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CAPÍTULO II: MONTEIRO LOBATO E A BATALHA POR UM PAÍS

VI. Antes do Progresso

O Jeca Tatu só adquiriu significado decisivo na literatura lobatiana quando este erudito intelectual percebeu a necessidade premente do Brasil de superar os males sociais que afligiam a população brasileira, sobretudo, aquela parcela confinada aos rincões do sertão. O caipira, o caboclo, o sertanejo, o tabaréu ou ainda as dezenas de termos correlatos surgidos especialmente no contexto do fim da escravidão e da instalação da Primeira República era o mote da crítica proposta por Lobato. O caipira representava ao mesmo tempo o imaginário e a realidade que povoava as mentalidades ditas modernas e progressistas daquela época. Mais que promover reformas de base, universalizar a saúde, a educação, permitir o pleno desenvolvimento da democracia e de suas instituições, o debate sobre o Jeca atuava na verdadeira e mais importante metamorfose que o país deveria construir: varrer das mentalidades existentes a ideia de

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arcaico, grotesco, atraso e barbárie que povoavam o imaginário da sociedade, mesmo por que um país moderno era aquele que possuía um povo sadio e sensível aos padrões de prosperidade ocidental.

A literatura regionalista que segundo a crítica moderna, é tributária da obra de Lobato e Cornélio Pires, teria salientado as diferenças da população brasileira em um momento que se procurava a homogeneidade do povo. A literatura conseguia capitanear as discussões sociais, científicas, políticas e culturais do período, introjetando numa extensão complexa e ampla a ideia do progresso. Para tanto, não poderia ser esquecido que o povo brasileiro tinha origem e que esta deveria ser encontrada, uma vez que, havia sido retratada pelos olhares estrangeiros e etnocêntricos resultando em uma imagem mistificada.

Cabia ao brasileiro, diga-se de passagem, o pobre, tachado de mestiço, ignorante e com uma cultura simbolicamente inferior a enfatização de seus dilemas e defeitos.

É compreensível que os ideais erguidos em torno do progresso, entendidos como condição necessária e inevitável da modernidade, construídos sob o prisma de modelos europeus e norte-americanos, teriam formulado no período de Lobato e Cornélio Pires uma visão fatalista e pouca altiva do Brasil. A República Velha dava sinal de seu fortalecimento ainda que de maneira tímida, entretanto, não se fazia perceber a Nação, promotora de identidades fortalecidas pela sensação de reconhecimento e aceitação de sua singularidade. O encontro para alguns ou o reencontro do povo brasileiro com sua cultura, sua história, seu Estado, para outros, motivou o debate intelectual daquele período via, segundo Márcia Naxara (1998, p. 45), a “(...) uma identidade que pudesse ser pensada em função do progresso e da possibilidade da formação de uma sociedade do trabalho no Brasil”.

Para ser moderno e instalar o progresso na sociedade de cor verde e amarela, colocava-se em pauta o trabalho, categoria amplamente divulgadora de uma visão de base capitalista e industrial, como promoção da temática da transformação humana e social. No trabalho epistolar chamava a atenção do amigo Godofredo Rangel, com profunda admiração dos Estados Unidos da América: “Mas depressa, homem! Time is money” (1968d, p. 208). Por isso nos textos dos comentadores desse período o aparecimento do indivíduo vadio, indolente e preguiçoso – na contra-mão do progresso – porque o caipira se fazia sentir balizado por exeperiências populares.

Amadeu Amaral, jornalista e intelectual de grande peso na sociedade paulistana e carioca daquele período, integrante da Academia Brasileira de Letras, primo de

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Cornélio Pires, em 1916, explicava os sentidos de ser caipira e ajudava a propagar uma visão média acerca da população pobre brasileira aos olhos dos intelectuais de seu tempo. O caipira era incapaz de mudança.

CAIPIRA, é o habitante da roça, rústico. Próprio de matuto, digno de gente rústica. (...) O caipira genuíno vive hoje, com pouca diferença, como vivia há duzentos anos, com os mesmos hábitos, os mesmos costumes, o mesmo fundo de idéias (Amaral, 1916, p. 22 e 33).

Ao tempo em que célebre falar paulista reinava sem contraste sensível, o caipirismo não existia apenas na linguagem, mas em todas as manifestações da nossa vida provinciana. De algumas décadas para cá tudo entrou a transformar- se. A substituição do braço escravo pelo assalariado afastou da convivência cotidiana dos brancos grandes parte da população negra, modificando assim um dos fatores da nossa diferenciação dialetal. Os genuínos caipiras os roceiros ignorantes e atrasados, começaram também a ser postos de banda, a ser atirados à margem da vida coletiva, a ter uma interferência cada vez menor nos costumes e na organização da nova ordem de coisas (Amaral, 1916, p. 119).

Posições como as de Amadeu Amaral eram recorrentes nas discussões em relação ao caipira. Este respeitado imortal nunca teve o objetivo de depreciar as tradições e nem mesmo as populações limitrófes do Brasil. Tinha trabalho consolidado e com grande frequência discorria sobre o caipira valorizando seus esforços na construção do país. Contudo, sua opinião mencionada em trabalho de relevo – O Dialeto Caipira – ilustrava uma representação média dos intelectuais que concebia a necessidade de transformar o Brasil pelo progresso. Era a formação de um imaginário pulverizado pelo avanço da modernidade em solo nacional. A superação dos males sociais, isto é, do caipirismo, era a primeira porta que se abria para o progresso nacional, por vezes, avassalador.

