• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II: MONTEIRO LOBATO E A BATALHA POR UM PAÍS

V. Objetivos à vista

Monteiro Lobato esteve nos anos de sua atuação no campo cultural brasileiro imbuído de um espírito público e foi capaz de se indignar frente à situação social vivida

106

por sua sociedade, uma realidade desigual na extensão dos serviços públicos prestados à população pobre e carente, marcada pelo peso das relações de compadrio. O autor explicava os males sociais que afligiam o país através da crítica sistêmica às mentalidades de cunho passadista, a mesma que visava resguardar a cultura regional a partir do caipira, conservando suas tradições e sua condição existencial. O caipira na argumentação lobatiana devia ceder lugar aos atributos modernos porque de suas tradições inóspitas urgia convidar o Brasil a se modernizar.

A trajetória lobatiana propunha uma mudança de olhar permitindo ao país conhecer os problemas sociais. Incomodava em Lobato uma visão idílica e desprovida de senso prático, enaltecida pelas mentalidades letradas de sua época que não apresentava uma orientação analítica à constituição de uma civilização moderna. Para isso a receita lida nas letras lobatianas tratava de maneira inequívoca de instaurar uma crítica pouca afeita à moderação e ao comodismo. Atacava-se toda a tradição política e literária anterior à sua e que ressoava nos círculos privilegiados de poder. A tradição romântica, sem conflito ou pelo menos eufemizada na extensão do debate social, não resistiu muito tempo à peleja incentivada pelo pai de Emília. A realidade bruta do caipira, o algoz do progresso, devia ser peça de análise.

O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; o ocara virou rancho de sapé: o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxada; o boré descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta ao peito (Lobato, 1994, p. 166).

O Jeca Tatu, destarte, bem diferente da visão romântica, tinha a imagem do homem preguiçoso e indolente, simples e pobre, um verdadeiro sinônimo de atraso e, portanto, totalmente desprovido da tematização literária ainda vigente. Lobato fazia uma generalização proposital do caipira que tivera contato no interior do Estado de São Paulo, o personagem do alicerce de sua crítica.

Que decepção! Um bichinho feio, magruço, barrigudo, arisco, desconfiado, sem jeito de gente. Algo horrível. Por isso mesmo, o seu nome ficou na minha cabeça (Lobato, 1968d, p. 191).

O segundo livro de Lobato, Cidades Mortas, de 1919, também colocava em evidência o Jeca Tatu, personagem que ficaria imortalizado no cinema pelo ator e diretor Amácio Mazzaropi, a partir da década de 50, além de fornecer uma perspectiva

107

sombria e resignada da crise do café que assolou o Vale do Paraíba. Lobato descreve com muito rigor duas cidades fictícias: Oblivion e Itaoca. Nelas o tempo havia parado. “O silêncio em Oblivion é como o frio nas regiões árticas: um permanente” (1995, p. 29) que de maneira análoga remetia a uma fotografia do real em tom jocoso e traumático. Todos os contos desse livro foram metodologicamente pensados para dar ênfase aos traços indolentes da população interiorana, suas tradições e crenças populares que demarcavam a atmosfera da roça: uma visão negativa de sociedade.

O realce e a dedicação de Lobato em considerar a figura do Jeca como a multiplicação do Brasil interiorano tinha por objetivo descrever uma realidade nem um pouco confortável, mas que de todo modo, estava posta, e balizava seu olhar em relação ao futuro. Romper com o atraso era explorar a deficiência do caipira porque dele insurgia os males que afetavam o progresso brasileiro.

Entretanto, é em Ideias de Jeca Tatu, também de 1919, que Lobato se concentra em escancarar em absoluto a imagem do caboclo. Livro marcante, além de continuar com o debate em reação ao Jeca, trazia crônicas que discutiam as artes plásticas, a estética, a influência francesa na cultura, a política e a defesa intransigente da brasilidade. O Brasil devia seguir o rumo da história sem copiar tendências e modismos.

Essa idéia é um grito de guerra em prol de nossa personalidade... A corrente contrária propugna a vitória do macaco. Quer, no vestuário, a cinturinha de Paris; na arte, “aveugle-nés”; na língua, o patuá senegalesco. Combate a originalidade como um crime e outorga-nos, de antemão, o mais cruel dos atestados: és congenialmente incapaz duma atitude própria na vida e nas artes; copia, pois, ó, imbecil! Convenhamos: a imitação é, de feito, a maior das forcas criadoras. Mas que imita quem assimila processos. Quem decalca não imita, furta. Quem plagia não imita, macaqueia (Lobato, 2008, p. 23).

Em tempo, defender uma ideia como esta contida em um dos prefácios mais conhecidos da história literária brasileira era a própria aceitação do reconhecimento das mazelas do país. O tempo urgia e o “gigante adormecido” deveria acordar ao progresso.

O que distinguia Monteiro Lobato da maioria dos escritores de seu tempo residia na construção de um projeto intelectual preponderantemente literário, como atesta Enio Passiani (2003). Lobato valorizava o que havia de mais essencial na cultura brasileira: a língua, fonte de transformação social. “Como é viva a língua do povo! E como é fria, morta, a língua erudita, embalsamada pelos grandes escritores!” (1968d, p. 62), dando vida a um estilo próprio da nação em formação, livre de influência estrangeira. Para tanto era necessário escrever textos acessíveis ao grande público com “(...) estilo que se

108

revele mais afim com o sentimento do país, sua vida, seu passado, suas tradições. (...) Porque é lógico, é irrefragável, que não pode ser o estilo histórico da China, nem o da Turquia, nem o da Rússia (2008, p. 58-59).

Lobato propõe então uma escrita próxima, acessível e enxuta suprimindo todos os excessos que pudessem comprometer a inteligibilidade dos leitores. Era frequente o uso de neologismos e de expressões regionais sem perder, contudo, uma posição ativa, crítica e militante destinada a elucidar os problemas da nação. Para Cassiano Nunes (1984) as características da prosa lobatiana eram: “(...) a eliminação do não-essencial para conquista de concentração; a condenação dos maneirismos, afetações ou abastardamentos; a dinamização da frase por meio do emprego das formas simples de verbos e, finalmente, o emprego de comparações visuais, extraídas da vida quotidiana familiar” (1984, p. 61). Mas por quê? De acordo com Vasda Bonafini Landers (1998), Lobato foi um dos primeiros intelectuais da época a se preocupar em fazer do povo parte essencial do processo da construção literária, transformando-o em público leitor, maneira pela qual, poderia possibilitar em tese a participação da massa nas decisões políticas essenciais.

Com um projeto bem definido de colocar o país no eixo da transformação social, Lobato passou a atuar na linha de frente dos intelectuais ligados a instaurar as bases do progresso, mesmo que fosse necessário, segundo ele próprio “revirar este país de pernas para o ar – e civilizá-lo à força” (1968d, p. 330).