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CAPÍTULO I: O CAMPO INTELECTUAL E O CONTEXTO DO PROGRESSO

IV. O debate acerca dos tipos sociais

Na busca incessante pela representação metafórica do povo brasileiro perduram no imaginário coletivo, na literatura e até mesmo nos ambientes políticos, nas duas primeiras décadas do século XX, as discussões inerentes ao aspecto identitário do brasileiro. Essa representação estava acoplada, em linhas gerais, ao morador do interior do país, um povo sem qualidades que se contrapunha à exaltação dos atributos urbanos e de base moderna. Segundo Brito Broca, famoso ensaísta do pensamento social brasileiro, era nas raízes das tradições seculares do país que residiam as principais qualidades do homem daquele período.

A reação nacionalista, que começou a verificar-se na literatura brasileira em 1910, mais ou menos, e atingiu o ápice por volta de 1920, tendia para um conceito idealista da vida rural, que implicava uma supervalorização do caipira, como protótipo das virtudes brasileiras, em contraste com os vícios e as perversões do cosmopolitismo urbano (Broca, 1960, p. 120).

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Dessa constatação surgiu a necessidade de se criar uma narrativa sobre tipos nacionais modernos capazes de livrar do país as interpretações pessimistas em relação ao seu futuro. O velho mundo rural seria combatido por ser formado pelo grotesco abrindo caminho à modernidade triunfante que por intermédio do saber formal propunha uma nova realidade.

Zygmunt Bauman (1999) acredita que a modernidade é um período de controle e dominação marcada por relações sociais travadas no ritmo da indústria, do transporte e do progresso. Essa discussão tem implicações lógicas em relação ao aparecimento dos tipos sociais na medida em que foram construídos tendo em vista a crítica aos estratos sociais menos favorecidos da sociedade. Entre sua superação e os destinos do país estava o diálogo com a ciência numa condição de amparo à modernidade.

A ciência moderna nasceu da esmagadora ambição de conquistar a Natureza e subordiná-la às necessidades humanas. A louvada curiosidade cientifica que teria levado os cientistas ‘aonde nenhum homem ousou ir ainda’ nunca foi isenta da estimulante visão de controle e administração, de fazer as coisas melhores do que são (isto é, mais flexíveis, obedientes, desejosas de servir) (Bauman, 1999, p. 48).

O personagem que se fez presente nas letras brasileiras e no imaginário social, o Jeca Tatu, famoso, irreverente e idealizado, por alguns, combatido, estereotipado e renegado, por outros, teve grande repercussão na vida literária, delineando projetos intelectuais autônomos de diferentes interpretes da cultura nacional.

Militante, combativo, ativista até, homem de ação, Monteiro Lobato projetou na literatura uma imagem pessimista em relação ao caipira. Com o propósito claro de incendiar o Brasil pelos ideais modernos, defendia a modernização das estruturas sociais, quase a toque de caixa quando denunciava na forma de artigos enviados inicialmente ao jornal O Estado de São Paulo as condições do homem do campo, a destruição das matas e das reservas naturais.

O personagem do Jeca Tatu, construção literária lobatiana hegemônica, anterior ao modernismo, figurou como o protótipo cultural a ser superado com a finalidade de romper com as amarras do atraso e, sendo assim, colocar o país em sintonia aos anseios modernos. Surge nessa época a necessidade de construir tipos sociais a serem cultuados pela civilização brasileira e, de maneira contrária, tipos a serem superados.

Esse clima de inquietações e interpretações sobre o Brasil, de característica particular ou universal, marcou as letras nacionais abrangendo os aspectos sobre “o que

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foi, o que tem sido e o que poderá ser o país”. Esta indagação resultou na ideia de que o Brasil era uma nação em busca de conceito e de direção, e o intelectual moderno deveria acenar em relação aos rumos a serem seguidos. Num movimento voltado para o desvendamento e conhecimento da realidade, a Belle Èpoque e depois o modernismo, inauguraram um novo olhar sobre o país. Um olhar que procurou desvendar, entender, explicar e formular teorias a respeito do brasileiro. Nas palavras de Naxara (1998, p. 41), “Identidade, nacionalismo, civilização e progresso tornaram-se palavras-chave para o entendimento e para a procura de soluções”.

