• Nenhum resultado encontrado

O EXEMPLO MATERNO DA SÁBIA EXISTÊNCIA CRISTÃ

I. 3. As duas faces da Sábia Beleza de uma dama

Para os padrões dos séculos XX e XXI, a beleza é basicamente estética. Em sentido puramente material, é parte daquilo vemos, sentimos e tocamos. Mas para Guiberto de Nogent, homem separado de nosso tempo por quase novecentos anos, ela possuía significado filosófico transcendental, não se limitava ao superficial e visível.74 Ademais, ele, assim como

72

DUBY, Georges. São Bernardo e a arte cisterciense. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 6.

73 A Regra de São Bento, cap. 48, 1, p. 233.

Bernardo de Claraval e Hugo de São Vítor, confiava na existência de uma sabedoria que residia no espírito. Silenciosa, ela se imiscuía na beleza e se expressava nas boas atitudes e anseio de servir a Deus.75

Monge desde a juventude, Guiberto de Nogent teve na própria mãe seu primeiro e principal modelo de sabedoria cristã. Uma sabedoria que ia muito além dos livros e se compunha pelo temor a Deus, amor ao próximo e castidade. Ela foi uma espécie de mestra na arte de existir retamente, que ensinava e admoestava o filho pela prática diária. Como veremos ao longo desta tese, aos exemplos sábios de sua mãe, Guiberto acrescentou o saber das letras. Sutilmente, os ditames beneditinos sobre a necessidade indispensável de o abade, como bom pai (abbas), ensinar pelo uso da palavra e exemplo imiscuíam-se nas entrelinhas da narrativa guibertina.76

Assim como Agostinho fez com sua progenitora, Mônica,77 Guiberto descreveu aquela que lhe trouxe ao mundo como uma mulher de vida casta e religiosa. Sob verniz monástico, predicados oriundos das tradições matriarcais judaico-cristãs que o abade entendia como dádivas dadas a ela por Deus.

[...] Deus onipotente, quanto medo seu nome inspirou no espírito dela, desde a idade mais jovem, e como ela se rebelou adversa à toda forma de encanto. Casualmente, raramente ou nunca, alguém encontraria uma continência como a sua em mulheres de alta condição [...].78

75 MULDER-BAKKER, Annake, op. cit., 2005, p. 36. 76

“Portanto, quando alguém recebe o nome de Abade, deve presidir a seus discípulos usando de uma dupla doutrina; isto é, apresente as coisas boas e santas, mais pelas ações que pelas palavras, de modo que aos discípulos capazes de entendê-las proponha os mandamentos do Senhor por meio das palavras, e aos duros de coração e aos mais simples mostre os preceitos divinos pelas próprias ações. Assim, tudo quanto ensinar aos discípulos como sendo nocivo, indique pela sua maneira de agir que não se deve praticar, a fim de que, pregando aos outros, não se torne ele próprio réprobo (1 Cor 9, 27) e Deus não lhe diga um dia como a um pecador: Por que narras as minhas leis e anuncias o meu testamento pela tua boca? Tu que odiaste a disciplina e atiraste para trás de ti as minhas palavras (Sl 49, 16-17) e ainda: Vias o argueiro no olho de teu irmão e não viste a trave no teu próprio O (Mt 7, 3)” – A Regra de São

Bento, cap. 2, 11-15, p. 31 e 33. No capítulo referente à pessoa do abade, a Regra de Santo Isidoro

(século VII), já trazia manifesta o cerne da regra beneditina: “[...] o abade deverá mostrar-se como exemplo digno de imitação em toda a sua conduta, pois não poderá mandar coisa alguma que não tenha praticado. Estimulará a cada um e a todos a que se animem uns aos outros, falando a todos e impulsionando neles o desenvolvimento do que vêem em sua conduta que pode ser aproveitada segundo o progresso de cada um; mas guardando a equidade para com todos, sem se deixar arrastar pela antipatia ou ódio, abraçando a todos com seu afeto, sem depreciar nenhum dos conversos; disposto assim mesmo a comparecer com piedade da debilidade de alguns, a exemplo do Apóstolo, que disse: Fizemo-nos de

pequenos no meio de vós como a mãe que abriga seus filhos” – Regra de Santo Isidoro, cap. II, p. 92.

77 COSTA, Ricardo da. Santa Mônica: a criação do ideal de mãe cristã. In: III Congresso Nacional de

Estudos Clássicos / IX Reunião da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, 1995, Rio de Janeiro.

