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O EXEMPLO MATERNO DA SÁBIA EXISTÊNCIA CRISTÃ

I. 1. Uma mãe, um filho, tantas histórias

“Minha mãe”, era desta maneira simples e íntima que em Monodiae Guiberto se referiu àquela que lhe trouxe ao mundo.22 Surpreendentemente, ele não disse o nome dessa mulher, nem explicou o porquê de não dizê-lo. Mesmo com explícita admiração por parte de seu filho, ela permaneceu anônima – quiçá para sempre. Consideramos essa questão secundária, pois os detalhes da narrativa são ricos diante desse lapso. Assim, nosso basilar interesse é entender o que Guiberto aprendeu e as intenções por trás da forma como a descreveu.

Ao lado das crônicas sobre a revolta na Comuna de Laon, as palavras de Guiberto acerca de sua mãe ganharam a atenção de uma gama considerável de pesquisadores, mormente no último quartel do século passado. Todavia, percebemos que foram bem poucos os que se mostraram capazes de entender essa história a partir das perspectivas próprias de quem a viveu e escreveu.

Os anos setenta do século XX marcaram uma verdadeira virada nos estudos sobre Guiberto de Nogent e Monodiae. A publicação de John Benton,23 além de apresentar uma nova tradução de Monodiae para o inglês, trouxe uma apresentação que analisou Guiberto e seu texto pelo viés psicanalítico.24 Na mesma época, Jonathan Kantor publicou artigo que seguiu Benton.25 Como este, Kantor, que considerava Monodiae uma “fonte psicológica”,

idéias falsas, arraigadas, e também o excesso de paixão” – DUBY, Georges. A História continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar / UFRJ, 1993, p. 151-152.

21 KLAPISCH-ZUBER, Christiane. In: DUBY, Georges & PERROT, Michelle. História das mulheres: a

Idade Média. Porto: Afrontamento, s/d, p. 16.

22

PARTNER, Nancy. The family romance of Guibert of Nogent: his history / her history. In: PARSONS, John Carmi & WHEELER, Bonnie (eds.). Medieval mothering. New York / London: Garland, 1996, p. 360.

23

BENTON, John. Self and society in medieval France. Toronto: University of Toronto, 1984.

24

Outros personagens medievais também foram estudados de maneira semelhante, como Francisco de Assis. Entre os séculos XIX e XX, a crítica científica impôs rótulos modernos aos estigmas deste santo, então descritos como demonstrações de histeria – VAUCHEZ, André. François d’Assisse: entre histoire et mémeoire. Paris: Fayard, 2009, p. 334.

25 KANTOR, Jonathan. A psychological source: “the memoirs” of abbot Guibert of Nogent. Journal of

sustentava que a casta e devota mãe de Guiberto foi uma das responsáveis pelos supostos temores sexuais e possessivos demonstrados por seu filho desde os primeiros anos de vida.

Quase duas décadas depois, Nancy Partner26 reforçou as ideias psicanalíticas de John Benton e Jonathan Kantor. Na tentativa de compreender o que Guiberto escreveu sobre a longa relação que manteve com esta mulher, Partner asseverou enxergar em passagens de

Monodiae a “vontade egocêntrica” do abade em ter a própria mãe só para si. Um vivo

“sentimento de dominação” demonstrado desde a mais tenra infância e que ele não resolveu nem mesmo na maturidade.

Com Jooste Baneke,27 as temáticas acerca da sexualidade de Guiberto novamente foram a tônica. Na ótica de Baneke, repressão e agressão são sentimentos implícitos em

Monodiae. Além disso, haveria nas considerações deste personagem um desejo explícito de

acusar e criticar outras pessoas no intuito de lutar contra um sentimento particular de inferioridade.

Assim como Nancy Partner, Jooste Baneke usou conceitos oriundos do universo psicanalítico como “Complexo de Édipo”28 para entender a afetividade de Guiberto. Por sua vez, ao analisar o contexto histórico no qual a linhagem dos senhores do castelo de Coucy cresceu, Barbara Tuchman29 utilizou adjetivos como “rancoroso” e “recalcado” para descrever Guiberto. Embora sucinta, Tuchman, como seus antecessores, mostrou-se propensa a enxergar Guiberto como uma pessoa perturbada.

Por fim, em estudo a respeito da emergência de textos entendidos como autobiográficos no início do século XII, Chris Ferguson30 comparou Guiberto de Nogent e Pedro Abelardo. Ferguson igualmente defendeu a força da mãe de Guiberto na construção da personalidade de seu filho. Em função dos temores dela, ele cultivou sentimentos de desespero, desconfiança e medo de morrer. Destarte, para Ferguson, o ato de escrever foi para Guiberto uma espécie de psicoterapia.

