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VAIDADE JUVENIL

III. 2. Antes, os doutos, depois, o catecúmeno

Da aspiração por bem formar seus membros, a Igreja cristã medieval engendrou orientações que atestavam os meios convenientes a uma educação de qualidade. Traço dos saberes oferecidos aos jovens eclesiásticos, a ênfase na humildade saltava aos olhos. Especialmente em contexto monástico, ela deveria predominar para que ninguém acreditasse ser melhor que os companheiros. Assim, os esteios do processo educacional oferecido pelos monges da Idade Média primavam por ética e justiça, ambos consubstanciados na humildade.

Nesta seção, tencionamos compreender as dimensões filosóficas desse conceito a partir do que os próprios pensadores antigos e medievais ensinaram no que escreveram. Posteriormente, para cotejar nossas considerações, analisaremos os depoimentos deixados por Guiberto de Nogent no Livro I de Monodiae. Na juventude, Guiberto experienciou a difícil busca pela humildade, tarefa árdua que nos faz entender que nem sempre o que se pregava era o que efetivamente se concretiza no dia-a-dia de um mosteiro ou abadia. Mais ainda: nas entranhas do que se pregava, imiscuía-se outra realidade, mais humana e flexível, menos objetiva e intencional.362

*

O capítulo mais extenso de A regra de São Bento é o de número sete. São setenta versículos exortativos que tratam de um único tema: a humildade. Com quarenta e quatro citações bíblicas, este capítulo aduz a humildade como o cerne dos ensinamentos beneditinos. Humildade capaz de tornar o homem temente a Deus, caridoso com o próximo e sabedor dos próprios limites. Atributos que objetivam ceifar a arrogância e obrigar os humanos (monges ou não) a reconhecer e confessar os pecados perpetrados: “Irmãos, a Escritura divina nos clama dizendo: todo aquele que se exalta será humilhado e todo aquele que se humilha será exaltado.”363

Implicitamente, as páginas beneditinas faziam coro com um ponto radicado nos livros de A cidade de Deus de Agostinho que, por sua vez, igualmente valeu-se de extratos bíblicos para definir que o reino de Deus não era deste mundo, e que por este ninguém deveria se perder: “Jesus respondeu: ‘Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo,

362 “Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance,

não porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero” (Rm 7, 18-19).

meus súditos teriam combatido para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas meu reino não é daqui”;364

“A vinda do Reino de Deus não é observável. Não se poderá dizer: ‘Ei-lo aqui! Ei-lo ali!’, pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós” ;365 “Porquanto o Reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas é justiça, paz e alegria no Espírito Santo.”366

Com base nos ensinamentos do evangelista Lucas,367 o curto parágrafo beneditino ainda enaltecia os modestos e condenava atos soberbos, diretriz que se manteve na Regra de

Santo Isidoro: “Em nada deve julgar-se melhor que os demais, mas inferior a todos, [o

monge] brilha por tão grande humildade, quanto mais resplandeça entre os demais pela perfeição de suas virtudes.”368 O princípio estampado nessa regra monástica foi mantido pelo próprio Isidoro de Sevilha nas Etimologias: “Superbus (soberbo): assim se diz porque deseja ser considerado mais do que é; e os que desejam parecer mais do que são recebem o nome de ‘soberbos’.”369

Se duas influentes regras monásticas e um dos livros capitais para a constituição do pensamento cristão ocidental reservaram espaço relevante para a humildade (e seu extremo oposto, a “soberba”), que tipo de interpretação essa constância aventaria? Uma leitura inicial nos propõe um cuidado apurado com a gênese moral dos jovens educandos. Todavia, ao comparar essas fontes com outras de diferentes épocas e autores, notamos uma persistência temática. Uma vez mais, essa verificação nos sinaliza que, quando aplicadas ao mundo real dos que habitavam os mosteiros e abadias, as direções apontadas não foram absolutamente acatadas. Assim, entre o ideal e o real, havia uma distância. Nela, habitavam as incertezas humanas, os desvios e a vaidade dos monges. Feita essa pequena volta, retornemos aos mestres.

Em O pedagogo, Clemente de Alexandria (c.150-215d.C), personagem ativo da primeira geração de pensadores cristãos, concebeu uma espécie de manual de orientações cotidianas à disposição dos recém-convertidos ao cristianismo.370 Para Clemente, em diálogo

364 Jo 18, 36. 365 Lc 17, 20-21. 366 Rm 14, 17.

367 “Pois todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 14, 11); “Eu vos

digo que este último desceu para casa justificado, o outro não. Pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 18, 14).