Anais... Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS), 1995, p. 21-35.

Embora fosse jovem, de linhagem nobre e dona de atraente beleza corporal, Guiberto afirmou que sua mãe se esquivou dos pecados por temor a Deus, sentimento revelado pela vontade de negar aspirações e atributos pessoais para assumir um comportamento modesto. Aos poucos, a história dele diluía-se na dela.79 Ao elogiar a própria mãe, Guiberto claramente exaltava a castidade, tema aclamado pela literatura monástica.80

Deus pio e santo, eu disse que estou o tempo todo grato por seus benefícios. Primeiramente, rendo-lhe graças por ter me dado uma mãe que foi bela, casta e modesta, penetrada pelo medo do Senhor. Mencionar sua beleza sozinha seria o mesmo que profaná-la e maldizê-la, se eu não colocasse (para demonstrar a futilidade do termo “beleza”) que a severidade de seu aspecto era um testemunho de sua castidade. Para homens paupérrimos, que não têm alimentos suficientes, jejum é realmente um suplício menos recomendável. Ao considerarmos a frugalidade dos ricos, seu mérito é derivado de sua abundância. Então, é com beleza, que é tudo de mais louvável, que ela resiste à bajulação, mesmo sabendo que é desejável.81

No decorrer dos capítulos que escreveu, Guiberto deu amplo destaque aos atributos físicos de sua mãe. Por ser nobre, ela desfrutou de fartura e conforto. Contudo, essas benesses não a arrebataram. Pelo filtro do olhar de seu filho, apenas por força das circunstâncias ela convivia com esses atrativos. Na intimidade, ela sabia tratar-se de bens temporários, incomparáveis aos que lhe aguardavam no Paraíso. Com os olhos da alma atentos, Guiberto enxergava nela uma beleza sublime, verdadeira e única.82

Inseridas no contexto histórico ao qual pertenciam, as sentenças de cunho espiritual proferidas por Guiberto testemunharam as vicissitudes materiais pelas quais algumas regiões do ocidente medieval passavam entre os séculos XI e XII e como os significados dados aos alimentos ultrapassavam o sentido meramente nutricional.83 Em tempos de segurança alimentar, esquivar-se dos apelos de uma mesa farta era meio eficaz para se opor às volúpias corporais. Para melhor experienciarem a existência religiosa, algumas mulheres laicas –

79 PARTNER, Nancy, op. cit., 1996, p. 360. 80

LANZIERI JÚNIOR, Carlile. A sabedoria de um monge medieval: as relações políticas e sociais nas memórias do abade Guiberto de Nogent. Juiz de Fora: Editar, 2007, p. 28-29.

81 GUIBERTO DE NOGENT, Monodiae, Livro I, cap. 2, p. 11.

82 “Tais belezas só podem ser vistas por aqueles que vêem com os olhas da Alma. E quando as vêem,

experimentam um deleite, uma alegria e um assombro bem maiores do que os experimentados diante das belezas precedentes, pois nesse caso contemplam o reino da verdadeira Beleza. Eis o que experimentamos quando entramos em contato com a beleza: o maravilhamento, um súbito deleite, o desejo, o amor e uma alegre excitação. É possível sentir isso diante das belezas invisíveis. E as Almas realmente o sentem: praticamente todas as Almas, mas especialmente as Almas que as amam. O mesmo ocorre no que diz respeito à beleza dos corpos: todos a vêem, mas nem todos sentem o mesmo impacto; os que mais o sentem são os que chamamos de ‘amorosos’” – PLOTINO, Tratado das Enéadas (Sobre

o belo, 4), p. 25-26.

83

LEYERLE, Blake. Monastic formation and Christian practice: food in the desert. In: VAN ENGEN, John (ed.). Educating people of faith: exploring the history of jewish and christian communities. Cambridge / Michigan: Willian B. Eerdmans, 2004, p. 100.

muitas pertencentes à nobreza – descobriram na privação de alimentos uma forma de imitar a pobreza e o sofrimento de Cristo.84

Aos opositores mais argutos do monaquismo representado pela ordem de Cluny, como Bernardo de Claraval, as refeições numerosas e suculentas servidas nas várias abadias a ela ligadas eram motivo para ásperas acusações.85 Porém, sem perder de vista o contexto sócio- econômico de então, para os monges desta ordem, muitos de ascendência nobre, não fazia sentido se esquivar das melhorias materiais vividas pelos séculos XI-XIII.86

