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CAPÍTULO II: MONTEIRO LOBATO E A BATALHA POR UM PAÍS

II. A marca da literatura lobatiana

Todavia, muito antes de sua ida para São Paulo, Lobato já começava a refletir sobre a vida no campo e os processos subjacentes à atividade rural, mesmo porquê acreditava que uma visão moderna acerca da cultura brasileira não poderia negligenciar os aspectos elementares da formação do povo brasileiro: sua raiz rural.

Inigualável, nesta seara, são as correspondências de Lobato e Rangel, fonte e testemunho da mais viva e profunda reflexão de temas dinâmicos da sociedade brasileira tratados ao longo de décadas. Brito Broca tece algumas considerações em relação à obra A Barca de Gleyre.

As cartas de Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, publicadas em volume em 1944, sob o título de A barca de Gleyre, vieram dar-nos o exemplo raro, entre nós, de uma amizade mantida, durante mais de quarenta anos, quase somente por correspondência. Pois desde que se separam em São Paulo, após haverem concluído o curso de direito e tendo cada qual seguido para seu lado, pouquíssimos foram as ocasiões em que se encontraram pessoalmente. (...) Ao calor dessa amizade essencialmente literária vão surgir dois livros dos maiores da literatura brasileira contemporânea: Urupês e Vida ociosa. Assistimos à germinação lenta de ambos: as hesitações, as advertências, através das quais se foram concretizando em realização nítida e perfeita (Broca, 1960, p. 197-198).

Ainda na fazenda Buquira, entre a lida do gado e da roça, entre a implantação de técnicas que pudessem aumentar a produtividade do solo e certo controle na degradação ambiental, Lobato, trancafiado em sua biblioteca, rasgava as noites redigindo cartas e enveredando no mundo da literatura. E mais que isso, incorporava gradativamente as preocupações com os dilemas mais custosos de sua sociedade e procurava pensá-los a partir de sua realidade cotidiana. A roça, a natureza, as coisas do ambiente bucólico que tanto o marcou na época de mocidade, ressurgem para o autor de Taubaté como fonte inspiradora e mais valorizada ao intelectual comprometido em revelar as verdadeiras cores do país. Em um ambiente seduzido pelo ideal nacionalista, Lobato adere sem pestanejar, à sua maneira, à crítica pouca afeita ao conservadorismo e lança ao vento da intelectualidade nacional uma nova forma de se pensar e traduzir o Brasil: a imagem da terra devastada pela miséria como uma categoria de identidade nacional imperiosamente necessitando de ser transformada.

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Lobato, como se vê na passagem seguinte, ataca inicialmente a importação de valores e ideias da cultura francesa e, com a mesma intensidade dessa crítica procura nas raízes do campo a explicação dos fenômenos brasileiros. Há nessa perspectiva um deslocamento do olhar que, à época, estava ligado aos dilemas da urbe.

Quantos elementos cá na roça encontro para uma nova arte! Quantos filões! E muito naturalmente eu gesto coisas, ou deixo que se gestem dentro de mim num processo inconsciente, que é o melhor: gesto uma obra literária, Rangel, que, realizada, será algo nuevo neste país vítima de uma coisa: entre os olhos do brasileiro culto e as coisas da terra há um maldito prisma que desnatura as realidades. É há o francês, o maldito macaqueamento francês (Lobato, 1968c, p. 362).

Em contato diário com a realidade do Vale do Paraíba como, por exemplo, o plantio do café, o uso das queimadas como técnica de preparação do solo e a prática do mutirão, o fazendeiro durante o dia incorpora à noite a visão do intelectual engajado nas coisas nacionais, exibindo-se, ainda que travestido de uma visão paternalista, como um legítimo porta-voz do imaginário rural. Não se autopercebia como intelectual dos excluídos, mas representante da crítica que via nas mazelas sociais do mundo rural às causas ao dilema brasileiro: o atraso da Nação. O país estava doente e devia ser curado pelo rearranjo do posicionamento intelectual ligado na denúncia das desigualdades sociais. Por isso, Lobato chama para si a responsabilidade de pensar a realidade que o constrange. Como assinala Sevcenko, neste momento, "o engajamento se torna a condição ética do homem de letras" (1995, p. 78-79).

Na prática epistolar continua descrevendo as primeiras impressões de seu projeto futuro a Rangel. É fato que a realidade posta o motiva a pensar as qualidades e atributos de seu povo, logo de sua pátria.

Não sei como vai ser esta obra. Talvez romance. Talvez uma série de contos e coisas com uma idéia central. Nessa obra aparecerá o caboclo como o piolho da serra, tão espontâneo, tão bem adaptado como nas galinhas o piolho-de- galinha, ou com no pombo, o piolho-do-pombo, ou como no besouro o piolho de besouro – espécies incapazes de viver em outros meios. O caboclo, piolho- da-serra, também é incapaz de outra piolhagem que não a serra. Já te escrevi sobre isto; e se a idéia volta e insiste, é que de fato está se gestando bem vivinha e será parida no tempo próprio (Lobato, 1968c, p. 362).