Por sua capacidade crítica e de grande importância para as Ciências Sociais, é de grande valia mencionar a opinião de Octavio Ianni, que mapeia os diversos tipos sociais surgidos na sociedade brasileira, reflete:

Sim, o que se depreende dos múltiplos tipos que povoam o pensamento social brasileiro, em suas versões científicas, literárias e dos diferentes setores sociais, em suas atividades e fabulações, é que levam consigo uma forte conotação cultural, com acentuados ingredientes psicossociais. Aí entra o “homem cordial”, no sentido determinado pelas emoções, a subjetividade, o coração (córdis), um tanto alheio ou mesmo avesso ao “racional”. Aí também entram o “bandeirante”, o “índio”, o “negro”, o “imigrante”, o “gaúcho”, o “sertanejo”, o “seringueiro”, o “colonizador”, o “desbravador”, o “aventureiro”, “Macunaíma”, “Martim Cererê”, “João Grilo”, a “preguiça”, a “luxúria”, “jeca tatu”, as “três raças tristes”, a política de “conciliação”, a tese das “revoluções brancas” (Ianni, 2002, p. 8-9).

Não é de se estranhar que no ano de 1908, a revista Fon-Fon! veiculou um debate sobre qual seria a melhor representação do Brasil e do brasileiro. A imagem do caipira foi logo desautorizada e combatida porque significava a aceitação dos aspectos negativos diante dos quais a sociedade não poderia capitular e além do mais, admitir.

Grande parte da intelligentsia brasileira concentra sua atenção à análise da situação social do país, e quando fizeram, acabaram por tentar superar velhas imagens do cotidiano. A imagem do Jeca, que já se formava no imaginário coletivo desde meados do século XIX, foi questionada. Em seu lugar, parte significante da intelectualidade brasileira propunha uma representação que fosse condizente à expressão de um povo moderno e com os olhos no futuro, ou que pelo menos não estivessem à margem da formação de um parque industrial, (que só se forma de maneira sistemática e racional a partir da década de 1930).

Neste sentido, a imagem do Jeca Tatu como protótipo a ser superado parece ser o maior ponto de inflexão do debate. Mesmo perdurando um posicionamento hegemônico à época desfavorável ao caipira, parcela significativa de intelectuais esteve

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em sua defesa; sinal de um ambiente social em profunda reflexão quanto aos aspectos mais caros da sociedade.

Fig. 1 – Óleo sobre tela, Caipira picando fumo, de 1893, do pintor de formação acadêmica Almeida Júnior (1850-1899). Primeiro artista plástico a introduzir os aspectos da vida rural na pintura.

Deodato Maia, contemporâneo do debate, afirmava que “um povo culto qual o nosso deve ter uma representação única e positiva como as figuras simbólicas de Tio Sam e John Bull”.14

K. Lixto, renomado caricaturista da época se posicionou dizendo que “(...) não devemos mais atirar em meio a outras nações vestidas o nosso botocudo envergonhado e nu do passado, tendo na mão o arco ou tacape, enquanto os circunstantes se apresentam com aperfeiçoados Schmit and Wesson ou canhão tiro rápido”.

Essas duas figuras da inteligência brasileira representavam um ideal coletivo que visava construir modelos identitários relacionados a uma imagem arguta, positiva e moderna do povo brasileiro. Ao índio, personagem altamente explorado pela literatura romântica cujos romances de José de Alencar – Iracema ou O Guarani – repercutem até os dias atuais, ou os inúmeros trabalhos, por exemplo, de Catulo da Paixão Cearense, Valdomiro Silveira, Cornélio Pires, a literatura macarrônica de Juó Bananére, que exploravam as dimensões culturais, folclóricas e religiosas do caipira, foram combatidas a exaustão. Admitir trilhar o caminho do progresso, da civilização, da expansão industrial e urbana do Brasil significava instaurar valores e ideais modernos, nos quais,

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John Bull foi criado no século XVIII, por J. Gilroad e J. Arbuthnot, enquanto o Tio Sam, apareceu em 1834, pelo desenhista Thomas Nast.

