• Nenhum resultado encontrado

VAIDADE JUVENIL

III. 1. Praia sem areia, mar que não é azul

Nas investigações que até aqui conduzimos, a trajetória de Guiberto de Nogent e suas demandas particulares se inserem no contexto de reorientação espiritual, cultural, política e administrativa pela qual Igreja e sociedade cristãs passavam desde a segunda metade do século XI. Ao se espraiar por várias instâncias do clero e pela vida dos membros da comunidade laica, esse movimento, inicialmente, reservou aos monges posição de destaque, pois, de um modo geral, foram eles os primeiros a detectar as carências então existentes e fornecer referências pontuais para o que a História veio a conhecer como Reforma

Gregoriana.348

Distante de se ater a um pontificado específico e a questões de cunho estritamente político e administrativo, a Reforma Gregoriana teve a hipotética incumbência de ordenar o ocidente medieval segundo preceitos cristãos.349 Contudo, de acordo com John Howe, não é prudente encravar um centro único e longevo (papado ou monaquismo) do qual o ideário reformador irradiava uniforme e pacificamente: na verdade, esse conjunto de ideias – que a historiografia tradicional denominou como “reforma” – esteve exposto a distintos usos e interpretações.350

Em complemento às asserções levantadas por John Howe, Gerd Tellenbach questionou o olhar monolítico e institucional lançado sobre um suposto “programa reformador” no século XI.351

Na análise que conduziu, Tellenbach propôs ser pertinente pensar em temáticas comuns ao recorte temporal tratado, porém, elas estariam internamente perpassadas por concepções humanamente flexíveis, frágeis, difusas e, em determinadas situações, antagônicas. Toda elas constituídas a partir de realidades de feições anônimas, móveis e multifacetadas, que se espalharam pelo imenso (polifônico e polissêmico) edifício social da Idade Média.

De acordo com Dominique Barthélemy,352 em seu estudo histórico-antropológico sobre a cavalaria medieval, de suas prováveis origens romano-germânicas ao século XII dos francos, a Reforma Gregoriana, caso houvesse sustentado seu rigor inicial e demais propostas,

348 MICCOLI, Giovanni. Os monges. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O homem medieval. Porto: Presença,

1989, 1989, p. 42-48.

349

BASCHET, Jérôme, op. cit., 2006, p. 190.

350

HOWE, John. Church reform and social change in eleventh-century Italy: Dominic of Sora and his patrons. Philadelphia: University of Pennsylvania, 1997.

351 TELLENBACH, Gerd. The Church in western Europe from the tenth to the early twelfth century.

Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

352 BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII. Campinas:

possivelmente teria levado à derrocada a pequena e média nobreza feudais. Assim, os compromissos e negociações que a Igreja cristã posteriormente aceitou (ou foi obrigada a aceitar em um nítido sinal de suas fragilidades) manter com esses segmentos testemunham as adaptações que os reformistas produziram ao longo dos anos, ou até mesmo alguns de seus fracassos.

Não objetivamos penetrar nesta extensa e intricada seara historiográfica sobre a reforma nos séculos XI e XII, pois os debates que suscitou (e ainda suscita) de longe superam os limites temáticos do que esta pesquisa intenta. Destarte, nossas considerações permanecerão restritas ao ambiente monástico, local não menos passivo de controvérsias que viu brotar em seu seio representantes combativos que lutavam pela volta ao passado cristão primitivo e uma retomada dos preceitos beneditinos como instrumentos para retificação de práticas e espiritualidade.

Porém, como veremos nas páginas a seguir, diante das possibilidades impostas pelas incertezas da existência cotidiana e costumes, nem todos cumpriram à risca (ou assim desejaram) o ideário que se propunha – as censuras impostas pelo clero a quem discordasse das decisões conciliares é um indício que nos permite crer que houve quem resistisse em defesa de tradições há tempos enraizadas.353

Antes de mais um passo, destacamos um importante artigo que Jay Rubenstein escreveu há pouco mais de uma década.354 Nele, Rubenstein debateu o fato de que há um número ínfimo de trabalhos que versam sobre as opiniões de Guiberto de Nogent em relação à Reforma Gregoriana – cronologicamente, Guiberto viveu durante a época que a historiografia comumente define como o auge desta reforma.

Ao criticar as posições de John Benton,355 para quem Guiberto era um “reformador de coração”, e de R. I. Moore,356 que reputava as histórias guibertinas como genuínos exemplares da condenação à simonia (venda de indulgências e cargos eclesiásticos), nicolaísmo (concubinato de padres e demais membros do clero) e a tudo mais que viesse a corromper o corpo da Igreja, Jay Rubenstein apontou para determinadas incoerências equacionadas nos capítulos de Monodiae a respeito desse assunto. Embora Guiberto se mostrasse sensível a alguns dos objetivos dispostos pelo ideário gregoriano, ele não os aplicou integralmente ao

353

SILVESTRE, Hubert. O idílio de Abelardo e Heloísa: a parte do romance. In: ABELARDO e HELOÍSA. Historia calamitatum: cartas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008, p. 72-73.