26

PARTNER, Nancy, op. cit., 1996, p. 359-379

27 BANEKE, Jooste. Transference figures in medieval literature: the madonna of Guibert de Nogent. In:

HILLENAAR, Henk & SCHÖNAU, Walter (eds.). Fathers and mothers in literature. Rodopi: Amsterdam, 1994, p. 89-102.

28 “Processo pelo qual, segundo a teoria psicanalítica freudiana, a criança normal do sexo masculino se

sente sexualmente atraída pela mãe e, por isso, tem ciúmes do pai e deseja secretamente matá-lo. O sentimento de culpa natural que isso provoca origina o desenvolvimento do superego, ou seja, da consciência limitadora. À consciência feminina atribui-se uma origem simétrica, por vezes denominada complexo de Electra” – BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 64-65.

29 TUCHMAN, Barbara W. Um espelho distante: o terrível século XIV. 3. ed. Rio de Janeiro: José

Olympio, 1999, p. 9-10.

30

FERGUSON, Chris D. Autobiography as terapy: Guibert of Nogent, Peter Abelard, and the making of medieval autobiography. The Journal of Medieval and Renaissance Studies, v. 13, n. 2, p. 187-212, 1983.

No Brasil, o médico psiquiatra David Levisky trilhou as rotas abertas por John Benton, Jonathan Kantor, Nancy Partner e Chris Ferguson, e também psicologizou Guiberto. Em tese de doutorado defendida em 2004 no programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo (USP),31 Levisky teceu outras interpretações psicanalíticas sobre Guiberto e

Monodiae. Nas considerações que ofereceu, esse pesquisador partiu da premissa de que

existiu sim uma condição infantil na cultura medieval, o que contraria a antiga afirmação de Philippe Áries32 que nos anos sessenta do século passado assegurou que as crianças medievais eram tratadas como adultos em miniatura, pois não havia espaço para elas naquela sociedade.

Ao se ancorar nas teorias psicanalíticas, essa corrente de pesquisadores entendeu e “atualizou” Guiberto de Nogent como se ele fosse um homem com uma sexualidade reprimida pela religião e, desde a infância, por sua mãe. Para isso, a referida corrente tomou tópicos como provas documentais: (1) as críticas proferidas pelo abade contra o comportamento sexual de nobres anticelibatários, e (2) os louvores que produziu acerca da pureza e castidade maternas.

Não obstante, essa corrente ainda elaborou conclusões atemporais e superficiais, que negligenciavam (ou mesmo desconheciam) as especificidades históricas e culturais dos sólidos pilares morais e espirituais do cristianismo medieval. Com efeito, essas abordagens pouco exploraram um importante fato: as religiões tradicionais – e, no caso, o cristianismo – têm uma forma muito diferente do mundo laico e pós-moderno de pensarem o corpo e o sexo.33

Observar Guiberto de Nogent e a relação que manteve com sua mãe sob este único prisma obscurece a singularidade histórica e as bases filosóficas de suas ideias, pois praticamente limita toda a gênese de seu pensamento à sua infância e adolescência e à sua sexualidade. Além disso, esses pesquisadores não consideraram o fato de que esse abade escreveu Monodiae quando tinha cerca de sessenta anos, ou seja, no transcurso da narrativa, promoveu uma visão retrospectiva do passado, o que nos faz imaginar que ele, à maneira

31 LEVISKY, David Léo. Um monge no divã: A trajetória de um adolescer na Idade Média central. São

Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.

32 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, s/d, p. 17-18. 33

“As teorias de Freud não são científicas no sentido de serem universais, independentes do seu meio social e étnico, como o são as teorias da física ou da biologia molecular. São inspiradas leituras e projeções das condições econômicas, familiares e sexuais da existência burguesa na Europa Central e Ocidental entre, digamos, os anos 80 do século XIX e os anos 20 do século XX. Em breve, textos críticos famosos, como os do antropólogo Malinowski, revelariam que o esquema freudiano de impulso e repressão instintivos não se aplica às sociedades matriarcais ou a sistemas de parentesco afastados da norma europeia. O conjunto de provas que sustenta a psicanálise não é um conjunto de fenômenos materiais ou orgânicos, no sentido que lhes dá, por exemplo, o especialista em neuroquímica. É uma acumulação específica de hábitos linguísticos e comportamentais num dado tempo e lugar” – STEINER, George. Nostalgia do absoluto. Lisboa: Antropos, 2003, p. 25-26.

agostiniana, preocupou-se em mostrar arrependimento pelos pecados cometidos mediante a proximidade da morte.