Como a mãe de Guiberto, diversas mulheres que optaram pela reclusão viam méritos insuperáveis nos contínuos jejuns e macerações.87 Durante a vida terrena, mulheres que se tornaram santas demonstraram repugnância diante dos pratos a elas servidos, ou logo vomitavam o que ingeriam: tais hábitos de abstinência eram elementos essenciais em suas experiências místicas.88

Segundo Guiberto, essa foi a principal virtude de sua mãe: aceitar o desafio de manter- se acima das futilidades, mesmo que fosse difícil superá-las. Ainda que a formosura e situação econômica a empurrarem para outra direção, ela não se rebaixou. Buscou a severidade para se proteger e demonstrar que nada no plano secular lhe despertava paixões. Sutilmente, os ensinamentos de Agostinho parecem conduzir a pena de Guiberto:

A resistência da vontade a um poder superior produz a dor na alma, e resistência dos sentidos a um corpo mais poderoso provoca a dor no corpo. Mas há males que são piores sem produzir dor, porque pior é alegrar-se com a iniqüidade do que padecer com a corrupção. Não obstante, tal regozijo não pode resultar senão na aquisição de bens inferiores, ao passo que a iniqüidade é a renúncia dos bens inferiores.89

O desejo por despojamento exibido pela inominada mãe de Guiberto tornou-se comum na espiritualidade medieval dos séculos XII e XIII. Nessa época, não foram raros aqueles que confiavam que despojar-se era rebaixar o corpo, humilhá-lo para estabelecer o contato com

84

LAWERS, Michel. Santas e anorexicas: o misticismo em questão. In: BERLIOZ, Jacques (apres.).

Monges e religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994, p. 220. Cf. também BELL, Rudolph M. Holy anorexia. Chicago / London: University of Chicago, 1995 [Especialmente o Capítulo 4 (Wives and Mothers)].

85 “E por nos abstermos de alimentos condimentados nos enchemos de legumes os estômagos e de soberba

os espíritos. Quando seria preferível comer manjares guisados que fartar-se, até arrebentar, de flatulentos legumes” – BERNARDO DE CLARAVAL, Apologia dirigida ao abade Guilherme, VI. 12, p. 269.

86

RIERA-MELIS, Antoni. Sociedade feudal e alimentação (séculos XII-XIII). In: FLANDRIN, Jean- Louis & MONTANARI, Massimo (dir.). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 397-407.

87 L’HERMITE-LECLERCQ, Paulette. A vida cotidiana das reclusas. In: BERLIOZ, Jacques (apres.).

Monges e religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994, p. 213.

88 LAWERS, Michel, op. cit., 1994, p. 219-223.

Deus.90 Ações que ganharam notoriedade e respeito com as práticas ascéticas dos cistercienses no século XII, e de Francisco de Assis (c.1181-1226) e seus seguidores no decorrer do XIII.91

Ao interpretar as palavras de Guiberto de Nogent no contexto no qual surgiram, percebemos indícios que testemunham os valores que os monges difundiram entre os cristãos: castidade, humildade e obediência. Ele não estava imune a essas relações de força: absorveu- as e colocou-as em tudo que narrou. Com os olhos e o coração voltados para o Além, para a vida depois da morte,92 Guiberto aprendeu, escreveu e, como bom abade que pretendia ser (ou demonstrar ser), ensinou. Se ouvido ou não, essa é outra história que pretendemos contar nos capítulos finais.

*

Analisar histórica e culturalmente as pretensões do abade Guiberto de Nogent é um convite à alteridade, ao estranhamento indispensável à compreensão do homem no tempo, mesmo que os séculos o tenham encoberto com espessas camadas de pré-compreensões.93 Possivelmente com Mônica em mente, e tocado pelo impulsionado culto mariano do século XII,94 Guiberto elevou sua mãe à santidade, uma vez que ela também refutou a carne em prol do espírito e zelou pelo bem-estar do filho.95 Consciente de portar uma beleza que despertava a cobiça masculina, ela foi combativa. Ao longo dos capítulos de Monodiae, as atitudes mais incisivas dessa mulher ocorreram quando sua castidade foi ameaçada. Até mesmo depois de

90 SILVA, Elói Gomes da. O despojamento em São Bernardo de Claraval e São Francisco de Assis

(séculos XII e XIII). Assis, 2005, 224 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e

Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2005, p. 29.

