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CAPÍTULO I: O CAMPO INTELECTUAL E O CONTEXTO DO PROGRESSO

II. Visões sobre o Brasil

No Brasil predomina até meados do século XIX o sentido de história como algo natural porque enfatiza os elementos ligados à natureza e às condições geográficas.

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Conhecer e estudar o país eram os sentimentos basilares dos intelectuais das letras nacionais permitindo o aparecimento de missões científicas realizadas por viajantes estrangeiros com o intuito de forjar um conhecimento sistemático sobre a nação. Tratava-se de abrir caminho sob um solo até então inóspito e desconhecido, lugar acolhedor de uma população completamente desprovida de um olhar urbano e moderno. Cresce ao longo do século XIX a prática de expedições realizadas por estrangeiros, intensificando a curiosidade e o interesse europeu sobre o Brasil, dirigindo seus esforços para a construção de conhecimento sobre a geografia, a geologia, a flora e a fauna, a etnologia, os usos e costumes de uma população eminentemente rural.

Franceses, principalmente, mas também russos, ingleses e austríacos como, Spix e Martius, John Mawe, Auguste Saint-Hilaire, Langsdorf, expõem narrativas e imagens que ajudaram a compor o retrato do país no exterior e em solo nacional. Com características próprias essas representações conduziram esses cientistas a promoverem uma visão europeia colonizadora acerca daquilo que se ia conhecendo e catalogando.

Além disso, contribuíram para a expansão de um padrão cultural e estético de viés europeu e imprimiram um gosto cosmopolita que dominou, porque atualizou os valores brasileiros em base moderna, toda a sociedade urbana letrada do século XIX – notadamente, por exemplo, na arquitetura, com a edificação de palácios e prédios públicos de característica francesa, no vestuário, nos hábitos alimentares e também nos aspectos relacionados à abolição e a república. Essas visões serão sentidas também nas primeiras décadas do século XX motivadas por discussões relacionadas ao progresso e ao processo de modernização.

Entre esses viajantes, destacou-se o botânico de origem francesa, Auguste de Saint-Hilaire, que segundo Antônio Cândido (1979, p. 43) “(...) dentre todos [os viajantes] o melhor conhecedor do Brasil”. Percorrendo os estados de Goiás, Minas Gerais e São Paulo, ainda parcos de civilização, com o objetivo de conhecer as peculiaridades culturais e naturais do país, Saint-Hilaire (1975) descreveu uma região visitada aos olhos do colonizador e que dominou o imaginário daquele contexto, e também dos anos futuros do novo século.

A Comarca de Paracatu não passa, pois, de um imenso deserto. (...) Creio poder afirmar, entretanto, que os habitantes da região que atravessei para chegar a essa cidade [Paracatu] são constituídos pela escória da Província de Minas. (...) Tempo virá em que cidades florescentes substituirão as miseráveis choupanas que mal serviam de abrigo (Saint-Hilaire, 1975, p. 6 e 14).

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Nota-se na referida argumentação uma nítida posição ideológica e cultural europeia que concebe as regiões interioranas acima destacadas como cenários da barbárie e do retrocesso, e credita à sua população a imagem do homem pobre (quando não caipira) atrasado, inculto e bárbaro. Em relação à população da cidade, rica e desenvolvida restava a imagem do sucesso; a alta-imagem da elite econômica inspirada por padrões de reconhecimento cultural vindos do estrangeiro. Em Urupês, Monteiro Lobato descrevia a questão de maneira inconfundível.

Vejam vocês! – disse Moreira, resumindo a opinião geral. – Moço, riquíssimo, direitão, instruído como um doutor e, no entanto amável, gentil, incapaz de tecer o focinho como os pulhas que cá têm vindo. O que é ser gente! (Lobato, 1994, p. 140).

Graça Aranha, um dos precursores do movimento modernista, em seu mais importante livro, Canaã, talvez tenha feito umas das descrições mais contundentes, reveladoras e chocantes a respeito da imagem vista por Milkau, personagem estrangeiro em viagem pelo interior do país.

