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CAPÍTULO I. Homens, violência e saúde

4. Violência e saúde

Conforme apontado na introdução deste trabalho, a interface entre violência e saúde sempre se deu de tal maneira que esta apenas respondia àquela, ou seja: a saúde entraria em cena somente depois de ocorridas as violências. Na reavaliação de tal relacionamento, o já mencionado Relatório Mundial sobre Violência e Saúde da OMS seria um destacado marco.

Calcado na compreensão de que a violência não deve ser naturalizada como inevitável, o referido documento traz, entre suas conclusões, a recomendação para que se promovam mais respostas de prevenção primária a tal fenômeno. A argumentação, portanto, dá-se a favor de uma atuação anterior à ocorrência do episódio de violência. Tal opção implicaria em atividades permanentes e multisetoriais. Envolveria, ainda, o enfrentamento a certa cultura populacional que tende a clamar unicamente por ações mais reativas (13).

Assim, na construção de uma sociedade menos violenta, seriam necessárias políticas públicas baseadas em ações estruturais e interdisciplinares. Contudo, a abordagem que o poder público adota na lida com o tema tende a ser de cunho mormente repressivo, em lugar de uma aproximação que contemple a prevenção e a promoção de saúde (9).

Pode-se afirmar que as iniciativas públicas brasileiras voltadas, em específico, para a prevenção da violência são bastante esparsas. Não obstante, Minayo e Souza (12) descrevem, em artigo de 1999, dois exemplos de estratégias elaboradas

com tal objetivo – uma delas do Ministério da Saúde (MS) e outra oriunda do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS). Chama a atenção, contudo, que nenhuma das abordagens descritas traga qualquer proposta preventiva destinada especificamente aos homens, que, como visto anteriormente, são uma população com significativa participação em tais eventos.

E, de modo condizente com a literatura que coloca o homem como principal autor crimes e violências, observa-se que a população carcerária brasileira é constituída de vasta maioria masculina. Apesar do significativo aumento na quantidade de mulheres encarceradas (crescimento populacional de 567% no período de 2000 a 2014), a parcela de homens segue representando expressivos 93,6% do total de presos (44). Oportuno pontuar que o referido relatório da OMS não descarta o trabalho com agressores como uma possível estratégia de prevenção terciária (13).

Como já foi exposto, a inserção dessa temática no campo da saúde tem acontecido de maneira claudicante e paulatina. Ao mesmo tempo, a tendência parece inevitável, pois, conforme exposto em documento da Organização Pan- Americana de Saúde:

A violência, pelo número de vítimas e pela magnitude de sequelas orgânicas e emocionais que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu em um problema de saúde pública em muitos países [...]. O setor saúde constitui a encruzilhada para onde convergem todos os corolários da violência, pela pressão que exercem suas vítimas sobre os serviços de urgência, atenção especializada, reabilitação física, psicológica e assistência social (apud. Minayo) (45).

No Brasil, a escalada na quantidade de óbitos violentos é verificável se considerarmos que, na década de 1930, estes representavam apenas 2% da soma dos óbitos, enquanto que, em 1989, significavam 15,3% do total (5).

Particularmente com relação às agressões, é notável que, segundo o Atlas da Violência (46), mais de 10% dos homicídios do planeta aconteçam em nosso país. Em números absolutos de homicídios, o Brasil seria o primeiro colocado mundial.

Sem dúvida que, para se pensar na reversão a tal cenário é indispensável melhor compreendê-lo. A própria Política Nacional de Redução da Morbimortalidade

por Acidentes e Violências (PNRMAV) acentua a necessidade de mais produção acadêmica na área. Entre o saber já produzido, destacam-se os escritos de Sérgio Adorno, os quais, segundo Malta et al. (14), apontam fortes associações entre violência e pobreza resultante de exclusão e iniquidades. Similarmente, Andrade e demais autores, afirmam que a desigualdade social, mais do que a miséria, seria um fator determinante à ocorrência de homicídios (apud. Moura et al.) (39).

Mais especificamente dentro do diálogo entre violência e saúde, é possível citar o trabalho de Imperatori e Lopes (47), as quais observaram que os agentes comunitários de saúde referiam dificuldades e sentimento de despreparo ao lidarem com casos envolvendo os diversos tipos de violências. Complementarmente, Scott (48) aventa a possibilidade de certa conivência dos profissionais de saúde para com o não comparecimento de jovens homens nos serviços de saúde, uma vez que este grupo seria vinculado a um imaginário de violência do qual não se deseja proximidade.