368 Regra de Santo Isidoro, cap. III, p. 93. 369

ISIDORO DE SEVILHA, Etimologias, Livro X, 248, p. 837. Com palavras diferentes e em tom de alerta, Isidoro de Sevilha preservou o cerne de seu ideário em outra obra: “Os que abandonam o mundo e, não obstante, praticam sem humildade de coração as virtudes prescritas, estes, como de uma altura, caem mais lastimosamente, já que ao se separarem das virtudes são abatidos com grande desgraça, pior que a que sofreram por causa dos vícios” – SANTO ISIDORO DE SEVILHA, Sentenças, 19, 2.

370 NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da educação na antiguidade cristã. São Paulo: Edusp, 1978, p.

com livros bíblicos, na luta intestina contra as paixões pecadoras, o homem que se consagrava a Deus (Logos) precisava se libertar da vanglória oferecida pelos módicos conhecimentos humanos, obstáculo para expressão da gnosis (conhecimento). Nas palavras do próprio Clemente: “Mas se também pode se pensar que a gnosis da qual se orgulham é uma sabedoria humana, então, escuta a advertência da Escritura: Que o sábio não se glorifique de sua

sabedoria, que o forte não se jacte de sua força;371 o que se glorifica, deve se glorificar no

Senhor.”372

Nas páginas do Eclesiastes, um dos pilares sobre os quais Clemente de Alexandria edificou o que escreveu, a condenação à soberba foi um tópico amiúde citado: “Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se fadiga debaixo do sol? Uma geração vai, uma geração vem, e a terra sempre permanece.”373 Já nas páginas do Eclesiástico, o ensinamento anterior foi complementado: “Numerosas são as pessoas altivas e famosas, mas é aos humildes que ele revela seus segredos.”374 A essência desses ensinamentos: de que vale esta vida, qual o valor do homem que será vorazmente engolido pela terra, se nada do que vemos ou tocamos neste mundo ficará para a eternidade? A sabedoria dos antigos e a que Guiberto buscava não estava apenas nos livros.

À época de Guiberto, por uma carta dirigida a Gautier de Chaumont (†c.1150), Bernardo de Claraval, assim como Clemente e os textos bíblicos acima citados, foi enfático ao dissertar acerca dos que reverenciavam a fama pessoal e as benesses dela advindas: “[...] imagine que agora tudo é atribuído à sua pessoa e que é elevado à glória, que todos lhe chamam de mestre e que a fama de seu nome dilata-se pela terra; o que ficará depois da morte além de uma recordação na terra e nada mais?”375

Pequenas lembranças que as areias do tempo logo se encarregariam de esconder, eis o que aguardava os que cobiçavam a glória por ela mesma. Preocupação de verniz estoico que Sêneca desnudou bem antes de Bernardo de Claraval e do próprio clemente de Alexandria:

Todos aqueles que a fortuna pôs em evidência, que se distinguiram como agentes e partícipes de um poder alheio, somente gozaram de reputação e viram as suas casas

371

“Assim disse Iahweh: Que o sábio não se glorie de sua sabedoria, que o valente não se glorie de sua valentia, que o rico não se glorie de sua riqueza” (Jr 9, 22).

372 “Ora, é por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus,

justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1 Co 1, 30-31); “Quem se gloria, glorie-se no Senhor. Pois não aquele que recomenda a si mesmo é aprovado, mas aquele que Deus recomenda” (2 Co 10, 17-18) – CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O pedagogo, Livro I, 38.2, p. 153 e 155.

373

Ec 1, 3.

374 Eclo 3, 19.

cheias de visitantes enquanto em posição de destaque: assim que desapareceram, rapidamente foram esquecidos. Em contrapartida, o apreço que se dá aos homens de gênio cresce sempre; e não são apenas eles que recebem homenagens, mas tudo quanto está ligado à sua memória.376

Aos que se dedicam ao saber, homenagens perenes; aos soberbos, o esquecimento gradativo. Como a argila trabalhada pelo ceramista, o conhecimento produzido pela tradição filosófica dos antigos era plasmado pelos doutos da Idade Média. Plasmado, mas não alterado em sua essência. Embora os contornos externos fossem diferentes, em pontos específicos, a matéria continuava ali. Os séculos que distanciavam Lúcio Aneu Sêneca e Clemente de Alexandria de Isidoro de Sevilha ou Bernardo de Claraval não tomaram das mãos dos mestres a atenção oferecida aos que se nutriam com sabedoria.