(...) mirando-as atentamente, Milkau observou que essas casas eram moradas de gente preta, da raça dos antigos escravos, e advinhou-os batidos pela invasão dos brancos, mas ainda assim procurando os derradeiros e longínquos raios do calor humano, e deitando-se à soleira das cidades, para eles estrangeiras e proibidas (Aranha, 1981, p. 35-36).

Por isso, nos documentos existentes sobre o século XIX e início do século XX a presença do termo nacional em referência à população pobre brasileira que povoava o interior do país. Naquela época as classes privilegiadas procuravam a distância dos aspectos puramente nacionais, mesmo por que, a importação de valores europeus era a tônica privilegiada. Essa visão possibilitou a formação de uma imagem extremamente pejorativa em relação à população miserável brasileira, ideia que foi encampada pelas elites que julgaram necessário superar esse atraso, o ruralismo, e transformar os estilos de vida do caipira. Márcia Regina Capelari Naxara (1998) destaca a visão pouco nacionalista daquele contexto.

O Brasil foi visto, portanto, como um país despossuído de povo, ao qual faltava identidade para constituir e formar uma nação moderna. Tinha uma população mestiça, sem características próprias, que fossem definidas e homogêneas – não possuía face, não possuía identidade. De um lado, um caudatário de povos e raças diferentes que não formavam um corpo social; de outro, uma elite que

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não se identificava com as tradições de seu povo, distinguindo-se, e não o reconhecendo como tal (Naxara, 1998, p. 39).

Não resta dúvida, entretanto, que no decorrer do século XIX, vislumbrou-se ou se constituiu a perda significativa dos valores hegemônicos da metrópole portuguesa, cedendo a influência a bens materiais da cultura francesa. Como bem esclarecem Mariza Veloso e Angélica Madeira:

A França, naquele momento – apesar da supremacia econômica da Inglaterra – é considerada o centro difusor da cultura ocidental, assumindo mesmo o papel de país mediador entre o pensamento britânico e o alemão os demais países latinos do sul do continente europeu e os países americanos, familiarizados com a língua francesa. Conciliando a expansão econômica inglesa e a pretensão de hegemonia cultural da França, os intelectuais brasileiros acomodam todas as tendências ideológicas emergentes aos interesses locais. Desde a Revolução de 1789, considerado o evento político paradigmático da modernidade ocidental, a França se estabelece também como pólo de produção e de difusão cultural mais importante, como o parâmetro civilizatório universal (Veloso & Madeira, 2000, p. 67).

Quanto às ideias hegemônicas permanecem as posições liberais, tanto no espaço político como na esfera econômica, alternativa encontrada pela classe dirigente e sensibilizada por intelectuais, para instaurar um regime que pudesse garantir as liberdades econômicas e ao mesmo tempo, de maneira paradoxal, manter as desigualdades sociais numa sociedade ainda de base escravocrata.

Conforme essas ideias tomavam fôlego e adquiriam significados decisivos na sociedade brasileira uma revolução muitas vezes silenciosa estava sendo operada no plano das ideias, sobretudo, quando através do ideário liberal, levantava-se a bandeira do progresso, da modernização, do toque de civilização a que o Brasil estava sendo submetido – um avanço quase que linear na evolução histórica nacional. Por isso não ser difícil encontrar ressonâncias literárias e políticas de cunho nacionalista nas mentalidades da época, apregoando o mergulho na realidade brasileira para se conhecer e aprofundar as noções mais importantes da formação da pátria, que implicavam logicamente, na formação de um Estado independente, verdadeiro promotor do sentimento de pertencimento aos valores brasileiros, porque os de Portugal ou os de outros países europeus seriam renegados, em linhas gerais, ao passado. Nas palavras de Monteiro Lobato, grande expoente de temas progressistas e modernos na sociedade brasileira, a tônica residia na valorização dos atributos nacionais, como se vê:

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Ai! Quando nos virá a esplêndida coragem de sermos nós mesmos, como o francês tem coragem de ser francês, e o inglês a de ser inglês, e o alemão a de ser alemão? Quando? Quando? (Lobato, 2008a, p. 189).

