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A MÃO QUE AÇOITA É A DO MESTRE QUE AMA E ENSINA OU QUANDO O PRIMEIRO A APRENDER É O CORPO:

II. 3. O conselho do tempo e o toque do báculo da prudência

Nos capítulos 5 e 6 do primeiro livro de Monodiae, Guiberto de Nogent narrou uma história semelhante à de São Romualdo, comentada nas páginas deste capítulo. Como este santo, Guiberto, ainda criança, era castigado pelo mestre (grammaticus) ao qual sua mãe lhe confiou – desde tempos antigos, ao gramático era entregue não somente a responsabilidade de cultivar no aluno o apreço pela leitura, mas também poli-lo moralmente.319 Este homem introduziu Guiberto no conhecimento das primeiras letras. Entre uma lição e outra, o professor punia seu discípulo com golpes que o feriam. Tal situação trouxe dúvidas para a mãe de Guiberto.

Como normalmente fazia, ela começou a me perguntar se eu tinha sido espancado naquele dia. Então, para não parecer que queria denunciar meu mestre, não fiz afirmações diretas. Sem pedir permissão, minha mãe tirou minha vestimenta de baixo [...]. Ela viu que meus bracinhos estavam negros e azuis, e que a pele em minhas costas estava inchada, devido às pancadas que recebi. Minha mãe suspirou profundamente quando viu como cruelmente eu fui tratado em tenra idade. Ela estava perturbada e totalmente agitada, seus olhos caíram em lágrimas de tristeza quando disse: “Se esse é o caminho que toma, nunca se tornará um clérigo: não terá castigos para aprender latim!” [...] recordo que ela já tinha me prometido que, quando eu tivesse idade, iria me prover com armas e equipamentos, caso quisesse me tornar um cavaleiro.320

Mesmo considerado normal naquele tempo, o excesso punitivo daquele mestre assustou a mãe de Guiberto.321 Preocupada com o bem-estar do filho, ela lhe ofereceu a possibilidade de torná-lo cavaleiro, caso tratamento tão duro lhe fosse imposto. Entretanto, o rapazinho recusou a oferta e preferiu permanecer sob os cuidados daquele homem. Perguntamos: por que Guiberto tomou aquela decisão? Uma resposta para essa intrincada trama torna-se mais difícil de entender quando tomamos outro depoimento de Guiberto sobre o braço pesado daquele mestre:

Claramente, não merecia as saraivadas que ele me deu, pois se tivesse sido um docente perito, como tinha se gabado, eu seria perfeitamente capaz, apesar de ser uma criança, de entender o que ele dizia, caso tivesse dito corretamente. Mas, dificilmente, ele expressava uma frase completa, pois tentava mostrar algo que não estava claro em sua mente.322

319 GILSON, Étienne, op. cit., 2007, p. 316.

320 GUIBERTO DE NOGENT, Monodiae, Livro I, cap. 6, p. 39-41. 321

GUIBERT OF NOGENT. A monk´s confession: the memoirs of Guibert of Nogent. Pennsylvania: Pennsylvania University Press, 1996, p. 41, nota 41 do tradutor Paul Archambault.

Duas passagens díspares, uma contradição inicial aparente. O que explicaria mudanças de opinião tão bruscas em escritos relacionados aos mesmos episódios, uma vez que Guiberto foi da crítica ao elogio sem escalas? Em uma abordagem investigativa preliminar, consideramos o fato de Guiberto em idade adulta escrever sobre acontecimentos de sua infância. Presumivelmente, estava expressa em um único texto a interposição entre passado e presente. Se a dor juvenil não foi esquecida, a moderação da maturidade prevaleceu.

Aos poucos, os sentimentos de Guiberto pelo antigo mestre receberam tons definitivos. Mais velho, o abade passou a vê-lo de maneira diferente e entendeu a realidade por trás das histórias que viveu.

Por mais severo que fosse, meu preceptor evidenciou para mim que de todos os modos me amava não menos do que amava a si mesmo. Ele me vigiava com grande solicitude. Cuidava de minha saúde com muita atenção, e temia as maldosas intenções de algumas pessoas que me observavam. Ele me avivou urgentemente a me guardar contra a corrupção de algumas pessoas que tinham os seus olhos em mim. Com sua autoridade docente, advertiu minha mãe por me vestir tão elegantemente. Em uma palavra: ele parecia mais um pai que um pedagogo, não o tutor de meu corpo, mas o servidor de minha alma.323

Para o amadurecido Guiberto, a severidade de seu mestre tinha motivo: era expressão de amor e preocupação. Sem traumas, a experiência parece ter lhe permitido tal visão – não é demais relembrar: Guiberto escreveu Monodiae já idoso. Como abade e responsável pela formação de jovens como um dia foi, Guiberto compreendia que rigor e austeridade eram dolorosos, mas mostravam-se como vias seguras para uma educação correta. Afinal, o bom pai preventivamente castigava os filhos com ásperas varas. Certamente, ao narrar o que passou na juventude, Guiberto pensava em situações similares que poderiam ocorrer na comunidade que conduzia.