O estilo lobatiano foi se formando através da proximidade das relações sociais travadas no vale paraibano, um estilo gestado e produzido para se tornar significantemente expressivo no campo intelectual brasileiro. Revelava as aflições e os

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dilemas que sua sociedade deveria superar em prol da transformação socioeconômica do país. A esse respeito, a do estilo, aponta Cassiano Nunes, um dos maiores especialista da trajetória de Lobato.

(...) irrompe, vem à luz, como resultado de elaboração interna, gestação ou metabolismo. Essas idéias gerais a respeito da criação do estilo, entretanto, se enlaçam (...) com um pensamento significativo, dominador: o da enfatização da individualidade (Nunes, 1984, p. 52).

Tomado à luz de um pensamento que proclamava o uso da literatura como forma de se refletir a nacionalidade, levando-se a efeito os valores positivistas e liberais, Monteiro Lobato buscou subverter a lógica da produção intelectual do país através de um projeto audacioso que envolvia estilo próprio e práticas editoriais de grande vulto e trabalho. É certo que algo o incomodava e o constrangia. Como pensar a realidade brasileira sem mistificá-la como teriam feito os romancistas à maneira de José de Alencar? Como explicar o dilema do atraso e do grotesco numa sociedade de profundas riquezas naturais? Ou então como e por que a sociedade nacional não encontrava alternativas para superar suas mazelas?

A fagulha ou estopim que faltava a Lobato aparece quando menos esperava. Não poderia ser na cidade a fonte inspiradora da sua literatura, mesmo porque, segundo ele próprio, “A nossa literatura é fabricada nas cidades por sujeitos que não penetram nos campos de medos dos carrapatos” (1968, p. 364).21

Ela era forjada num ambiente rural que confinava, porque explorava a singularidade do povo brasileiro. Uma singularidade distorcida dada a condição existencial de penúria social e estereótipo da preguiça e da ignorância. Através das contradições imanentes do campo, ambivalências e traumas vivenciados por Lobato ainda num ambiente rural e atraso, inculca no espírito do criador de Jeca Tatu a marca indelével da crítica sagaz e contundente ligada à transformação da mentalidade do povo.

Mas, em 1914, queimadas irresponsáveis levam-no a escrever um forte protesto para a secção de “Queixas e reclamações” de O Estado de São Paulo. A direção do jornal, apreciando a catilinária, deu-lhe especial destaque numa página do

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Tanto Monteiro Lobato quanto Cornélio Pires atuam numa lógica às avessas da literatura de prestígio e reconhecimento literário. Ambos, a partir das especificidades da zona rural, pobre e esquecida do país, vão pensar os problemas que cercavam toda a nação. A preocupação com os dilemas do país não residia em solo urbano, mas nas zonas periféricas e não conhecidas. A fronteira do imaginário sobre o caipira estava sendo colocada à prova, pois os dois intelectuais paulistas apostavam no mergulho da realidade com fito à resolução dos males sociais.

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jornal. O sucesso dessa publicação mudou a vida de seu autor (Nunes, 2000, p. 11).

Queimadas incomodaram por completo o espírito do pensador inquieto, obrigando-o a denunciar o que via e vivia (no artigo Velha Praga, inicialmente, e logo depois, em Urupês; todos enviados para a seção de cartas de o Estado de São Paulo, em 1914) no campo como forma de superar o atraso e o retrógrado do que havia nas técnicas de plantio praticadas pela população rural e pobre brasileira; sem o conhecimento e possibilidade de implantação do que era produzido cientificamente nas cidades.

Nesse momento, no país, segundo Tamás Szmrecsányi (1990), a modernização tecnológica da agricultura esteve ligada a produtividade do trabalho e do capital numa perspectiva que permitia aos agricultores mais especializados disporem de novas técnicas para a agricultura.

Graciela Oliver e Tamás Szmrecsányi (2003), na mesma esteira, afirmam que essas técnicas implementadas na agricultura (compreendendo o preparo do solo, substituição de insumos e sementes, o crescimento do maquinário e qualificação da mão-de-obra, etc.) faziam parte de um conjunto de atividades bem conhecidas desde fins da década de 1920, e que possibilitava perceber o progresso técnico como um fato social detidamente ligado a uma condição estrutural, ao lado das estruturas fundiárias e de mercado. Daí não ser difícil entender a revolta de Lobato com as práticas de queimadas seculares realizadas pelo caipira.

Mas não simplesmente isso: tal crítica significava colocar na pauta da discussão um ideário ou projeto de Nação que estava sendo construído pelo autor. O Jeca Tatu será o protótipo da imagem a ser superada e combatida, uma representação que irá abrigar os dilemas nacionais referentes ao atraso cultural e, sendo assim, o caminho construído por Lobato na busca por um país comprometido com os ideais modernos de prosperidade.

Em carta a Godofredo Rangel, Lobato destaca a ideia basilar de sua obra: estudar o caipira, identificando-o aos verdadeiros problemas do país.

