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CAPÍTULO III. Resultados e discussão

2. Fatores condicionantes e cenário ampliado

2.1 Álcool, drogas, tráfico e polícia

2.1.2 Drogas e tráfico, analisadores primordiais

Em várias entrevistas o uso ou não uso de drogas foi espontaneamente trazido pelo profissional como um fator de análise decisivo. Assim, nos diversos exemplos listados adiante, depreende-se que “ter problema com droga” é algo que ajudaria a explicar uma morte violenta e/ou precoce.

Ele também se suicidou, só que esse tinha problema com droga, né. Ele fazia acompanhamento lá no Pe. Haroldo. E ele se enforcou no quarto. Ele morava sozinho, ele não tinha familiares aqui em Campinas. (Bona, auxiliar de farmácia)

Encontraram ele ali morto ali e eu acho que foi um assassinato. Acho que foi isso. Não sei te falar se era algum envolvimento com droga que ele tinha. (Sandra, enfermeira)

Tem um que o rapaz era usuário e se enforcou na frente da irmã. Que o pessoal diz “é usuário, tem problema e tal”. Era paciente daqui. (Ari, ACS)

Nesse público-alvo aí que você tá falando o que atinge mais são essas questões relacionadas com o uso de álcool e drogas, né. Então, às vezes, é cobrança de dívida, né, que acontece bastante. (Antônio, ACS)

Pelo contrário, quando a vítima não era usuário de quaisquer substâncias psicoativas, transparece algo próximo a um estranhamento.

No sábado, ele se suicidou. Um jovem lindo, um menino bonito, um rapaz bom, de família boa, não tinha vício de droga, não tinha vício de bebida. (Bona, auxiliar de farmácia)

E as fronteiras entre as categorias usuário, traficante e criminoso mostram-se tênues, ao menos nos trechos em destaque:

Na verdade eu achava… eu, eu achava que ele era usuário, que eles faziam tipo tráfico e coisa. Eu num imaginava que ele era assaltante, entendeu? Na minha cabeça, né. Mas acho que quem tá envolvido com essas coisas taí pra qualquer coisa. (Luana, ACS)

Porque normalmente o usuário, dependente de droga, ele acaba se envolvendo no tráfico. Né, assim, de uma forma ou de outra, muitos deles acabam se envolvendo com essa história de ser o pequeno traficante, né. (Marjane, médica)

Igualmente, a presença de tráfico de drogas nos territórios tende a ser prontamente vinculada à ocorrência de homicídios.

O que leva a ter muito homicídio? Eu acho que é coisa de droga, né. Pessoa que mexe com tráfico de drogas ou alguma coisa desse tipo, relacionado com o crime, né. Eu acho que é mais disso. Que aqui tem muito, né. Essa região tem muito coisa de droga, né. (Davi, ACS) Que a gente tem um alto número de mortes por causa externas, a gente tem. Eu entendo que a minha região é uma região bem vulnerável pra isso. Eu tenho vários pontos de tráfico de drogas dentro do meu território que favorecem óbitos por causas externas. (Sandra, enfermeira)

Sobre essas mortes, os profissionais de saúde ressaltam terem conhecimento da existência de uma justiça paralela, atrelada ao mundo do crime.

Porque eu acho que... como vou te falar... o mercado do tráfico de drogas tem algumas punições que são... que a punição possa ser um assassinato. (Sandra, enfermeira)

E tem umas leis próprias do tráfico, assim. Você deve conhecer. Eles tem um código legal que não é o nosso código penal brasileiro. E as pessoas são julgadas, né, entre aspas, como se fosse um tribunal, mesmo. E tem as sentenças. E esse caso, o que eu lembro, ele era um usuário e parece que ele aprontou, né, infringiu esses códigos, esses outros códigos éticos, ele foi espancado, arrancaram os olhos dele, enrolaram ele com arame farpado e deixaram sangrando até morrer. (Marjane, médica)

Um dos entrevistados salienta que a existência dessa espécie de poder paralelo terminaria por gerar consequências, a priori, inesperadas na comunidade, uma vez que a sensação de segurança poderia aumentar nesse tipo de contexto.

A gente tem mais uma característica de… desse perfil do justiçamento, né. Do cara que todo mundo do bairro conhece que é o cara que bate na mulher, né. Que comete crime no bairro e tal. E aí uma hora ele encontra alguém, uma liderança do bairro, talvez, aonde tem tráfico, né. Isso é presente, a gente tem isso. [Tem] estudos que mostram isso, né. Na verdade a redução do crime não é pela repressão policial. É pela própria presença do tráfico, né, do comando, do PCC, né. Porque, assim, eles, eles tem uma, uma das normas deles é essa, não pode ter violência aqui no nosso comércio, no nosso ponto. Assim como no shopping, né. Não pode entrar qualquer um no shopping. No shopping deles eles fazem aquela proteção, né. Então, assim, não pode ter caso de assalto, não pode ter caso de estupro, não pode ter caso de agressão, de homicídio. Isso é protegido por eles mesmos. A própria comunidade, né. Então quando tem uma coisa eles mesmos vão lá e resolve, né. Faz o que eles chamam do “salve”, né. Do tribunal. “Ah, o fulano de tal pegou uma mina do traficante”. Aí antes do traficante ir lá e matar o cara, eles fazem o “salve”, né, chamam as lideranças do comando e decidem o que que faz. (...) Casos como esse acontecem, são pulverizados por aí. E, assim, você pode tentar buscar 'n' motivos pra isso, né. Se é uma falta da ação do poder público, se é mesmo a cultura, da honra, né – principalmente homem contra homem. Tipo: “Não, todo mundo vai ficar sabendo que ele me lesou, vou lá e vou fazer alguma coisa”. (Antônio, ACS)

Parece válido, ainda, mencionar uma última fala, na qual o entrevistado dá mostra de que haveria outras instâncias para além do tráfico observado localmente:

Sabe que eu não sei compreender isso? Porque atrás do tráfico tem pessoas muito grandes. Tem patrões muito grandes. Então é difícil a gente falar, sabe? Nem tão aqui. (...) Tem patrão que mora no bairro. (...) Mas atrás desse patrão, tem outros maiores. (Zilda, ACS)

Em síntese, a fala dos profissionais parece refletir algo do discurso antidrogas disseminado no Brasil e resto do mundo ao longo das últimas décadas. Essa tendência fica implícita, por exemplo, na consideração do uso de drogas como “fator de risco”. Por um lado, a dependência é lembrada quase como razão última da violência, algo como “este morreu, mas usava droga”. Por outro lado, os não- usuários que falecem precocemente tem sua abstinência listada junto a outras características tidas como positivas: “lindo, bom, sem vícios”. Nesse caso, soa como se a morte fosse mais injusta ou não fizesse sentido.

Outro ponto recorrente nas falas exibidas é a percepção de que o tráfico de drogas interferiria na geração de violências nos territórios. Essa influência seria concretizada tanto nos embates entre criminosos e a lei, quanto pela atuação dos traficantes junto à comunidade, havendo descrições de um poder paralelo ao estatal. E, embora apareça uma fala dissonante, afirmando que a presença do tráfico nas comunidades tenderia a colaborar no controle da criminalidade, a maioria dos depoimentos dá a entender o inverso.

Cabe pontuar que não compareceram questionamentos dos profissionais quanto à política vigente de guerra às drogas, a qual, em última instância, viabiliza a configuração de um mercado ilegal. Ao mesmo tempo, o pesquisador também não entrou diretamente nesta temática, por meio de suas intervenções.