Em Quo ordine sermo fieri debeat, Guiberto de Nogent mostrou-se defensor dos castigos na educação dos mais jovens. Contradição que persiste? Acreditamos que não. Na verdade, a partir de outro testemunho documental, reafirmamos que Guiberto promoveu uma visão madura do passado. Anos mais velho e sábio, ele entendeu o comportamento de seu antigo professor, apenas reprovou os excessos cometidos. Assim, para um Guiberto experimentado, quando usados adequadamente, os castigos eram a linguagem inicialmente entendida pelos inexperientes e pouco inclinados aos rigores do claustro.

Ao defender a manutenção das punições, Guiberto não exibiu maiores insatisfações pelo que ocorreu nos primeiros anos de sua existência. Implicitamente, ele entendeu que as

punições tinham razão de ser, desde que utilizadas na medida conveniente: “Através dessa repreensão, adquirimos mais ciência e discrição, tanto que sabemos que glória eterna é subsequente ao sofrimento temporal e que flagelo momentâneo é simplesmente a preparação para a felicidade permanente.”324

Essa imagem gradativamente ponderada do próprio passado também nos faz questionar a ausência na narrativa de atos de rebeldia por parte do jovem Guiberto diante de seu professor. Para R. I. Moore,325 essa é uma das divergências que separam Guiberto de Agostinho. Enquanto a rebeldia juvenil do último era flagrante e bem descrita, a do primeiro permaneceu latente. Nenhuma passagem de Monodiae nos faz vislumbrar ações intempestivas da parte do futuro abade de Nogent contra seu tutor. Nem mesmo é factível afirmar que aquele homem tomou conhecimento do que seu pequeno aluno confabulava na intimidade.

Leitor de livros ou extratos de ícones do pensamento clássico,326 uma vez mais, Guiberto sugeriu com as próprias palavras aproximação com os ensinamentos de Quintiliano. Em Instituições oratórias, este escritor e retórico do latim pôs-se à mesa e escreveu a respeito da Eloquência – a arte de bem falar. Para ele, quem se dedicava à oratória tinha obrigação de trazer em si o bom caráter e uma conduta íntegra. Mas era pela experiência do tempo que estas passagens se abriam.

“Escolha, pois, o Mestre inteligente de tudo isso o melhor, e ensine por ora só o que escolher, sem se demorar em refutar doutrinas contrárias.” Porque os principiantes vão por onde os levam. Com os estudos irá também crescendo a erudição. Ao princípio, porém, não conheçam outro caminho fora daquele, em que os meteram. A

experiência depois lhe ensinará, que ele é também o melhor.327

De acordo com o supracitado Auguste Mollard,328 as Instituições oratórias de Quintiliano eram leitura constante ao alcance das mãos de Guiberto. Com este sábio das palavras e do discurso em mente, Guiberto entendeu que com o tempo e a experiência, o saber era nutrido e aflorava. Além disso, os nervos se acalmavam e a alma descobria a direção correta da sapiência. Por fim, guiado por Quintiliano, Guiberto sorveu o quão era forçoso assimilar as orientações de um mestre que não deixava o discípulo perder-se ao sabor dos ventos mundanos que sopravam nos ouvidos humanos.

324 GUIBERTO DE NOGENT, Quo ordine sermo fieri debeat, 24A, p. 50. 325 Op. cit., 1985, p. 112-113.

326

GARAND, Monique-Cécile, op. cit., 1995, p. 15.

327 QUINTILIANO, Instituições oratórias, Livro III – Da elocução, art. I, § I, p. 6 (Grifos nossos). 328 Op. cit., 1934, p. 81-87.

