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CAPÍTULO I: O CAMPO INTELECTUAL E O CONTEXTO DO PROGRESSO

III. O atraso e o moderno

As primeiras décadas do século XX por força da grande expansão da economia cafeicultora apresentavam um profundo gosto pelos ideais modernos conduzidos pela modernização econômica. Esse avanço econômico leva a elite econômica brasileira a viver a experiência das transformações de um novo tempo social ligado ao tema do progresso. Aparece a Belle Époque brasileira uma momento no qual o país se beneficiava da importação de produtos e mentalidades europeias, especialmente da cultura francesa. O início do século XX, portanto, conhecido como Belle Époque, a rigor, as duas primeiras décadas do novo século, representou o desejo do brasileiro de ser reconhecido através dos valores inerentes à modernidade. O brasileiro queria ser moderno, isto é, europeu.

Entretanto, esse objetivo só poderia ser alcançado de maneira concreta e segura livre de qualquer descuido histórico, através da campanha de saneamento básico encampada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz. O Brasil deveria conhecer seus males e enfermidades para combater por intermédio de políticas públicas as doenças que afligiam a sociedade, sobretudo, a parcela da população pobre e rural.

Bastos Tigres (1905), intelectual com veia irônica aflorada, comentava a respeito do símbolo nacional:

Ei-la: (perdoem-me que eu me arroje a tão bizzara insinuação). - A que mais calha ao Pavilhão é a cor de burro, quando foge...

Que burro (é útil que se note). É um animal manso e modesto. Sofre calado e sem protesto. A dura carga e o vil chicote. Nenhuma cor melhor assenta para a bandeira nacional: este país, como animal, sem protestar, a carga agüenta. E para símbolo? – resolvo segundo a minha fantasia. Que simbolize a oligarquia tentaculoso, enorme polvo.

Quanto à legenda, não se canse em procurá-la o Parlamento: este é o país – perna ao vento, do – deus-dará – da nonchalance!

E se a legenda é a coisa, enfim, em que o Congresso mais capricha, ponham- lhe a tal da lagartixa:

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Em autores diferentes como, Euclides da Cunha e Lima Barreto, aparece uma literatura vigorosa e ao mesmo tempo crítica da sociedade brasileira. Segundo Nicolau Sevcenko (1995, p. 148), Euclides “(...) delineia todo um programa de ação capaz de restaurar a moralidade, a dignidade e a racionalidade no país, entregando-o de volta ao seu destino natural”.

O Estado constrói uma política de higienização (o que resulta na Revolta da Vacina, em 1904) e na reforma, como dito, dos centros urbanos, principalmente no Rio de Janeiro, então Capital Federal. No desempenho do seu programa de melhoria citadina, o Presidente Rodrigues Alves, teve de vencer uma séria e tenaz oposição ao conhecido “Bota-abaixo”.10

A finalidade era reorganizar os hábitos sociais, incluindo padrões de cuidados pessoais vislumbrados na transformação urbana e nas mentalidades existentes, decretando o fim da ideia de cidade insalubre e insegura. Advogava-se que somente oferecendo a imagem de pleno progresso social, o Brasil, poderia drenar o estigma do atraso e do mundo incivilizado.11

Nicolau Sevcenko ressalta os quatro princípios essenciais que regeram a “metamorfose” da sociedade brasileira no início do século XX:

(...) a condenação de hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense (Sevcenko, 1995, p. 29-30).

Nesse cenário, acontece um surto de modernização e industrialização acompanhado pelo processo de imigração crescente como promessa de atualizar o país com o que se passava no mundo. Nas palavras de Hardman (1988, p. 40), observa-se “(...) a obsessiva construção de uma utopia da modernização”, responsável pela remodelação urbana e o “esboço de um horizonte técnico nas grandes cidades”. S. N. Eisensdadt, explica a extensão do processo de modernização:

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O Bota-Abaixo foi publicado, em 1904, por José Vieira e descrevia na forma de crônicas as transformações das mentalidades e reformas urbanas que a população das grandes cidades, sobretudo, do Rio de Janeiro vivenciou. O título do livro acabou por sintetizar todo esse momento ambivalente e conflituoso da sociedade brasileira na luta pela modernização social.

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A própria construção de Goiânia, capital de Goiás, em 1933, é derivada desse argumento. Afirmava-se à época que a cidade de Goiás, então capital do Estado (hoje patrimônio da humanidade) reunia condições climáticas insalubres. Além da falta de estradas que impediam a comunicação com o centro-sul do país.

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O processo de mudança para os tipos de sistemas sociais, econômicos e políticos que se desenvolveram na Europa ocidental e América do Norte, entre os séculos XVII e XIX, espalhando-se, então, por outros países europeus e, nos séculos XIX e XX, pelos continentes sul-americanos, asiáticos e africanos (Eisensdadt, 1969, p. 11).

Mike Featherstone define o conceito moderno de modernização claramente relacionado à expansão industrial, as reformas empreendidas pela ciência e a tecnologia que marcaram, especialmente, as sociedades ocidentais.

O termo modernização tem sido normalmente usado na sociologia do desenvolvimento para apontar os efeitos do desenvolvimento econômico na estrutura social tradicional e nos valores. A teoria da modernização é igualmente usada para referir os estágios de desenvolvimento social baseados na industrialização, o crescimento da ciência e da tecnologia, o moderno Estado nação, o mercado capitalista mundial, a urbanização (...) via um determinado modelo de base superestrutura, que certas mudanças culturais (a secularização e a emergência da identidade moderna, centradas em torno do desenvolvimento auto-centrado) resultarão do processo de modernização (Featherstone, 1990, p. 98).