354 RUBENSTEIN, Jay. Principled passion or ironic detachment? The Gegorian Reform as experienced by

Guibert of Nogent. The Haskins Society Journal: studies in Medieval History, n. 10, p. 127-141, 2001

355 Op. cit., 1984, p. 24. 356 Op. cit., 1983.

que disse ter praticado no decurso de sua vida monástica. Ainda segundo Rubenstein, em momentos específicos, Guiberto chegou a confrontar diretrizes da reforma.

Essas supostas incoerências sob a pena guibertina levaram Jay Rubenstein a propor que o abade manteve atitudes ambivalentes ao lidar com questões de caráter reformista. Ao adensar o debate com as indicações dos já citados John Howe e Gerd Tellenbach, fruímos que os apontamentos iniciais de Rubenstein evidenciam que a suposta ambiguidade exibida por Guiberto não foi um caso incomum, um desvio de curso face à “ideologia dominante”, e que os “ideais reformistas”, quando entendidos como tal, sofreram constantes torções e reorientações à medida que se entrelaçaram nos fios das preocupações pessoais e cotidianas dos medievais.

Desde tempos anteriores à reforma, palavras de ordem como obediência, humildade e castidade já ressoavam nos corredores de mosteiros e abadias – um desafio de ajustamento das comunidades ao projeto de vida disposto na regra beneditina e que os primeiros monges cistercienses abraçaram.357 Ao viver e ser intelectualmente moldado nessa época, Guiberto não passou incólume por esse processo. Como tantos outros fizeram, sorveu as ideias que o alcançavam; como tantos outros fizeram, tomou pena e tinta e um pouco de si imprimiu nessas ideias.

Na sequência analítica de Jay Rubenstein e de todos aqueles historiadores que pensaram e escreveram as centúrias denominadas gregorianas como um processo fluido e humano, nossa intenção no presente capítulo será compreender de que modo Guiberto imaginou e devolveu ao mundo um tópico habitual ao tempo e contexto ao qual pertenceu: a humildade.

*

Por volta dos vinte anos de idade, Guiberto se viu pela primeira vez sozinho. Sua devotada mãe largou de uma única vez casa, conforto e família para viver na condição de anacoreta nas cercanias da abadia de Saint-Germer de Fly.358 O tutor que custodiava seu último filho seguiu o exemplo dado por ela, e também se encaminhou para o mesmo lugar.

357 COLOMBÁS, García M. La tradición benedictina: ensayo histórico – el siglo XII. Zamora: Monte

Casino, tomo IV, v. 2, 1994, p. 509.

358

LANZIERI JÚNIOR, Carlile. “Ser belo na condição de ser bom”: Beleza e Ética na sabedoria monástica do Abade Guiberto de Nogent (c.1055-c.1125). Outros Tempos, São Luís, n. 5, p. 113-125, 2008; MULDER-BAKKER, Anneke, op. cit., 2005, p. 11.

Após um breve período de incertezas advindas da ignorância, abandono dos estudos e estultices juvenis,359 Guiberto partiu para se unir a eles.360

Localizada a uma distância de aproximadamente setenta quilômetros da cidade de Clermond,361 a abadia de Saint-Germer foi o lar que acolheu Guiberto por cerca de três décadas. Uma vez mais, ele foi posto próximo da companhia de sua mãe e aos cuidados educacionais de seu antigo tutor. Embora de volta à presença daqueles que o acompanharam até ali em sua vida – em pouco tempo, ele foi aceito como monge de Saint-Germer de Fly –, Guiberto de Nogent descobriu por trás dos muros de sua nova morada outras demandas existenciais.

Imagem 5

Vista panorâmica de Saint-Germer de Fly em postal da segunda metade do século XIX

(Imagem disponível na INTERNET no endereço <http://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:St_Germer_de_Fly_- _Vue_panoramique.jpg>)

359 De acordo com Jean Leclercq (op. cit., 1961, p. 12), desde São Bento, abandonar a vida religiosa e se

entregar ao século foi tema recorrente nas histórias de vários homens ligados ao monaquismo. Tempos depois, retomavam a antiga condição. Na maioria dos casos, segundo Leclercq, pouco se sabe a respeito do que fizeram longe dos claustros. Em algumas situações, este autor acredita que tomaram tal atitude não por mera negligência, mas porque a aprendizagem secular lhes permitiria acrescentar um grau de polidez à simplicidade monástica. Entretanto, este não parece ser o caso de Guiberto de Nogent que, por algum tempo, deixou os estudos de lado antes de se tornar monge.

360

Esse momento da história de Guiberto de Nogent nos sugere algumas reminiscências bíblicas: “Sou agradecido para com aquele que me deu força, Cristo Jesus, nosso Senhor, que me julgou fiel, tomando- me para o seu serviço, a mim que outrora era blasfemo, perseguidor e insolente. Mas obtive misericórdia, porque agi por ignorância, na incredulidade” (1 Tm 1, 12-13); “Não recordes os pecados de minha juventude, e minhas revoltas, lembra-te de mim, conforte o teu amor por causa da tua bondade, Iahweh” (Sl 24, 7).