Em Metalogicon, João de Salisbury adicionou novos tons à obra do artista estoico que o inspirou.377 De acordo com João: “Os principais apoios para a inquirição filosófica e prática da virtude são leitura, aprendizagem, meditação e assídua aplicação.”378 Para a memória dos virtuosos ser reverenciada, havia uma condição: associar ainda neste mundo a filosofia e uma conduta voltada para o bem. Porém, na acepção do mestre chartrense, ninguém assumia este estado sem esforços.

Em Sobre a potencialidade da alma, Agostinho, autor também do apresso de João de Salisbury, asseverou que o homem era criatura gerada por Deus e, por isso, trazia em si a perfeição da natureza divina: “Mas, sendo Ele imortal, cria algo imortal e semelhante a Ele. E nós, criados por Deus com espírito imortal, deveríamos poder fazer algo semelhante a nós, isto é, imortal”.379

Porém, por ser criação, o homem seria sempre inferior a Ele. Aos soberbos que postulavam desafiar essa máxima, a infinitude do saber divino os devolvia à reles condição humana. De acordo com Agostinho, inferior e limitada, esta jamais teria condições de se igualar a quem a criou.

Já em A verdadeira religião, o mesmo Agostinho trouxe à tona o imperativo de que nos doutos consubstanciam-se os talentos, porém, eles deveriam ser custodiados: “Os insensatos possuem este talento enrolado num pedaço de lenço ou enterrado na terra. Dito em outros termos, o seu talento encontra-se encoberto ou abafado pelo luxo e o supérfluo, ou entre as concupiscências terrenas.”380 Se a beleza de nada valia alheia à sabedoria (“ser belo

376

LÚCIO ANEU SÊNECA, Cartas a Lucílio, Livro II, carta 21, 6, p. 75-76.

377 McGARRY, Daniel D., op. cit., 1971, p. xxiii.

378 JOÃO DE SALISBURY, Metalogicon, Livro I, cap. 23, p. 64. 379

SANTO AGOSTINHO, Sobre a potencialidade da alma, cap. 2, p. 25.

380 SANTO AGOSTINHO, A verdadeira religião (A tríplice restauração operada pela reflexão, cap. 54,

na condição de ser bom”, como Guiberto de Nogent nos ensinou em outra oportunidade), predicados ínfimos detinham os conhecimentos ou benesses materiais desprovidos de humildade.

Ainda nos fólios de A verdadeira religião, Agostinho dissertou a respeito de uma proposição repisada em quase tudo o que escreveu ao longo da vida e que se tornou uma certeza entre os medievais: a unidade divina perfeita e imperecível. Por pretender retirar-se dessa unidade criadora e andar por rumos próprios, Agostinho acreditava que os humanos soberbos se renderam ao pecado. Quanto mais se distanciavam deste centro gerador do bem e saber, mais se tornavam vaidosos e decaídos: “As diversas belezas das coisas temporais, filtrando-se por meio das sensações carnais, arrancam o homem decaído da unidade de Deus introduzindo-o na multiplicidade de afetos efêmeros.”381

Pela visão antropológica agostiniana, o homem era entendido como uma criatura caminhante cuja vontade bem conduzida o fazia mover-se de volta na direção da matriz que o gerou. Em função desse labor existencial, seus conhecimentos deveriam apoiá-lo. Enfim, nas palavras agostinianas, através da potência desse movimento que se constitui no íntimo de cada um, o homem não deveria se apegar aos instrumentos seculares que lhe eram entregues, mas apenas utilizá-los para alcançar seu objetivo maior: a sabedoria que o levaria até Deus.382 Pelas orientações agostinianas, a ética se imiscuía nos conhecimentos.

