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CAPÍTULO I. Homens, violência e saúde

5. Antes de prosseguir

É impreterível que, para o melhor andamento deste escrito, sejam desenroladas, ainda, algumas reflexões específicas.

Primeiramente, faz-se essencial não perder de vista que a palavra “homem”, tão repisada até o momento, revela, em termos materiais, uma variedade interna substancial. Dito de outra forma, quando os homens são tomados em suas vivências concretas, encontramos situações tão distintas quanto a de um negro desabrigado e a de um branco pertencente às classes mais abastadas do país. Para além, portanto, de uma categoria padrão ou hegemônica, há, certamente, os que estão em posição mais subalterna e/ou marginalizada. Isso sem desconsiderar que, mesmo entre os homens de uma mesma classe social ou raça, não há, necessariamente, homogeneidade.

Igualmente, é primordial atentar ao fato de que, historicamente, o sistema de saúde público nacional tem sido o destino daqueles em situação socioeconômica mais desfavorável, uma vez que o brasileiro com mais recursos tende a direcionar seu cuidado ao setor privado.

No que tange à dimensão racial, é nítido que negros se encontram em situação de maior vulnerabilidade do que aqueles de cor branca no Brasil. Corrobora com tal afirmação o levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) intitulado “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”, o qual demonstra,

entre outras coisas, que negros possuem renda inferior e menor escolaridade do que os brancos (55).

O documento mencionado acima atesta, do mesmo modo, que a população SUS-dependente se constitui, em sua maioria, daqueles com renda mais baixa e pele negra (ibidem). Nesse sentido, é lícito considerar que, quando estamos refletindo sobre os programas e políticas do SUS (PNAISH inclusa), tratamos das políticas públicas direcionadas aos que, via de regra, encontram-se excluídos da hegemonia política e econômica nacional.

Retornando às ponderações sobre raça, nota-se que, no campo da saúde do homem, a bibliografia brasileira enfatiza, com frequência, a expressiva diferença de mortalidade relacionada a violências. Assim, Medrado et. al. (9) revelam que, no ano de 2006, a taxa padronizada de homicídios para homens pretos foi de 68,3 óbitos por 100 mil habitantes, enquanto que o mesmo índice para homens brancos ficou em 37,13.

Na mesma direção, o Mapa da Violência (40) indica que a vitimização negra, ou seja, a proporção de negros mortos em comparação com os óbitos de não- negros, tem crescido de 2003 a 2012. Cerqueira e Coelho, por sua vez, demonstram, em artigo citado pelo Atlas da Violência de 2017 (54), que, mesmo quando descontadas variáveis como escolaridade, bairro de residência, sexo, idade e estado civil, as chances de um negro morrer assassinado são 23,5% superiores.

À luz dos pontos previamente debatidos, é seguro dizer da existência de maiores vulnerabilidades de homens negros, jovens e pobres para os temas em análise. Se neste estudo a escolha é por um recorte abrangendo todo o grupo de homens, esta não se dá em desconsideração de tais disparidades.

E, na esteira das elaborações de Couternay, referidas por Couto e Schraiber (22), pode-se afirmar que os homens pertencentes a grupos mais subalternos, por se situarem a maior distância do padrão hegemônico de masculinidade, estariam particularmente susceptíveis a recair no que esse autor chama de “hipermasculinidade”. Esta, por sua vez, seria um modo de compensar inseguranças quanto à identidade de gênero e implicaria em maior presença de comportamentos de risco (ibidem).

Agora seria oportuno, abrindo-se um breve parêntese, trazer à tona outros dados de interesse a este estudo. A Pesquisa Nacional Sobre a População em Situação de Rua (56), publicada em 2008, indica que esta população é composta por 82% de homens. Outra relevante pesquisa brasileira, que aborda o uso de crack nas cidades do país, afirma que 78,68% das pessoas em cenas de uso desta substância psicoativa (SPA) são do sexo masculino (57).

Indo um pouco além, é pertinente destacar algumas possíveis disparidades no campo da educação. Segundo o documentário norte-americano de 2015 intitulado “The Mask You Live In” (58) haveria, atualmente, mais abandono escolar por parte de meninos do que meninas. Similarmente, uma pesquisa do Instituto Promundo com adolescentes evidenciou que a quantidade de garotos que passou ao menos um ano fora da escola era o dobro, quando em comparação com o número de garotas na mesma situação (59).

O panorama até aqui traçado, revela, enfim, alguns pontos fundamentais na compreensão de vulnerabilidades específicas ao sexo masculino. Patente está que, no cenário apresentado, salta ao primeiro plano a temática da violência, a qual seguramente se configura como elemento constituinte das muitas sociabilidades e modos masculinos. E a produção acadêmica está deveras atenta a tal correlação. Em seu artigo de 2005, Souza (4) entrevê um plausível paralelo entre duas destacadas causas de morte entre homens – homicídios e acidentes de trânsito – e dois típicos brinquedos de meninos – arminhas de fogo e carrinhos.

Com efeito, os modelos tradicionais de masculinidade deixam cicatrizes profundas em todo o corpo social. Muitas dessas marcas foram aventadas pelo documentário mencionado há pouco. Por exemplo: a educação e sociabilização dos garotos se caracterizaria por notável desestimulação a expressões de afetos, em especial conforme este menino vai chegando à adolescência. Pouco a pouco, as interações entre os jovens ficariam demarcadas por uma rejeição coletiva a traços mais “femininos”. Aqueles que desviam desse acordo tácito, pagariam com ostracismo e intimidações. Tal dinâmica fomentaria, por consequência, os conhecidos fenômenos do machismo e da homofobia (58). Somado a isso, a baixa disponibilidade afetiva predisporia homens a um maior isolamento, e a uma sensação de que não se pode contar com ninguém. De maneira parecida, o artigo de Scott (48) sumariza: “Cada homem evita expor a sua vulnerabilidade individual”.

A definição social de masculino ocorre, assim sendo, por intermédio de negativas: uma acepção de homem enquanto “não-gay” e “não-mulher”. Naturalmente que o cuidado, atribuição socialmente atribuída ao polo feminino, torna-se característica a ser rechaçada. Como postula Couternay, ao desconsiderar “suas necessidades de cuidado em saúde, os homens estão construindo gênero” (apud. Couto e Schraiber) (22).

Para Schraiber e Figueiredo (60), existem, em verdade, mecanismos de controle reduzindo corpos masculinos tão somente à sua força física de trabalho. Nesta conjuntura, a faculdade de se cuidar é desvalorizada – ao contrário, fomenta- se a não necessidade de cuidado, a não ser que o homem já não consiga dar conta do trabalho socialmente exigido; neste caso, ocorre a “reposição de peças” (ibidem). O entendimento de que os problemas sociais e de saúde aqui elencados guardam relação com sociabilidades e práticas generificadas sugere que somente uma abordagem ampla e crítica a tais questões se revelará efetiva. Isso implica não apenas na proposição de intervenções de saúde atentas a tais imbricamentos, como também na elaboração de ações educativas e na criação de intervenções micropolíticas que possam fazer frente à institucionalização da violência. Igualmente vital é a produção de mais conhecimento científico dedicado às interações entre saúde, violência e masculinidades.