Já te expus a minha teoria do caboclo, com o piolho terra, o Porrigo decalvans das terras virgens? Ando a pensar em coisas com base nessa teoria, um livro profundamente nacional, sem laivos nem sequer remotos de qualquer influência européia. Muito possível que te vendo impresso n’O Paiz, a Inveja, essa fecunda espora, me force a escrevê-lo. Se não sair, será mais um casulo que seca sem dar borboleta (Lobato, 1951a, p. 326-327).

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O desejo de revelar aos brasileiros a realidade no interior do país é realizado tendo como pano de fundo toda a tradição literária anterior a Lobato. Este acaba por assumir o compromisso de descrever de maneira fidedigna e documental a realidade como é por ele experimentada, atribuindo a si o papel de oferecer aos leitores uma versão do caboclo não deturpada, romantizada e idealizada como supostamente teria aparecido nos romances de José de Alencar e Gonçalves Dias.

Lobato acreditava que Iracema ou Peri, personagens tão próprios de Alencar, não poderiam representar em absoluto o país, porque em nenhuma hipótese diziam ou conheciam das coisas nacionais. Bem entendido: a figura do índio simplesmente servia como ideal romântico – reificado – porque era nas mazelas sociais do caipira que o Brasil era percebido. O país de vasto território, mas com um povo esquecido, pobre e doente deveria conhecer essas mazelas com o objetivo superá-las. A figura de Jeca, indolente e vadio, vai então categorizar esse momento rompendo também com a suposta visão altiva do caipira que aparecia nas páginas de Bernardo Guimarães, Valdomiro Silveira e do próprio Cornélio Pires. Nas palavras de Dilma Castelo Branco Diniz “Trata-se, em suma, do problema da função da literatura na sociedade, um foco de tensões que se encontra no interior do círculo literário e que é decorrente de divergências na concepção do que seja a Literatura e seus limites” (1998, p. 260).

Lobato dá o tom nesta admirável, embora extensa passagem, talvez uma das mais conhecidas de sua obra. Nela é possível identificar a quem é endereçada sua crítica, autores e movimentos literários.

Esboroou-se o balsâmico indianismo de Alencar ao advento dos Rondons que, ao invés de imaginarem índios num gabinete, com reminiscências de Chateaubriand na cabeça e a Iracema aberta sobre os joelhos, metem-se palmilhar sertões de Winchester em punho. Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural como sonhava Rousseau, protótipo de tantas perfeições humanas que no romance, ombro a ombro com altos tipos civilizados, a todos sobreleva em beleza d’alma e corpo. Contrapôs-lhe a cruel etnologia dos sertanistas modernos um selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz, muscularmente, de arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci. Por felicidade nossa – e de D. Antônio de Mariz – não os viu Alencar; sonhou-os qual Rousseau. Do contrário, lá teríamos o filho de Araré a moquecar a linda menina num bom brasileiro de pau-brasil, em vez de acompanhá-la em adoração pelas selvas, como o Ariel benfazejo do Paquequer (Lobato, 1994, p. 165).

A busca pela identidade da sociedade brasileira era seu projeto em franca construção. O obstáculo maior era romper com a ideologia dominante da época marcada por valores europeus, sobretudo, franceses, além do alto índice de analfabetismo, a

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dificuldade de circulação da produção e o precário sentimento de democracia e pertencimento a nação. A seu favor estava como projeto intelectual, o uso de uma linguagem popular e coloquial; nacional e crítica dos dilemas que deveriam ser enfrentados em nome da valorização da cultura brasileira através da arte da escrita e, principalmente, da leitura. A literatura, assim sendo, assumia para Lobato a consciência de desbravar e conhecer o Brasil; a missão moderna que o intelectual combativo deveria trilhar no caminho da construção da nação.

Temos duas civilizações, ou melhor, duas culturas: a cultura importada, dos que vivem nas cidades, sabem ler e escrever e até livros escrevem! e a cultura local, filha da terra como um cogumelo é filho dum pau podre, desenvolvida pelos homens do mato – caboclo, o caipira, o jeca, em suma (Lobato, 1969, p. 29).

Vasda Bonafini Landers (1988) destaca que a obra de Lobato “(...) é o primeiro documento da nossa modernidade literária: aí a língua já é brasileira, de sabor inteiramente nacional e o herói (...) é caracteristicamente o homem da terra” (1988, p. 26). Brito Broca, de natureza pragmática, entende que:

Intelectual até a medula, na mocidade, Lobato não perde o contato íntimo com a existência, e o senso realista que lhe caracterizou a ficção já transparece, a todo momento, nessas páginas. Basta ver o seguinte: nas numerosas cartas datadas da fazenda, nunca se deixa levar pelo sentimento bucólico. Quando descreve o seu dia de trabalho na propriedade rural, não procura sublimá-lo com nenhum traço de poesia; é o fazendeiro que aparece em lugar do escritor (Broca, 1960, p. 197).

O primeiro resultado oferecido ao público e de certa maneira ao Brasil de seu projeto literário vem com a publicação da obra, Urupês, que reunia artigos e contos, muitos deles, já publicados na grande impressa paulista. Urupês, publicação, de 1918, tornar-se-á um dos livros mais conhecidos e comercializados de toda a história literária contemporânea e posterior de Lobato; obra que surgiu como projeto criador de uma nova visão crítica da sociedade.