A curiosa e humorística passagem de José de Alencar (1959), intelectual e político altamente consagrado em sua época é esclarecedora: “O povo que chupa caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco, a nêspera?

José de Alencar, engajado em construir um projeto de língua nacional emancipado da portuguesa, evidenciava a necessidade dos escritores românticos de se criar representações sociais ligadas à pátria e ao nativismo. Essa representação é marca indelével do século XIX e logo será substituída. Monteiro Lobato e Cornélio Pires, numa fase posterior a Alencar, terão grande contribuição no campo do pensamento social brasileiro ao proporem mudanças significativas na estrutura social explorando a ideia de progresso para superar o estágio parasital de sua sociedade.

A assimilação das ideias basilares à modernidade é caracterizada por tensões no volume e sentido atribuídos a elas. Ora representam algo novo para a intelligentsia brasileira, reelaborando e servindo de instrumento crítico ao conhecimento do progresso nacional; ora reproduzem os modelos europeus subservientes, guiando-se num horizonte balizado pelo saber científico. Para Elias Thomé Saliba (2002) a propósito desse tema:

O advento da República viria proclamar, inicialmente, uma atitude de repúdio difuso à vida rotineira e aos arcaísmos, que seriam a própria negação do progresso, como forma dos indivíduos desamarrarem-se dos modos provincianos e das sociabilidades geradas pela sociedade escravista (Saliba, 2002, p. 67-68).

A República, entendida sem uma visão idealizada e acrítica, cria uma cidadania precária, porque assentada na continuação das estruturas sociais, entristecida e diluída no federalismo altamente comprometido com a “política dos governadores” e conferindo legitimidade às velhas oligarquias, danificava o formalismo estatal e suas instituições. Sérgio Buarque de Holanda (1968, p. 68) problematiza a questão numa interrogação típica de seu pensamento: “Como esperar transformações sociais profundas em país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar”?

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(...) a república introduz os militares no poder, institucionaliza em seguida o regime das oligarquias e, em vez de empreender as reformas abstratamente reclamadas, adota práticas financeiras concretas que faziam e desfaziam novas fortunas do dia para a noite. O Brasil republicano ingressa no século e, em seguida, na “belle époque”; politicamente, sob o controle dos representantes das oligarquias agrárias e, socialmente, sob o signo do arrivismo e do espírito “nouveau riche” que se introduz nos meios urbanos. Um e outro apenas acentuavam ainda mais o contraste com as populações miseráveis das cidades e do campo (Martins, 1987).

Na atmosfera das mentalidades intelectuais e políticas havia o predomínio de certa visão pessimista em relação ao futuro do país que poderia ser sintetizada nos seguintes dilemas: o Brasil alcançaria status de país moderno? O brasileiro, povo multifacetado pelo processo colonizador, seria reconhecido como nação civilizada? O estigma do atraso econômico e social seria superado mesmo o país sendo formado por uma população eminentemente mestiça e colonizada?

E foi nessa profusão de ideias, modelos e narrativas sociais que a literatura foi se tornando ferramenta de ação e pragmatismo político porque servindo de elo entre os setores intelectualizados e aquela porção da população carente e ausente dos debates públicos, contribuiu para difundir, como esclarecem Veloso e Madeira (2000, p.77) “(...) os ideais laicos, progressistas e liberais, função social que exerce abertamente, rompendo com o que restava de Romantismo subjetivista, lírico e idealizado, que deveria ser substituído pela retórica da ciência, ou pela dos salões literários e políticos”.

Além da produção livresca, que adquiria paulatinamente um status de prestígio e reconhecimento social por parte daqueles literatos comprometidos com a ciência, apareciam com grande visibilidade cultural as revistas ilustradas, local de profundo debate e representantes de um momento histórico atrelado ao desenvolvimento de uma mensagem ideológica influenciada pela possibilidade do Brasil entrar no eixo da modernização.8 Logo, da prosperidade civilizatória que os ideais modernos ensejavam: a expansão econômica, pautada pela industrialização dos produtos, a urbanização das cidades, a instauração de uma mentalidade social que valorizava as potencialidades da pátria e, sobretudo, o ressurgimento ou a reconstrução da imagem do povo brasileiro representante da divulgação nacionalista.