*

Entre os séculos XI e XII, período no qual o movimento monástico cristão conheceu seu momento áureo,383 a procura pela humildade estendeu-se como uma linha de força nos textos de autores diversos, como dos citados Hugo de São Vítor, Bernardo de Claraval e João de Salisbury. A seu modo, cada um expôs suas ideias, mas sem perder de vista a busca pela modéstia, elemento que, concomitante à obediência e disciplina, constituía a tríade imprescindível à existência verdadeiramente apostólica imaginada pelos monges (vita vere

apostolica).384

Nos livros que compõem Didascálicon, Hugo de São Vítor enfatizou o que considerava ser a boa conduta de um estudante consagrado ao estudo das Sete Artes Liberais. Segundo

381 SANTO AGOSTINHO, A verdadeira religião (Bondade da criação e origem do mal), cap. 21, 41, p. 64. 382 JORDÃO, Eduardo Antônio. Agostinho: educação e fé na Cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, 2009, p.

53.

383 COLOMBÁS, García M., op. cit., 1993, p. 11. 384 BOLTON, Brenda, op. cit., 1983, p. 25.

Hugo, ela se alicerçava em valores cristãos, como perseverança e boa vontade. Do contrário, eram sementes lançadas em terra infértil. Influente mestre do século XII, Hugo destacou o mérito da relação harmoniosa entre ética e sabedoria, e a ela acrescentou serenidade e, nomeadamente, humildade:

Igualmente, lhe convém que, quando começar a conhecer alguma coisa, não despreze os outros. Este vício da vaidade ocorre a alguns, porque olham com demasiada diligência o seu próprio conhecimento e, parecendo-lhes de ter-se tornado alguma coisa, pensam que os outros não são como eles nem poderiam nunca sê-lo, sem conhecê-los.

O bom estudioso deve ser humilde e manso, afastado totalmente das preocupações vãs e dos ilícitos das volúpias, diligente e constante, para que aprenda com prazer de todos, nunca presuma de sua ciência, fuja dos autores de doutrinas perversas como do veneno, aprenda a refletir longamente sobre alguma coisa antes de julgá-la, não queira aparecer douto, mas sê-lo, ame os ensinamentos aprendidos dos sábios e procure tê-los sempre diante dos olhos como espelho do seu próprio rosto.385

Aos que estavam em fase de formação acadêmica e caráter, exercitar o bem e desviar- se do mal eram referências essenciais. Mas, acima de tudo, o mestre de São Vítor incutia nos leitores do Didascálicon o anseio por querer saber pela virtude que isso representava em si, não pela possibilidade de glória particular. Tais premissas se alicerçavam nas práticas pedagógicas de então, que, como sabemos, não separavam a educação letrada da concepção ética de alguém.

Ícone do movimento que ambicionava uma profunda reforma no monaquismo nos primeiros decênios do século XII a partir das premissas beneditinas e modelos apostólicos, o abade Bernardo de Claraval elevou ao extremo essa relação entre a procura por sabedoria e uma vida baseada em retidão moral.386 No Tratado sobre os graus da humildade e da soberba (c.1125), Bernardo escreveu sobre a humildade e seu oposto, a soberba. Esta, um pecado que destruía a alma do cristão, que se tornava presunçoso e dono de uma curiosidade vã e infecunda.

Os doze graus de humildade

XII. Mostrar sempre humildade no coração e no corpo, com os olhos cravados na terra. XI. Expressar com parcimônia e juízo sem levantar a voz. X. Não ser de riso fácil. IX. Esperar ser perguntado para falar. VIII. Não sair da regra comum do mosteiro. VII. Reconhecer-se como o mais depreciável de todos. VI. Julgar-se indigno e inútil para todos. V. Confessar seus pecados. IV. Abraçar por obediência e pacientemente as coisas ásperas e duras. III. Submeter-se aos superiores com toda a

385 HUGO DE SÃO VÍTOR, Didascálicon, Livro III, cap. 13, p. 159. 386 DOYLE, Matthew, op. cit., 2005.

obediência. II. Não amar a própria vontade. I. Abster-se por temor a Deus e em todo momento de qualquer pecado.