Esta definição revela que num dado momento foi desenvolvido processos de racionalização que possibilitaram inovações significativas nos sistemas sociais, econômicos e políticos, que por extensão, atuavam decisivamente na destruição das bases de uma sociedade tradicional ou rural. Segundo Thomas Skidmore (1989) as transformações materiais impulsionadas por bases capitalistas acarretaram um crescente descontentamento com a política interna brasileira, alimentando o sentimento de ideais modernizantes. Nos dizeres de Astor Antônio Diehl (2002, p. 22), “O progresso como modelo de pensar é um fator social, um conseqüente fator mental dos princípios de conduta da vida”. Com mais ênfase o mesmo autor explica:

(...) a idéia de progresso está profundamente ancorada na mentalidade e nas estruturas coletivas do pensamento das culturas históricas dos países industrializados e mesmo naqueles que estão engatinhando no processo de modernização (Diehl, 2002, p. 21).

Esses processos alteraram as coordenadas espaço-temporais dos habitantes das grandes cidades, com intensas e complexas reformas urbanas, a instalação de bondes elétricos, automóveis e a expansão da rede ferroviária ocorrendo, como afirma Sussekind (1988, p. 33), uma “(...) difusão de tabuletas e anúncios pelas ruas e fachadas”, distanciando ainda mais a população de “uma visão estável do mundo, uma

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definição espiritualizada da arte e do artista”, o que representou a solidificação da técnica na sociedade brasileira.

Os intelectuais estão identificados com a linguagem que ressalta o sentimento de indignação moral devido à miséria, à baixa participação política do povo, à alta taxa de analfabetismo e também a necessidade de melhoria das condições de sobrevivência. No conto “O Pobre e o Rico”, de autoria de Cornélio Pires, o poeta regionalista ilustra essa questão:12

A vida de gente pobre padece; num tem artura... - A vida de gente rico, arregala e tem fartura. O rico levanta cedo, toma café com mistura. (...) Gente rico fica doente: vem logo o dotor e cura. - Quando o pobre fica doente: o remédio é sepurtura. - O pobre bebe guarapa, quage sempre sem doçura. (...) Na boca de gente rico, é oro na dentadura.

- A boca de gente pobre: é fechada noite escura (Pires, 2002b, p. 100 e 101).

Na perspectiva de Gilmar Arruda (2000), almejar construir uma nação moderna significava ter controle sobre o território e sua população. Para atingir esta finalidade, existiam enormes barreiras em face das numerosas diferenças internas, além do interior ser fracamente povoado, com uma população considerada indolente e refratária ao progresso. No campo da literatura é percebida uma clara inclinação aos procedimentos estilísticos que exaltam a oralidade, a incorporação de temas folclóricos e o mergulho no regionalismo. As transformações formais são acompanhadas de mudanças no conteúdo das obras, cada vez mais voltadas para temas populares e cotidianos que retratavam, em certa medida, a condição e o imaginário do país.

Sylvia Helena T. de A. Leite aponta metaforicamente para antinomias quase insuperáveis do cenário cultural entre os anos de 1900 ao final da década de 1930.

Nesse Brasil tão vasto, dilacerado entre mudança e o marasmo, convivem se desconhecendo as mais recentes modas e sofisticações importadas diretamente da Europa e bentinho de baeta13; a farpa engalanada e o trabuco sertanejo; o automóvel e o carro de boi; o apito da fábrica a festa do divino, a cartola e o panamá, o fraque e o chapéu de palha (Leite, 1986, p. 44).

A intelligentsia brasileira pretende falar em nome da nação, isto é, busca argumentar sobre as diretrizes que devem ser tomadas no escopo de superar as barreiras,

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Optou-se por manter a grafia original das palavras. Foi marca do estilo literário de Cornélio Pires reproduzir na forma escrita o linguajar do caipira.

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os entraves e obstáculos ao progresso. A fonte legítima para ultrapassar o dilema do atraso seria edificar valores modernos, para assim promover mudanças expressivas nas estruturas sociais e mentais da sociedade. A intelligentsia procura inserir no debate político a ideia do saneamento básico, campanhas pela alfabetização em massa, o incremento dos meios de comunicação nos centros urbanos, o investimento em transporte, a industrialização, entre outras. A crítica é marcada por uma espécie de condenação moral, desprovida de orientação prática, sobretudo, a partir dos anos 30.

O traço mais interessante [novamente destaca Martins] do que seria essa intelligentsia em formação (...) é justamente o seguinte: ela reivindica a liderança moral da nação, mas mostra-se incapaz de pensar uma nova sociedade. Tudo o que fazia a força da intelligentsia russa está ausente aqui: trata-se de uma intelligentsia desprovida de pensamento utópico. A utopia é substituída por uma esperança, relegada a um futuro impreciso: os mitos do “país do futuro” e do “gigante adormecido”; ou, então, toma a forma mistificada de louvores patrióticos a um país idealizado e imaginário (o ufanismo) (Martins, 1987).

As críticas decorrentes do processo de transformação social e econômico serão matizadas através da formação de tipo sociais que simbolizavam os dilemas a serem enfrentados. Nesta seara é que será popularizada a figura de Jeca Tatu capaz de sintetizar os destinos a seguir na luta pelo progresso brasileiro.