mm dos diretores punks dos anos 1970.

Partindo dessa análise, investigaremos aspectos do movimento Dogma 95, um movimento radical do cinema europeu, surgido na Dinamarca. Foi idealizado pelos diretores Thomas Vinterberg e Lars von Trier, responsáveis por redigirem um manifesto que recebe o nome de “Voto de Castidade”, estabelecendo 10 regras a serem seguidas por seus participantes. O Dogma 95 pretende ser um movimento no qual se procura um cinema mais simples, básico, sem efeitos especiais, centrando- se no poder da narrativa e na interpretação dos atores. As 10 prescrições do Dogma delimitam fronteiras onde o realizador pode experimentar. Em relação ao Cinema Punk, podemos observar que essa demarcação estabelecida pelo Dogma torna-se um ponto de discordância entre os dois grupos, já que a produção punk preza pela total liberdade criativa, desde a não associação econômica com investimentos privativos ao aspecto formal dos filmes. O Cinema Punk é caracterizado por uma produção heterogênea, que ataca modelos estéticos de produção de filmes e ao mesmo tempo reivindica a socialização dos meios de produção.

A primeira obra cinematográfica do Dogma 95 foi Festa em Família (1998), de Thomas Vinterberg. O filme está associado a 4 produtoras e a 21 distribuidores, dentre eles alguns são subsidiários de grandes corporações cinematográficas, como por exemplo a October Films, que distribuiu o filme nos Estados Unidos e tem como proprietária a Universal Pictures 128. Esse é outro aspecto que diferencia os filmes Dogma e o Cinema Punk, pois o punk se preocupa com essas parcerias e concessões realizadas através de acordos com os grandes estúdios do cinema. Outra particularidade parte do ponto de vista estético: quando assistimos Festa em

128

Disponível em http://articles.latimes.com/1999/sep/28/business/fi-14956. Acessado em 13/12/2016.

Família, temos a sensação de um extremo profissionalismo. O filme é

cuidadosamente editado e tem uma fotografia muito bem executada. A câmera digital portátil, usada no filme, é ágil, dá um ritmo “real” à narrativa do filme e sugere uma intimidade, um uso muito consciente de Vinterberg da forma fílmica e das normas estabelecidas pelo Dogma. Na contramão, o Cinema Punk traz uma aparência amadora: em diversas ocasiões os filmes são realizados por indivíduos sem formação cinematográfica, o suporte de trabalho escolhido para realização dos filmes punks se dá através do que estiver disponível, do que é economicamente viável em cada época, seja ele super-8, 16 mm, vídeo analógico ou, mais recentemente, vídeo digital. Definitivamente, o agrupamento realizado por Nicolas Rombes, sob a denominação de “new cinema punk” estabelece fracas relações com o punk.

O punk tem mudado através de sua história. Trago aqui dois exemplos que ilustram essa trajetória. Depois que o som punk de Nova Iorque e Londres, e seus estilos de roupas, tornaram-se economicamente vantajosos, o hardcore emergiu nos Estados Unidos em resposta a essa comercialização. O punk sempre procurou estar um passo à frente ou um passo fora do mercado. No início dos anos 1980, por exemplo, depois que o hardcore se tornou popular, seus tempos musicais rápidos e cortes de cabelos muito curtos começaram a obter sucesso econômico. Assim, bandas do meio hardcore, como o Flipper, passaram a fazer um som mais lento, com uma cadência “triste”, enquanto membros do conjunto Black Flag mudaram seu visual e deixaram seus cabelos compridos. É possível ver isso, também, através dos filmes punks, como o já citado The Foreigner (1977). A estética do Cinema Punk desempenha uma ação evasiva, não desconsiderando o mercado, mas se opondo a ele. No punk o ritmo do tempo é importante, e em The Foreigner, o andamento é lento.

Segundo Stacy Thompson, atualmente o Cinema Punk continua com produtores contemporâneos que introduzem novas estéticas anticapitalistas dentro dos filmes, enquanto seu lado econômico não tem mudado (ROMBES, 2005, p. 31). Como os filmes que o precedem, o cinema punk atual engloba filmes produzidos de maneira independente, que atacam os domínios do capitalismo econômico e os modelos estéticos para a realização de filmes, enquanto, ao mesmo tempo, socializam os

meios de produção. Podemos citar alguns cineastas que atuam no fim dos anos 1990, e continuam produzindo até hoje, permanecendo independentes e dialogando intimamente com o punk, como é o caso de FJ Ossang em Docteur Chance (1997) e

Dharma Guns (2010), Jem Cohen em Instrument (1999), Lech Kowalski em The Boot Factory (2000) e Hey is Dee Dee Home (2003), Alexander Oey em Crass - There is No Authority But Yourself (2006), Marcelo Apezzato e Fernando Rick em Guidable - A Verdadeira História dos Ratos de Porão (2009), Gurcius Gewdner em How to Irritate Hardcore Dandis (2012) e Ricardo P. Pinheiro em Kinyoku - Pequeno Subundo (2014). Os filmes punks podem nos oferecer um método para a crítica

filmica a partir de uma perspectiva materialista, porque, no fim, eles se preocupam com a forma de como os filmes se manifestarão de maneira relevante no mundo.

No documento Metamorfoses do cinema punk (1975-1990) (páginas 142-146)