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CAPÍTULO III. Resultados e discussão

2. Fatores condicionantes e cenário ampliado

2.1 Álcool, drogas, tráfico e polícia

2.1.3 Polícia, criminalidade e setor saúde

Inevitavelmente, a instituição policial acabou sendo objeto de alguns comentários ao longo das entrevistas. Parte deles já apareceu anteriormente e também poderão ser encontrados em outros trechos desta sistematização de resultados. Aqui, contudo, serão apresentadas, em conjunto, algumas das observações mais marcantes dentro deste tema.

A começar pelas falas que destacam as divisas entre o setor de segurança e o setor da saúde. Sabe-se que, embora representantes do Estado, os profissionais de saúde conseguem inserção junto a pacientes que estão na ilegalidade em função de um acordo tácito, pelo qual a saúde não interfere no que não lhe diz respeito. A fronteira deve permanecer clara e intransponível, e as duas cenas abaixo descritas se assemelham a instantes de certificação: o trato não pode ser desfeito.

Inclusive uma vez a gente foi levar uma convocação de consulta, se eu não me engano, de exame de ultrassom pra ela, pra companheira dele, e a gente tava vindo, e a gente encontrou com ele no caminho. Ele nem sabia que a gente tava indo na casa dele, mas acho que ele deduziu que a gente tava indo lá (…) depois ele voltou e falou “cês tão indo aonde, cês tão indo na minha casa?” (…) Sempre desconfiado. (Luana, ACS)

Três rapazes param a gente no meio do caminho, duas horas da tarde. (...) E, assim, questionavam: “você está indo, porque que você tá indo?”. Fomos lá, visitamos ela, saímos da casa. Em seguida, quem chega? A polícia. Federal! Pra falar com a família, pra entrar lá dentro. Nós saindo, e o carro da federal, pretão, entrando, com três policiais. Na mesma casa, entendeu? Que no fundo tinha mais duas casas que faziam parte da casa da frente também. Só que nós tínhamos que ir visitar essa senhora, ela fazia parte da nossa visita domiciliar. Então é onde que a gente fala, ir no território com agente de saúde, porque a gente conhece a família e nós somos a ponte. (Zilda, ACS)

Como pontuado no último trecho destacado, as Agentes Comunitárias de Saúde – e em última instância, a própria saúde – findam por se constituir como pontes entre o Estado e certas populações, ainda que esteja claro que a saúde não deva trabalhar como polícia ou em conjunto com ela. É, sem dúvida, necessário levar tal cenário em consideração quando se deseja raciocinar sobre a dita resistência do setor de saúde a incorporar a violência em sua agenda.

No excerto abaixo, descreve-se novamente essa fronteira. O agente pode até se perceber “investigando” alguma matéria, mas a sua “ética profissional” (ou sigilo) o coloca em um lugar certamente outro.

Então, o agente de saúde ele é, psicólogo, psiquiatra, assistente social, conselheiro tutelar, entendeu? Ele é esse daí. E, às vezes, é polícia, junto. Porque você tem que trabalhar esse lado, também. Investigador. É legal isso. Mas também fica aqui, na sua ética profissional. (Zilda, ACS)

A “travessia da fronteira” implica em movimentos sutis, viabilizando a convivência de partes bem diversas.

Não dá nem pra ir, assim. Eu ia por ser da saúde. Até aqui, a gente ia por ser da saúde, entrava, tava uma galerinha lá, de repente eles sumiam, entendeu? Depois saía, a galera voltava. (Zilda, ACS)

O cuidado onde se pisa do profissional se aparenta ao que a própria população tem ao ocupar o território. Há, enfim, medo.

É uma coisa da comunidade, né, a comunidade sabe quem são os agressores, os infratores, mas não denuncia, porque, né, pela própria vida em risco. (Antônio, ACS)

Adiante, estão exibidos dois trechos que fazem referência a mortes decorrentes de confrontos entre policiais e bandidos. No segundo deles, menciona- se também a participação de organizações criminosas nos óbitos.

Recentemente a gente teve um caso que saiu aqui. Era da região nossa, de um assassinato mas era envolvimento, era de traficantes, até tinha... até balearam policial, e aí saiu até na mídia, mas não era casos vinculados a nós, assim, não refletiu [em] família aqui do centro de saúde.(Sandra, enfermeira)

Tem muitos casos, sabe assim, que morreu porque levou um tiro da polícia ou porque levou tiro da própria organização [criminosa]. (Zilda, ACS)

A violência oriunda de ação policial, de fato, tem sido debatida por autores como Mena (67). Esta afirma que em 2013, 2212 pessoas teriam sido mortas por policiais no Brasil. Comparando-se o mesmo período, a polícia norte-americana matou 461 indivíduos. Já no Japão e no Reino Unido, não houve mortes por esse motivo.

Retornando aos resultados, verifica-se, ainda, que aparecem falas das quais se infere a percepção de que o policial que eventualmente comete algum crime recebe outro tipo de tratamento.

Ele ficou preso, mas como, né, ele tem uma… acho que ele trabalhou na polícia, alguma coisa assim – soltaram ele. Porque se não ele ia

morrer lá dentro, muito provavelmente, né, porque policial preso não existe, né. (Antônio, ACS)

A polícia se trata, enfim, de uma instituição que se insere num conjunto de relações de poder, assim como o crime. Nesse sentido, surge ainda esta fala, a qual aponta para um contexto mais amplo. Em outras palavras, as fatalidades não acontecem simplesmente ao acaso, mas sim, ocorrem, “fatalmente”, com maior frequência para certas populações, a partir de certas condições outras.

Mas eu vejo que é mais seguro nesse sentido de ser um bairro protegido, por ter esse público diferenciado (...) e os próprios criminosos, assim, ficam intimidados de cometer crimes com essas pessoas (…) mesma lógica, né, da polícia proteger e do bandido atacar. É a mesma coisa, se a pessoa é uma pessoa importante, protegida, os dois tomam uma distância. (Antônio, ACS)