91 COLOMBÁS, García M., op. cit., 1993, p. 84-103; GARCÍA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la

Iglesia Católica: Edad Media (800-1303) – La cristandad em el mundo europeo y feudal. 6. ed. Madrid:

Biblioteca de Autores Cristianos, 2003, p. 662-697; VAUCHEZ, André, op. cit., 1995.

92 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo,

2006, p. 374.

93 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.

55; GADAMER, Hans-Georg, op. cit., 1998; GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p. 41.

94 Entre os muitos testemunhos desse culto medieval que chegaram aos tempos atuais, podemos citar

Milagres da Santa Virgem, de Gautier de Coincy (1177-1236), Os milagres de Nossa Senhora, de

Gonzalo de Berceo (c.1197-c.1264), e as Cantigas de Santa Maria, de Afonso X (1221-1284). Compostas por histórias de natureza exemplar, essas obras punham a Virgem Maria na condição de piedosa intercessora, sempre pronta ajudar quem a invocasse.

95 COSTA, Ricardo da, op. cit., 1995, p. 21-29; DALARUN, Jacques. Olhares de clérigos. In:

KLAPISCH-ZUBER, Christiane (dir.). História das mulheres: a Idade Média. Porto: Afrontamento, 1993, p. 39-40; FERNÁNDEZ, Emilio Mitre (coord.). Historia del cristianismo: el mundo medieval. Madrid: Trotta, v. 2, 2004, p. 312-313.

se tornar viúva, ela se manteve irredutível. Ela jamais inclinou-se a galanteios e aceitou contrair novas núpcias.

Por entender que aquela jovem encontrou em si a beleza da natureza divina,96 Guiberto se aproximou dos preceitos filosóficos de Hugo de São Vítor. E ele se rejubilava com a sabedoria materna, algo que ele compreendia como símbolo vivo das altas formas de conhecimento cristão.97 Uma riqueza que muitos homens daquele tempo perderam diante das paixões mundanas, malefícios que os aproximaram da perdição.98

Sabedor das agruras de seu tempo, Guiberto mostrava o que aprendeu aos que desejavam um caminho para a verdadeira sabedoria: o caminho percorrido por aquela que lhe trouxe ao mundo. Em jornada por ambientes inóspitos aos cristãos, ela abriu os olhos da alma para enxergar os sinais divinos. Assim como Maria, entregou-se em obediência, sem questionar.99 Segundo Guiberto, essa vontade de alcançar a sabedoria tornava tudo naturalmente bom, inclusive a beleza corporal.

A instabilidade do sangue torna a beleza momentânea. Mas, considerando o traço da perfeita imagem do Criador, admiti-se que ela seja boa também. Com efeito, se é bom tudo que é instituído na ordem eterna, então instituída por Deus, toda instância particular de beleza no século é, alguém poderia dizer, um espelho daquela eterna beleza.100

Cuidadoso com as palavras e pródigo ao refletir sobre as instâncias divinas, Guiberto reafirmava que a beleza exterior era dádiva concedida aos humanos, criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus.101 Portanto, a beleza era uma fortuna quando preenchida pela ética cristã. Entrementes, caso não cuidada, essa dádiva tornar-se-ia uma ameaça capaz de

96 MARCHIONI, Antonio. Apresentação. In: HUGO DE SÃO VÍTOR. Didascálicon: da arte de ler.

Petrópolis: Vozes, 2001, p. 11.

97

MULDER-BAKKER, Annake, op. cit., 2005, p. 36.

98 Na acepção de Agostinho, o pecado existia pela ação voluntária do homem livre. Embora este fosse

essencialmente bom por ser obra divina, perdia-se por se deixar iludir por aquilo que lhe corrompia a alma: “Toda criatura corporal é bem, por pouco que a alma – amante de Deus – a domine. É bem inferior, mas belo em seu gênero, por levar impressa uma forma ou espécie. Quando a criatura corporal é possuída por uma alma negligente de Deus, nem mesmo assim, ela se muda em mal. Sendo, porém, o pecado um mal, esse amora a um bem inferior será ocasião de pena para o seu amante. Poderá levá-lo à miséria, e iludi-lo com seus falsos deleites, visto que esses bens não satisfazem, mas atormentam. Com efeito, a sucessão do tempo que segue a sua ordem, a beleza cobiçada escapa a seu amante, tortura seus sentidos e o entrega às agitações do erro” – SANTO AGOSTINHO, A verdadeira religião, Terceira Parte: Bondade da criação e origem do mal, cap. 20, 40, p. 63.

99

“Disse, então, Maria: ‘Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo tua palavra!’ E o Anjo a deixou” (Lc 1, 38).