Schraiber e colaboradoras (49), por sua vez, referem que, após revisão de estudos científicos datados entre 1980 a 2005, praticamente não foram encontrados artigos que analisassem, em profundidade, a prevenção da violência e o papel da saúde neste âmbito.

Igualmente importantes são os apontamentos de Minayo (36), a qual assevera que a disseminação de armas de fogo seria aspecto determinante na propagação das mortes violentas, especialmente entre homens. Como indicado pela autora, é preciso estar atento para a existência de um grande mercado de armas, interessado na propagação de seus produtos em escala global (ibidem). Proveitoso relembrar, nesse mesmo sentido, o trabalho de Chesnais (50), que realça a percepção de certa obsessão com segurança entre os brasileiros, a qual também seria alimentada por mercado correspondente.

É também Minayo (36) quem faz a necessária ressalva de que a violência não se traduz unicamente em eventos físicos, mas que também apareceria de outras formas. Do mesmo modo, a violência poderia ser perpetrada não somente por indivíduos, mas também por instâncias diferentes, tais como instituições, classes e famílias. E mesmo a omissão poderia se desvelar enquanto violência (ibidem).

A violência contra mulheres, em específico, é outro ponto de preocupação de parte da produção acadêmica nacional. Para Couto e Schraiber (51), as agressões às mulheres devem ser compreendidas enquanto violências de gênero, pois se configuram como “uma das expressões mais veementes e brutais do machismo” III

. Além disso, a violência contra a mulher se caracterizaria pela ocorrência em espaço doméstico, juntamente à presença de um parceiro afetivo-sexual como agressor (53). Inversamente, nos casos em que a vítima é um homem, as violências seriam perpetradas por desconhecidos e tenderiam a ocorrer em espaços públicos. Em comum, há o fato de que o agressor, na grande maioria das ocasiões, é do sexo masculino (22).

No que se refere à violência doméstica, Cerqueira e demais autores (54) defendem que, na sua prevenção, é essencial que o acesso à rede de atendimento à mulher ocorra não apenas pelo sistema judiciário, mas também pelo setor saúde. A posição estratégica desta área decorreria do fato de que mulheres agredidas tenderiam a procurar serviços de saúde antes e mais frequentemente do que instituições como delegacias.

Em vista do exposto, é plausível dizer que a violência de gênero se anuncia como um possível ponto de entrada do setor saúde na lida com as violências. A violência por causas externas, por sua vez, poderia, talvez, seguir caminho análogo, configurando-se, futuramente, como ponto estratégico de intervenção da APS junto à população masculina.

A relevância do intercruzamento dos assuntos em análise pode ser depreendida na passagem abaixo.

O problema violência se mostra fecundo para o entendimento das relações entre masculinidades e saúde em duas grandes vertentes: de um lado, nas relações de sociabilidade entre homens, que adquirem conformações extremamente perversas e nas quais o recurso à violência física se justifica e se banaliza, e se traduz em altos índices de mortalidade; e, de outro lado, na esfera doméstica, espaço das relações afetivo-sexuais entre homens e mulheres, onde

III Para Schraiber, D’Oliveira e Couto (52), a violência de gênero seria expressão de uma crise nas relações de dominação tradicionalmente estabelecidas entre homens e mulheres. Nesse sentido, a agressão seria um veículo para o homem reconquistar o poder ameaçado, ou prevenir a sua perda. A violência de gênero seria, então, uma “prática educativa, de aculturação nas tradições” (ibidem). Com relação ao termo “machismo”, este é aqui compreendido como “um sistema de ideias e valores que institui, reforça e legitima a dominação do homem sobre a mulher” (51).

as assimetrias de poder e a dominação masculina se expressam em atos violentos contra as mulheres que têm importantes repercussões na saúde (22).

É a partir dos vários achados mencionados que fundamentamos a presente pesquisa. Aposta-se, em suma, que a violência tem o potencial de se configurar como um novo campo para saúde coletiva, contendo em si, como escreveu Deslandes, “a possibilidade de rejuvenescimento do escopo, dos debates e da própria definição dos horizontes e missão do setor” (apud. Malta et al.) (14).