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Folhetins como A Revista da Semana, O Malho (1902), Kosmos (1904), Fon-fon! (1907), Careta (1908), O Pirallho (1913), e A Revista do Brasil (1916) foram decisivos ao debate intelectual moderno, atuando na crítica e na difusão das ideias basilares da sociedade brasileira. Além de serem espaços por excelência da atuação profissional do intelectual. Como afirmava Olavo Bilac (1904, p. 10), “(...) jornal leve e barato, verdadeiro espelho da alma popular, síntese e análise das suas opiniões, das suas aspirações, das suas conquistas, do seu progresso”.

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Para isso não havia outro caminho a não ser fomentar na literatura e na própria sociedade a imagem do progresso para balizar o orgulho, a estima e o respeito aos elementos caros à modernidade brasileira. De pronto, modernizar, civilizar ou higienizar o Brasil oferecia o afastamento da ideia de atraso, de arcaico e grotesco, porquanto compunha uma visão moderna capaz de identificar os principais males sociais, econômicos e políticos a serem combatidos.

De maneira singular e nova o foco da análise social não incide mais sob o estoque ou prisma racial porque a explicação para o atraso não recai na miscigenação, e nem mesmo no clima do trópico ou na localização geográfica do país.9 A intelectualidade questionava os anseios inerentes à formação da nação. Para ser moderno e civilizado o país deveria construir de maneira impositiva um espaço profícuo para o crescimento dos atributos ocidentais de modernização, possibilitando a esperança da vida social.

Tobias Barreto, Sílvio Romero, Araripe Júnior, Joaquim Nabuco, Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha e tantos outros representaram o esforço de toda uma geração em pensar o Brasil em suas peculiaridades. Era um esforço conjunto de “universalização”; seus projetos visavam, em última análise, colocar o país no “nível do século”, superar o seu atraso cultural e acelerar “a sua marcha evolutiva”, a fim de que pudesse alcançar a parcela mais avançada da humanidade (Saliba, 2002, p. 34).

A geração intelectual que abrange esse período, jornalistas e pensadores, sobretudo, que viu nascer a República, esforçou-se vigorosamente para forjar um conhecimento sobre o país em todas as suas especificidades, pois o momento seguinte a Proclamação parecia uma discreta, rara e preciosa oportunidade histórica de o país se colocar no eixo do século, integrando-se de maneira vibrante e definitiva ao mundo ocidental e moderno.

Mas para isso os esforços à modernização cultural, a mudança de hábitos e de atitudes, deveriam ser concretas e viáveis, além de modernizar a própria economia. Como advertia Sílvio Romero (1979, p. 57), em 1907, “É impossível falar a homens que dançam”. Outra crítica de mesma importância e de característica contundente seria

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Para Oliveira Vianna o povo brasileiro era formado pelos fatores mesológicos e étnicos que estavam acoplados no conceito de raça. Nesta ilustrativa citação Vianna dá o tom de seu pensamento altamente prestigiado nas primeiras décadas do século XX: “Mesmo que fossem homogêneos os hábitats e idêntica por todo o país a composição étnica do povo, ainda assim a diferenciação era inevitável; porque levando somente em conta os fatores sociais e históricos – já é possível distinguir, da maneira mais nítida, pelo menos três histórias diferentes: a do Norte, a do Centro-Sul, a do extremo Sul, que geram, por seu turno, três sociedades diferentes: a dos sertões, a das matas e a dos pampas, com os seus três tipos específicos: o sertanejo, o matuto, o gaúcho” (1987, p. 31).

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incentivada por Alberto Torres (1965, p. 297), podendo ser entendida como um desabafo moderno: “Este Estado não é uma nacionalidade, este país não é uma sociedade; esta gente não é um povo. Nossos homens não são cidadãos”. Juntas representavam um imaginário coletivo ansioso por mudanças significativas na estrutura e na dinâmica social.