100 GUIBERTO DE NOGENT, Monodiae, Livro I, cap. 2, p. 13.

101 “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre

os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra. Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou” (Gn 1, 26-27).

transformar homens e mulheres em seres decaídos, servos da luxúria e de tudo que conduzisse à carne.

Neste fragmento de Monodiae, Guiberto de Nogent ainda demonstrou que sobre a beleza humana (temporal e perecível) pairava a beleza de Deus (eterna e incorruptível). Em nível inferior, a primeira era um simulacro da segunda. Iguais na aparência, distantes na essência. A beleza física dos corpos permanecia imaculada apenas quando em comunhão com aquela que a inspirava.102

O que posso fazer pelas coisas, cujo próprio nome ou aparência as converte em desculpa para lascívia ou arrogância? Elas são tão inconstantes que a estrutura da mente de alguém pode mudá-las para propósitos demoníacos. Por mais fugazes que sejam, mais sua natureza transitória lhes rende suspeitas. Se alguém não pode encontrar outro argumento para desprezá-las, é suficiente mostrar que a linhagem de alguém, ou o aspecto físico, não são da escolha de ninguém. Nesses domínios particulares, nós somente temos o que nos foi dado.103

Na passagem supracitada, Guiberto de Nogent deixou claro: as pessoas eram admiradas pela beleza física que possuíam. Entretanto, expunham-se mais facilmente aos pecados. Assim, igualmente responderiam pelo uso imoderado desta dádiva concedida por Deus, por não resistirem e se entregarem aos vícios despertados pela beleza corporal, o que mancharia a perfeição da criação divina. Na concepção de Guiberto, embasada nos ensinamentos agostinianos, a beleza do corpo era importante, mas era menor se comparada àquela adquirida pela virtude.104

O que fazer para superar os obstáculos? Como deter a marcha da degradação? Em sua didática edificante, Guiberto deixava nas entrelinhas os conhecimentos a serem adquiridos: ser obediente, casto e humilde. Enfim, ser como sua mãe, e resgatar o traço fundador da divindade criadora existente em cada pessoa. No fundo, ele afirmava que a retidão da vida monástica era a que permitia o homem merecer salvação.105 Salvação que se encontrava no íntimo de cada um e na capacidade da humana de olhar para si.

[...] o primeiro conhecimento deve ser o do que somos; [...] tal conhecimento não incha, mas humilha e serve de fundação para a edificação. Pois um edifício cultural

102 Mais uma vez, Guiberto nos remete a Plotino: “Assim, a beleza das coisas materiais provém de sua

comunhão com um pensamento [razão, logos] que provém dos deuses” – PLOTINO, Tratado das

Enéadas, Sobre o belo, 2, p. 22-23.

103

GUIBERTO DE NOGENT, Monodiae, Livro I, cap. 2, p. 9.

104 “Portanto, como estamos destinados a gozar sem fim dessa Verdade que vive imutavelmente e pela qual

o Deus Trindade, autor e criador do mundo, cuida de sua criação, devemos purificar nosso espírito para que possa contemplar essa luz e a ela aderir quando contemplada” – SANTO AGOSTINHO, A

Doutrina Cristã, Livro I, cap. 10, p. 50.

que não tem seu fundamento na humildade não se agüenta em pé. E para aprender a humildade a alma não encontra nada mais convincente do que descobrir a si mesma na verdade. Deve-se, portanto, evitar a dissimulação, o auto-engano doloso, deve o homem encarar-se de frente, evitando fugir de si mesmo.106

Mais explícito que Guiberto de Nogent, Bernardo de Claraval acreditava que uma pessoa se tornava sapiente e digna de salvação no momento em que buscasse no íntimo da alma o autoconhecimento. Fiel à regra beneditina, Bernardo definiu que a meta seguinte era promover o bem. Tarefas difíceis, pois davam a seu portador a consciência de quem era e do quanto precisava melhorar. De igual forma, revelações imprescindíveis, pois preludiavam a correção dos vícios do corpo.107

Em mais uma passagem de suas memórias, com nítida inspiração agostiniana, Guiberto deixou transparecer a confiança na existência de uma natureza divina em todas as pessoas, e estas, por sua vez, seriam resgatadas da degradação, à medida que se arrependessem e se convertessem em cristãos de almas elevadas pela sabedoria desejada.

Está dito que os corpos, uma vez entre os eleitos, também serão configurados com claridade do corpo de Cristo, e que qualquer feiúra contraída por acidente ou