*

Depois dessas primeiras constatações de teor filosófico, também entendemos as palavras de Guiberto de Nogent como uma implícita afirmação acerca da importância da existência de um pacto entre mestre e discípulo. Um pacto tácito cujo objetivo era educar o homem como um todo, tanto em conhecimento, quanto em conduta.329 Sabemos que, ao narrar essas histórias de juventude, Guiberto já era um abade em idade avançada (cinquenta ou sessenta anos), e, como tal, lidava com as obrigações de ensinar e zelar pelos membros de sua comunidade. Por sua vez, estes deveriam parar, ouvir e confiar no pastor que os conduzia. Assim, ao escrever um pouco de si, Guiberto pedia-lhes perseverança na procura pelo conhecimento. Como bom pai (abbas), ele deixava claro que o trajeto a ser vencido era longo e extenuante, mas aprazível quando visto com alma confiante.

A essa linha interpretativa de verniz filosófico, somamos outra observação que, uma vez mais, pondera a presença de duas escritas imbricadas no texto de Guiberto: a do jovem estudante e a do velho abade. Gradualmente, a segunda arrogou o primeiro plano e se assenhoreou do restante da história. Dos fólios artesanais do abade, novamente manava a prescrição monástica basilar dos beneditinos e sinal distintivo da santidade da Idade Média Central:330 a humildade.331 Ainda que diversos guias filosóficos conduzissem a pluma de Guiberto, o anseio por se mostrar humilde não lhe escapou. Com a intenção de ser modesto, Guiberto remitiu os equívocos de seu mestre e não alimentou maiores rancores por ele.

Ao ser aceito no mosteiro de Saint-Germer de Fly (c.1067), Guiberto de Nogent passou a ter aulas regulares com Anselmo de Bec. Anselmo era admirado pelo tratamento afável e maternal que oferecia aos discípulos.332 Ao dialogar com um abade de um certo mosteiro, Anselmo asseverou que punições abusivas e sem motivo surtiam efeito contrário, e tornavam os alunos arredios e temerosos.

329 MÜNSTER-SWENDSEN, Mia, op. cit., 2006, p. 317. 330

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A escravidão desejada: santidade e escatologia na Legenda Áurea. In: ______. Os três dedos de Adão: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 2010, p. 160.

331 “Irmãos, a Escritura divina nos clama dizendo: Todo aquele que se exalta será humilhado e todo aquele

que se humilha será exaltado (Lc 14, 11; 18, 14). Indica-nos isso que toda elevação é um gênero de soberba, da qual o profeta mostra precaver-se quando diz: Senhor, o meu coração não se exaltou, nem foram altivos meus olhos; não andei nas grandezas, nem em maravilhas acima de mim (Sl 130, 1)” – A

Regra de São Bento, cap. 7, 1-3, p. 73.

332

COLOMBÁS, García M., op. cit., 1991, p. 568-569; VAUGHN, Sally N. Anselm of Bec: the pattern of his teaching. In: RUBENSTEIN, Jay & ______ (eds.). Teaching and learning in Northern Europe –

Ao lhes consagrar a Deus, se foram plantados no jardim da Igreja para que cresçam e frutifiquem, e vocês, pelo temor, pelas ameaças, pelos golpes, deixam-nos tão oprimidos, que não podem ter nenhuma liberdade. Tratados dessa maneira, acumulam, acariciam e alimentam em seu seio maus pensamentos, que se entrelaçam como espinhos, o que podia servir não serve mais que para descartar com torpeza o que poderia servir para sua correção. [...] se querem que seus filhos adquiram bons costumes, devem amenizar as correções corporais com uma bondade paternal, com uma assistência plena de suavidade. [...] assim como o corpo exige uma alimentação distinta, segundo se está débil ou vigoroso, de igual modo a alma, se é débil ou forte, pede um alimento distinto.

Já viu um artesão que se contenta em bater uma lâmina de ouro ou prata para fazer uma bela imagem? Não creio. O que faz depois? Para dar forma conveniente ao metal, o oprime e golpeia docemente com algum instrumento, depois lhe pega com as mais delicadas pinças e lhe modela com ainda mais suavidade. Se desejam que seus filhos adquiram bons costumes, temperem as correções corporais com bondade paternal, com assistência cheia de suavidade.333

Como um mestre conhecedor da função que lhe cabia, Anselmo instigava por metáforas. Com eloquência, ele convidava ouvintes e leitores ao raciocínio e à reflexão. Sem entregar questões prontas, ansiava que todos discernissem com sapiência. Eternizados por Eadmero de Canterbury (c.1064-c.1124),334 os ensinamentos deste santo comprovam que os mestres medievais, longe de pregar a violência como recurso inquestionável, perguntavam-se se esse era o melhor ou único caminho a ser tomado quando o assunto era educar.335

De acordo com Mia Münster-Swendsen,336 a palavra-chave para se entender a posição de Anselmo de Bec é “discrição” (discretio). Ele não renunciou aos castigos, mas pediu sensatez para punir corretamente, sem humilhar ou causar efeitos colaterais no infrator. Lúdico e sutilmente lírico, Anselmo, pela pena do discípulo Eadmero, empregou metáforas para ser compreendido. Com a habilidade de um ourives, ou do músico vigilante às modulações das cordas instrumento, o “mestre-artesão” formava os estudantes que lhe foram confiados.

