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CAPÍTULO I. Homens, violência e saúde

2. Saúde do homem

Convém agora retomar alguns relevantes achados acadêmicos brasileiros acerca da saúde do homem, os quais foram referenciais indispensáveis à composição desta pesquisa. Existe, sem dúvida, uma profícua produção científica nesse campo, embora esta ainda ocorra em volume incipiente.

Faz-se necessário sublinhar, anteriormente, que o debate nesta área não se dá sem algumas dificuldades, estando o pesquisador constantemente sujeito a recair em reducionismos e naturalizações indevidas. Para fazer frente a tal espécie de preocupação, uma parcela significativa dos autores aqui mencionados buscará incluir em suas análises a perspectiva de gênero, de tal forma a qualificar e aprofundar suas discussões. A já referida noção de masculinidade hegemônica é também um constructo teórico ao qual muitos estudos se referenciam.

Assim, para Leal e colaboradores (10), os homens devem ser considerados não tanto enquanto categoria humana, mas sim como categoria generificada. Tal concepção implicaria no entendimento de que existem relações desiguais de poder não apenas entre homens e mulheres, mas também entre os próprios homens (ibidem).

Adentrando especificamente na discussão relativa à saúde do homem, é possível afirmar que alguns achados acadêmicos já se anunciam como clássicos desta esfera temática. Por certo, está bem documentada a percepção de que haveria uma baixa presença de homens nos serviços de saúde atrelados à Atenção Primária, ao menos quando em comparação com a quantidade de mulheres, crianças e idosos utilizando os equipamentos que a compõem.

Quanto a esse esvaziamento, Figueiredo (27) analisa haver certo desencontro entre as necessidades de saúde masculinas e as atividades oferecidas pela Unidade Básica de Saúde (UBS), destacando, ainda, que esta é percebida como espaço feminizado, do qual o homem não se sente pertencente.

Nessa mesma linha, o trabalho de outros pesquisadores vem apurando certa tendência da população masculina a buscar assistência apenas em caso de

necessidade imperiosa. O homem, então, estaria mais inclinado a buscar serviços de assistência farmacêutica ou de pronto atendimento, dado que estes seriam percebidos como mais resolutivos (28,29). Os serviços de atendimento odontológico são, igualmente, apontados como de preferência da população masculina (30).

Conjuntamente aos achados acima, alguns estudos em campo indicam que os homens são vistos pelos profissionais de saúde como mais apressados e objetivos, além de serem mais comumente associados a práticas de cunho curativo (7). Schraiber e colaboradores, por sua vez, destacam que a ênfase à visão mais medicalizante e centrada nas queixas é fomentada por um movimento de mão dupla, estabelecido entre os homens e seus cuidadores (30).

Também acerca da relação entre profissionais e pacientes, Schraiber, em texto referido por Couto et al.(29), mostra que, na opinião de alguns trabalhadores de saúde, a pequena presença de homens poderia ser atribuída a maior resistência que este grupo “naturalmente” possuiria aos tratamentos de saúde.

Da mesma forma, o usuário da APS do sexo masculino é descrito por trabalhadores como apenas um “acompanhante” ou “mediador” das consultas de suas esposas e crianças, o que não necessariamente se confirma nas observações realizadas em campo por Leal e demais autores (10). Disso deduz-se que o homem seria atravessado por uma espécie de invisibilidade nos serviços de saúde (29,10).

Já de acordo com pesquisa realizada por meio de entrevistas com os próprios homens, a dificuldade em procurar os serviços de saúde poderia ser interpretada como fruto do medo de se descobrir alguma doença e da vergonha de se expor o próprio corpo para o médico, em especial por ocasião do exame de próstata (28). Outro obstáculo referido neste estudo foi a ausência de equipamentos de saúde específicos para o gênero.

De fato, as dificuldades masculinas seriam ainda maiores quando se trata da assistência ao câncer de próstata. Pois o exame de toque retal a isso associado ainda se apresentaria como tabu, representando ameaça a certa noção de masculinidade (31).

Sobre essa neoplasia específica, sabe-se que sua incidência na população masculina é importante, acometendo, em especial, os mais idosos e constituindo-se como o segundo tipo de câncer que mais mata homens brasileiros (32). Não

obstante, conforme já indicado na introdução deste estudo, a ênfase demasiada que a PNAISH dirigiu a tal enfermidade tem sido criticada. Parece igualmente essencial destacar que o próprio Instituto Nacional do Câncer (INCA) não recomenda o rastreamento ao câncer de próstata para a população em geral, devido à possibilidade significativa de iatrogenias e em função da redução irrelevante de mortalidade proporcionada pela tentativa de diagnóstico precoce (ibidem). De fato, alguns profissionais também parecem enxergar a priorização institucional a este tipo de câncer com reticência, a ponto de um médico entrevistado por Knauth et al. falar na existência de uma “próstata de Aquiles” ao se referir a essa problemática nas políticas de assistência ao homem (7).

Outra explanação recorrente para a menor presença de homens na saúde que se encontra na literatura especializada é a de que haveria certa incompatibilidade entre os horários de trabalho dos homens e o horário de funcionamento dos equipamentos de saúde (29,10). Schraiber et al. (30) corroboram com isso ao sublinharem que, para os homens, eventuais faltas no trabalho tendem a ser bastante malquistas, ainda que estas sejam justificadas via atestados ou declarações. Os últimos autores ainda complementam o exposto, destacando que o panorama descrito favorece em muito aos procedimentos de medicalização que visam tão somente à recuperação, “rápida e urgente, do corpo-força militar para o Estado e do corpo-força de trabalho para o capital” (ibidem).

Frequentes, também, são as leituras assinalando que o sexo masculino se notabilizaria por menor adesão a práticas de autocuidado (4). Ocorreria, inversamente, uma tendência a se valorizar o “descuido”, isto é, o “correr riscos”. Dito de outra maneira, “condutas arriscadas têm sido alguns dos atributos amplamente reconhecidos e aceitos como signos de masculinidade e muitos homens vivenciam o risco como ‘aventura’” (33). Gomes e demais autores (28), por sua vez, sumarizam tal questão desse modo: “os homens por se sentirem invulneráveis se expõem mais e acabam ficando vulneráveis. São duas faces da mesma moeda”.

E, em face do que pode aparentar ser um pequeno envolvimento dos homens com o Sistema Único de Saúde (SUS) – seja enquanto usuário direto ou enquanto planejador e requisitante de políticas públicas a ele direcionadas – parece pertinente questionar se há, por parte deste grupo, um efetivo interesse e investimento em sua

própria saúde. Para Carrara e colaboradores (8), o desapreço com o autocuidado seria o preço a se pagar na manutenção de certa imagem de si mesmo enquanto invulnerável, imagem esta intrinsecamente conectada a certa concepção de masculinidade. Justamente, a percepção de si mesmo enquanto imbatível seria o combustível primordial a uma série de vulnerabilidades específicas ao homem.