*

Ao contrário de John Benton, Jonathan Kantor, Nancy Partner, Chris Ferguson e David Léo Levisky, não enxergamos essa mulher como “objeto” dos desejos possessivos inconscientes de seu rebento, mas, de acordo com a linha interpretativa de Anneke Mulder- Bakker,34 como modelo de vida e sabedoria cristãs, o melhor que Guiberto teve diante de si.35 Um exemplo de como se viver o cristianismo: um cristianismo de ação que se espraiava entre os laicos, e que não se restringia à palavra escrita ou devaneios intelectuais e contemplativos de mestres da Igreja.36

Em artigo publicado como capítulo da coleção História das mulheres – a Idade Média, Carla Casagrande afirmou que a palavra pública docente foi proibida às mulheres, que ficaram às margens do que era tratado nas universidades e debates teológicos.37 De acordo com Casagrande, a elas os espaços de expressão praticamente reduziam-se ao ambiente doméstico, onde aconselhavam e instruíam familiares (esposos, filhos, parentes e demais agregados domésticos).

O que Anneke Mulder-Bakker defendeu corrobora a teoria de Carla Casagrande, e vai além: embrenha-se no contexto religioso de um período no qual um cristianismo vivido na prática era cada vez mais procurado e professado no universo laico. E, ainda segundo Mulder- Bakker, numerosas mulheres estavam na vanguarda desse novo tipo de conduta religiosa, que não se expressava pela eloquência, mas por ações silenciosas e exemplares. Portanto, entre outras possibilidades, o poder feminino de influência residia na maternidade e orientação dos filhos ainda na primeira idade.38

34 MULDER-BAKKER, Anneke, op. cit., 2005 (mais especificamente o Capítulo II: The mother of

Guibert of Nogent: the age of discretion).

35 A partir de suas reflexões filosóficas e teológicas, Agostinho diferenciou razão – natural aos homens – e

sabedoria – algo a ser alcançado pelos homens que bem utilizaram a razão que lhes foi concedida.

Portanto, para Agostinho, somente os humanos eram dotados de razão. Através dela, eram orientados e conduzidos à sabedoria, este um dom maior: “A razão torna todo homem capaz de receber um preceito. Ora, assim como a natureza racional é capaz de perceber um preceito, assim também a observância deste conduz à sabedoria” – SANTO AGOSTINHO, O livre-arbítrio, Livro III, cap. 23, 72, p. 234.

36

VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental: séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 90-122.

37 CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custódia. In: DUBY, Georges & PERROT, Michelle (dir.).

História das mulheres: a Idade Média. Porto: Afrontamento, s/d, p. 135-136.

38 HERRERO, María del Carmen García. El cuerpo que subraya: imágens de autoridade e influencia

Ao nos apartar das abordagens estritamente psicanalíticas, vinculamos o cerne desta pesquisa à impossibilidade de se falar em uma individualidade claramente definida na Baixa Idade Média, como defendeu Caroline Walker Bynum.39 Para essa pesquisadora, tal dificuldade se justificava pelo fato de que os autores medievais se ancoraram em uma forte tradição cristã para escreverem a respeito de si. Assim, almejamos entender Guiberto de Nogent e Monodiae como testemunhos que nos explicam aspectos filosóficos, éticos e educacionais dos séculos XI e XII.

Para a supracitada pesquisa de Anneke Mulder-Bakker,40 a mãe de Guiberto de Nogent foi um dos primeiros exemplos de mulheres anacoretas nas planícies banhadas pelas águas dos rios Sena e Elba. Um modo de vida que se tornou comum no século XIII: cristianismo consubstanciado no corpo e que se explicitava na oralidade. Ao debruçar-se sobre o significado e desdobramentos conceituais do vocábulo “monge”, Isidoro de Sevilha (560-636) assim se referiu aos anacoretas:

Anacoretas são aqueles que, depois da vida cenobítica, dirigem-se aos desertos e habitam sozinhos paragens despovoadas: a eles foi dado nome semelhante por terem se apartado longe dos homens. Os anacoretas imitam Elias e João; os cenobitas, ao contrário, imitam os apóstolos.41

A mãe de Guiberto não era uma sábia letrada, porém, a sabedoria que ela detinha era a de uma entrega ao chamado de Deus e de um anseio de ensinar aos próximos este caminho. Sem cartas ou sermões, ela instruiu seu filho por atos, através de uma convivência diária em que observar os exemplos dados, muitas vezes sem palavras, valia bem mais que falar ou pregar.

Além, do diálogo com essa historiografia até aqui equacionada, nossa hipótese interpretativa medular partirá da premissa de que Guiberto de Nogent foi tocado pela sabedoria antiga na construção do texto sobre sua mãe. Assim, buscamos entender este autor com base nos horizontes que lhe eram próprios, e a partir do material de estudo e reflexão espiritual que detinha para tecer os fios de suas concepções filosóficas, teológicas e culturais.42

39

BYNUM, Caroline Walker. Jesus as mother: studies in spirituality of the Middle Ages. Los Angeles: University of California, 1982, p. 82-109.

40 MULDER-BAKKER, Annake, op. cit., p. 24 e 36.

41 ISIDORO DE SEVILHA, Etimologias, Livro VII, 13, 3, p. 673 (TA). 42

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 36-37; GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 57-71 e 312.