Os graus da soberba em ordem descendente

I. A curiosidade, que lança os olhos e demais sentidos a coisas que não interessam. II. A ligeireza de espírito, que se manifesta na indiscrição das palavras, ora tristes, ora alegres. III. A alegria tonta, que estala em riso ligeiro. IV. A jactância, que se faz patente no muito falar. V. A singularidade, que em tudo que é seu busca sua própria glória. VI. A arrogância, pela qual alguém se crê mais santo que os demais. VII. A presunção que se intromete em tudo. VIII. A escusa dos pecados. IX. A confissão fingida, que se descobre quando a alguém coisas ásperas e duras são determinadas. X. A rebelião contra os mestres e os irmãos. XI. A liberdade de pecar. XII. O costume de pecar.387

Convicto, Bernardo de Claraval dispôs “em movimento” uma a uma as sentenças de da narrativa que criou: ao subir e descer, elas alcançavam as profundezas da memória de quem as lia. Como outros daquele tempo fizeram, Bernardo bebeu nas fontes dos antigos e, sobretudo, dos Padres da Igreja. Através delas, nutriu-se intelectualmente. A primeira sentença do tratado bernardino acima transcrita exemplifica essa absorção. Ao dissertar sobre a “humildade”, Bernardo possivelmente tinha em mente um fragmento das Etimologias de Isidoro de Sevilha: “Humilis (humilde), como se disséssemos inclinado para a terra (humus).”388

Figura de proa entre os principais idealizadores da retomada da existência beneditina,389 Bernardo, em um dos primeiros escritos de sua lavra, entregou-se ao diálogo com A Regra de São Bento (que também dividia em doze os graus da humildade) e tinha o dinamismo simbólico da escala de Jacó como inspiração. À objetividade de Bento de Núrsia, o cisterciense adicionou considerações que se referiam à austeridade, pobreza e simplicidade, trilogia que se consolidava sob o verniz da humildade.390

387

SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, Tratado sobre os graus da humildade e da soberba, p. 169 e 171.

388 ISIDORO DE SEVILHA, Etimologias, Livro X, 115, p. 813.

389 DAVY, Marie-Madeleine. Bernardo de Claraval: monge de Cister e mentor dos Cavaleiros Templários.

Lisboa: Ésquilo, 2005, p. 19-23.

390 TORRE, Juan María de La. Introducion. In: Obras completas de San Bernardo: introducción general y

(Douai - BM - ms. 0372, t. I, f. 100 – século XII)

Iluminura disposta em um manuscrito do Tratado sobre os graus da humildade e da soberbade São Bernardo de Claraval guardado na Biblioteca Municipal de Douai e que Juan Maria de La Torre assim descreveu: “O diabo levanta um machado; agarra pelo cabelo o último anjo que desce à direita. No alto da escada, Cristo está sentado em atitude de bênção e de dar sua mão ao anjo que está chegando ao alto à esquerda. O Senhor Jesus se encontra acompanhado de um monge com cogula negra, com um livro e uma pluma nas mãos, São Bento provavelmente. À sua direita, está um abade, o próprio Bernardo, com cogula branca, com um livro a sua direita e um báculo à esquerda. O simbolismo e a escada tradicional na vida monástica mantêm seu selo peculiar na escola beneditina-

cisterciense.”391

Artesão da eloquência monástica, Bernardo escreveu detidamente sobre a humildade em numerosos sermões e cartas que produziu em mais de três décadas dedicadas ao monaquismo. E ele também se voltou para a soberba na intenção de melhor expressar como definia a primeira. Nesse minucioso e intricado jogo de espelhos, Bernardo retoricamente se valia da desordem (“soberba”) para explicar com mais textura o quanto a preservação da

ordem (“humildade”) era desejável.392

Para entender esta pequena passagem produzida por Bernardo de Claraval, foram tomadas a contrapelo o sentido das sentenças que produziu.393 Assim, compreendemos o que ele definia como a condição ideal de um cristão à procura do verdadeiro saber, expressa em uma vida de respeito, obediência e, acima de tudo, humildade. Ademais, as críticas incisivas de moralistas como Bernardo muito nos informam sobre como os membros da civilização

391

TORRE, Juan María de La, op. cit., 1993, p. 165.

392 BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília: UnB, 1982.

medieval agiam cotidianamente: pecadores recorrentes, deixavam se levar por frivolidades, ainda que alertados pela Igreja.394

Já na segunda metade do século XII, João de Salisbury, ao se referir ao mérito do profundo conhecimento de Gramática em Metalogicon e maneiras pelas quais obtê-lo, voltou a ter a humildade sobre sua mesa de trabalho:

Para promover a aquisição da eloquência e a obtenção de conhecimento, nada é melhor que tais conferências,395 que também têm uma salutar influência na conduta