333 EADMERO DE CANTERBURY, Vida de Santo Anselmo, cap. IV, 30-31, p. 22-23. 334 SOUTHERN, Richard W., op. cit., 1966 (Parte II).

335

Na segunda metade do século VI, o papa Gregório Magno (c.540-604), ícone da patrística latina, pregava o equilíbrio entre amor (ternura) e temor (severidade), alegoricamente representados pelo maná e o bastão de Aarão, ao se definir o tratamento e as punições dadas a um discípulo: “[...] é necessário

misturar a ternura e a severidade, usar de uma e de outra uma dose certa, a fim de que os fiéis não sejam exasperados por uma exagerada severidade, nem enfraquecidos por uma excessiva bondade. Tudo isso, como recorda Paulo, é bem simbolizado pela arca da Tenda, na qual, com as

tábuas da Lei, são conservados o bastão de Aarão e o maná. Por isso, disse Davi: O teu bastão e o teu cajado, eles são o meu conforto. O bastão golpeia, o cajado serve de apoio. Se, portanto, há o bastão da severidade que golpeia, que haja também o conforto do cajado que serve de apoio. E assim, que haja o amor, mas sem enfraquecer, que haja o vigor, mas sem exasperar; o zelo, sem excessiva severidade, a bondade, sem indulgência desmedida. De modo que, mesclando-se justiça e clemência na arte de governar, o pastor poderá, às vezes, reconfortar o coração de seus fiéis, fazendo-se temer, mas seja terno para com eles, e com esta ternura, neles suscite o respeito que o temor inspira” – GREGÓRIO MAGNO, Regra pastoral, Segunda Parte, cap. 6, 17, p. 82-83 (Grifos nossos).

Ao escrever sobre a vida de Anselmo, Eadmero de Canterbury também trouxe à tona a postura pedagógica de um homem que se destacou em seu tempo por sua preocupação com a busca pelo saber e boa gênese discente.337 Na acepção de Eadmero, Anselmo acreditava que punições eram necessárias, mas o excesso o incomodava, pois deixaria os jovens avessos aos estudos. Com efeito, para Anselmo, o estudante precisava se sentir amado.

Na visão de Sally Vaughn,338 Anselmo imprimiu em seus ensinamentos palavras inspiradas nas Instituições oratórias de Marco Fábio Quintiliano. Se os indícios apontados por Vaughn estiverem corretos, fica reforçado um de nossos argumentos interpretativos expostos ainda na Introdução e nas páginas anteriores deste capítulo: a possibilidade de Guiberto de Nogent ter acessado Quintiliano indiretamente, através das conversas com Anselmo de Bec.

Pelo texto de Eadmero e a própria preocupação demonstrada por Guiberto, percebe-se novamente a postura “maternal” comum em ambiente monástico. Dado o suposto “tom erótico” empregado por alguns mestres em seus textos, psico-historiadores interpretaram essa atitude amorosa entre homens como affaire sexual. Porém, como destacamos, a essência das narrativas era outra: tratava-se de uma forma sublime de se expressar uma amizade superior, ou o meio de se externar sentimentos de dor e insatisfação quando uma relação de origem fraternal era rompida. Ademais, cultivar a amizade era uma estratégia para a resolução de conflitos e manutenção da paz.339

Ao cotejar as informações anteriores com algumas cartas da lavra de Bernardo de Claraval, descobrimos que esse amor materno dos abades pelas ovelhas desgarradas ou não de seus rebanhos era um tópos nas prédicas monásticas dos séculos XI e XII.340 Na Epístola 1 que escreveu a seu sobrinho Roberto – jovem que deixou uma das casas de Cister para se enclausurar em Cluny –, Bernardo fez uma espécie de mea-culpa sobre a dureza que impôs a alguém de pouca idade.