Raymond Williams (1989) entende que houve uma transformação nas estruturas sociais modernas quando a cidade passou a mobilizar a cadeia do desenvolvimento humano, associada ao dinheiro, à lei, ao luxo e à prosperidade. Ao campo e a condição rural de sobrevivencia, sobrou a caracterização de um ambiente estável e tranqüilo, lugar da manutenção de relacionamentos duradouros.

O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtudes simples. À cidade associou-se a idéia de centro de realizações – de saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosa associações negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso e limitação. O contraste entre campo e cidade enquanto formas de vida fundamentais, remonta à Antiguidade clássica (Williams, 1989, p. 387).

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E nesse imbróglio de nítida visão ideológica hegemônica tornou-se possível estabelecer, ao longo das décadas que marcaram a trajetória de Monteiro Lobato, uma visão moderna trazida à tona pela perspectiva da transformação social. O caipira, personagem marginal do sistema capitalista, passou a ser visto como símbolo do atraso e obstáculo à ascensão do Brasil aos postos eleitos pelo saber racional e econômico- industrial porque não continha base sólida amparada pela calculabilidade técnica.

Mesmo Karl Marx (1977), amplamente lembrado pela crítica ao capitalismo, era simultaneamente “entusiasta” e “inimigo” da vida moderna, criticando de forma profícua as ambiguidades e contradições do sistema. Para Marx (1978), o progresso era algo objetivamente definível que indicava, ao mesmo tempo, o que era desejável. O progresso era percebido na crescente emancipação do homem relativamente à natureza e no seu domínio. Marx pensava que a antiga comunidade transformou-se, no caso extremo do capitalismo, em um mecanismo social desumanizado que, embora tornasse possível a individualização, era hostil e estranho ao indivíduo.

No entanto, é nesse espaço (o da modernidade) que surge como lembra Sérgio Paulo Rouanet (1993), pela primeira vez na história a categoria de individualidade, a qual, possibilitava pensar o indivíduo como ser independente, com seu direito à felicidade e à auto-realização, em detrimento da sociedade tradicional presa no grupo de características simples e estáveis. O homem deixa de ser seu clã, sua cidade, sua nação e passa a existir por si mesmo, com suas exigências próprias e ligadas ao saber racional. Sintetiza Rouanet: “A modernidade é produto desses processos globais de racionalização que se deram na esfera econômica, política e cultural” (1993, p. 120).

Max Weber (1991) acreditava que apenas no ocidente apareceram fenômenos culturais ligados solidamente pela racionalidade técnica. A sociologia, nesse sentido, a ciência que pretende entender as relações sociais interpretando o sentido da ação social, para dessa maneira, explicá-la causalmente em seu desenvolvimento e efeitos, detinha- se na observação de suas regularidades que se expressavam na forma de usos, costumes ou situações diferentes.

Esses autores clássicos percebiam o mérito do processo crescente de racionalização, estando umbilicalmente ligado à modernidade como marca funcional de novas estruturas sociais que se cristalizaram em torno do cerne organizatório da empresa capitalista e do aparelho burocrático do Estado. Daí ser possível perceber a dificuldade enfrentada pelas comunidades rurais em se relacionar com o progresso dado

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o peso e a orientação de sua ação social dirigida no tempo, de modo geral o tempo repetitivo do passado.

Breno Ferraz, um dos diretores da Revista do Brasil, um atento observador de sua época, escrevia em 1922, na Revista a respeito das ideias sobre o caipira que circulavam na sociedade paulistana: o indivíduo pobre e distante das benesses abertas pelo capital acometido de um mal ontológico. O Jeca Tatu, a criação lobatiana hegemônica, propunha a discussão do Brasil moderno e vibrante, mesmo que fosse por intermédio de sua própria negação.

Géca Tatu figura typica de uma collectividade, é uma excepção. O seu grande, o seu extranho e extraordinário poder da expressão – a singularidade. Não é o caipira commum. É o excepcional. (...) Si todos os caboclos fossem a imagem exacta do Géca, não teria descoberto Monteiro Lobato. (...) É um grande exemplo, um symbolo poderoso, um epítome vivo. Vê-lo é ver a olho nu tudo o que na collectividade mais ou menos nos escapa, liquefeito e dissolvido na massa e que só elle crystalisa. O consenso publico, expresso em popularidade e fama, consagrou-o em definitiva. Géca representa o caboclo brasileiro, queiramos ou não. (...) Géca significa o brasileiro como Quixote todos os idealistas, confirmando ambos, no entanto, o princípio da excepção creadora (Ferraz, 1922, p. 108).

Em outra passagem emblemática o mesmo autor dava a tônica de sua observação. Ferraz discutia o caipira pelo viés da superação do estigma e do atraso. Sua imagem era deturpada pela natureza e incentivava o debate. O Jeca Tatu desacreditado, o personagem da desolação e da culpa sofria calmamente seu fardo sem, no entanto, tomar conhecimento de sua condição.

(...) Na verdade, só a excepção crêa. Géca Tatu, creatura da excepção, por sua vez creará. E quanto já não tem creado! Soando no ar como um chicote erguido sobre a nossa apathia e indifferentismo, é o anathema que nos sacode e desperta para a vida. (...) Géca é o pecado nacional. Não o neguem (Ferraz, 1922, p. 108 e 109).

O Jeca Tatu irrompia nos discursos literários e políticos tornando-se o porta-voz às avessas da crítica ao país rural e atrasado; o país que deveria abandonar sua história amena e conservadora, e trilhar o caminho da obstinação que a modernidade ocidental orientava. Importava a Monteiro Lobato colocar na pauta de discussão a modernização das mentalidades, romper com a estrutura social carente de revolução. Devia-se, como força impositiva da razão, estabelecer novas formas de sociabilidade e construir um país com sentimento de pertencimento calcado na esperança: o progresso como futuro e possibilidade da nação.

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