337 COLOMBÁS, García M., op. cit., 1991, p. 539-599. 338 VAUGHN, Sally N., op. cit., 2006, p. 101-103.

339 MÜNSTER-SWENDESEN, Mia, op. cit., 2006, p. 326-328. 340

BYNUM, Caroline Walker, op. cit., 1982, p. 113-125. Em carta destinada ao Papa Eugênio III (1145- 1153), Bernardo de Claraval descreveu em tons maternais sua angústia ao ver a condição de certo Rualeno, nomeado abade de São Atanásio: “Estou convencido de que nosso Rualeno não está tranquilo no posto no qual foi colocado, e creio que nunca estará. Por isso, é preciso tomar um remédio judicioso para ele e para mim. Confesso que fico abrasado ao ver tudo que está sofrendo. Não nos afastemos dele: somos de uma só alma, ainda que eu seja a mãe e ele o filho; o nome e autoridade de pai eu cedi a vós. Somente fiquei com o amor que é intransferível, e isso é o que me atormenta. A mãe não pode se esquecer do filho em suas entranhas. E quem disse que isso já se passou? Ainda o sinto. Meu peito

angustiado e a dor incessante que sinto por ele declaram que sou sua mãe” – BERNARDO DE

É certo que a culpa de sua partida foi minha. Fui muito austero com um delicado adolescente, tratei com dureza desumana a um jovem. De fato, essa era a causa de teus murmúrios contra mim, que eu recordo, quando ainda vivia conosco. E por essa razão, segundo soube, não cessas de desprestigiar-me. Não te culpo. Eu poderia desculpar-me e explicar-te que era necessário coagir as paixões de tua adolescência lasciva, e conduzir a difícil idade desde seu começo com uma disciplina dura e áspera, como diz a Escritura: “Dá a vara a teu filho que o livrará da morte”, e em outro lugar, “O Senhor castiga aos que ama e açoita os filhos que reconhece como seus”, e este outro, “São preferíveis os golpes do amigo que os beijos do inimigo.”341

Como abade, Bernardo de Claraval tratou com ternura seu parente, e, com calculada argumentação, quis ser justo. Roberto falhou por quebrar seus antigos votos, mas esse equívoco, em parte, era fruto do tratamento rigoroso a ele imposto e da instabilidade de uma alma jovem e claudicante. Em consonância com a pedagogia medieval, que afirmava ser necessário considerar a idade dos discentes, Bernardo compreendeu sua falha, por isso sofria. Porém, ele destacou as boas intenções que trazia em mente, e ansiava mostrar ao antigo pupilo que uma educação disciplinada e aplicada desde cedo era o meio para se chegar à formação moral e intelectual de uma pessoa.

Castigar os mais novos com prudência e compreensão, nada de exageros destemperados. Eis as orientações dadas aos monges por Bernardo de Claraval e Anselmo pela pena de Eadmero de Canterbury. Por ainda não entenderem a severidade espiritual da excomunhão, os neófitos precisavam sentir na carne o peso das irresponsabilidades e desacertos. Porém, os que usavam pancadas sem critério também eram repreendidos, era o que A Regra de São Bento recomendava.

Seja vedada no mosteiro toda ocasião de presunção, e determinamos que a ninguém seja lícito excomungar ou bater em qualquer dos seus irmãos, a não ser aquele a quem foi dado o poder pelo Abade. Que os transgressores sejam repreendidos diante de todos para que os demais tenham medo (1 Tm 5, 20). A diligência da disciplina e guarda das crianças até quinze anos de idade caiba a todos, mas, também isso, com toda medida e inteligência. Quem de qualquer modo o presume, sem ordem do Abade, contra os que já são mais velhos, ou bater sem discrição mesmo nas crianças, seja submetido à disciplina regular, porque está escrito: Não faças a outrem o que não queres que te façam (Tb 4, 16).342

A regra beneditina definia que os estudantes eram protegidos da violência desmedida. Contudo, uma leitura a contrapelo acerca do que o texto diz nos faz entrever que, por mais que as oscilações fossem combatidas, havia aqueles que extrapolavam. Às vezes, dominados pela raiva ou outro sentimento descontrolado, exageravam.343 Essa visão histórica equilibrada

341 BERNARDO DE CLARAVAL, Epístola 1, 2, p. 43. 342

A Regra de São Bento, cap. 70, 1-7, p. 333 e 335.

343 Exageros igualmente passíveis de condenação e correção, segundo Gregório Magno em escrito

obtida pela comparação entre diferentes fontes primárias nos aproxima de uma Idade Média