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logicamente eram contrários ao culto de uma literatura de base regional e, diga-se também, popular.

Não é difícil perceber então que a representação do caipira esteve pulverizada em diversos trabalhos, sobretudo, entre os anos de 1900 a 1920, na literatura brasileira.

Oliveira Vianna apontava que o caipira era uma das imagens do povo brasileiro, porque as chamadas populações interioranas compunham as matrizes da mentalidade nacional. No dizer de Vianna (1987, p. 37), “O objetivo das preferências sociais (...) é o domínio rural com seus gados, os seus canaviais, os seus cafezais, os seus engenhos, a sua escravaria numerosa (...). Esse é o orgulho nacional”.

Caio Prado Júnior (1957, p. 105), num contexto social bem diferente ao de Oliveira Vianna, acreditava que o caboclo “(...) formava uma coletividade em movimento perpétuo e incapaz por isso de empreender e terminar qualquer realização de vulto”. Além disso, a representação estereotipada, não raro, no ressentimento, na negatividade ou na degradação integrava a estrutura de recusa das classes dominantes em aceitar a maioria da população brasileira como parte de um mesmo universo social.

O concurso incentivado pela revista Fon-Fon!, outrora mencionado, ao que tudo indica não se concretizou, mas a procura por uma representação identitária do brasileiro durou todo o período da Belle Époque. Nela ficou eternizada a figura do Jeca de Lobato. Em 1931, nove anos depois da Semana de Arte Moderna, Juó Bananére (1931), pseudônimo de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, intelectual ligado ao humor, conhecido nos círculos literários e parceiro de Cornélio Pires em “Cartas Caipiras”, coluna da revista “O Pirralho” de propriedade do modernista Oswald de Andrade, ainda questionava quem era o povo brasileiro em seu estilo inconfundível, a literatura macarrônica:

1. U Brazile é único e invisive.

2. U tipu sociali braziliano é uma mistura di terra, di ingonomia i di storia. 3. U Brasile stá sitoado nu meio do o Mondo.

4. U uómo brasiliêre é figlio di tuttas razza: negro, índio, macaco, intaliano, ingreiz, turco, cearensi, parnanbugano, gauxo, afrigano i allamó. (Nota du traduttore – grazias a deuse io sô intaliano i sô figlio di mio paio e di mia maia i di maise ningué).

5. Inzisti uma tradiçó morale braziliana chi é priciso adiscobri. Vamos apricorá (Bananére, 1931, p. 2).

Ressalta-se que a cartografia do brasileiro mesmo depois do modernismo não encontrou projeção numa identidade específica. Entretanto, o Jeca, Tibúrcio, Pedro Pichorra, João Grilo, o sertanejo de Euclides da Cunha, os personagens de Menotti del

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Piccha; Macunaíma, de Mário de Andrade, o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda, e tantos outros, não são inocentes e desprovidos de significados. Esses personagens revelam as configurações e os movimentos da sociedade brasileira em constante transformação, e principalmente a impossibilidade de fixar tipos sociais numa história social calcada pelo estímulo à multiplicidade. Conforme Antônio Arnoni Prado:

A definição de um nacionalismo dirigido pela razão e não produto da afetividade individual, coexiste agora com a tarefa inadiável de eliminar a nossa inferioridade transitória, para fazer emergir a nossa vocação de domínio, que está, afinal, no fundo de toda ação política (Prado, 1983, p. 24).

Seja como for, o aparecimento desses tipos evidenciam as preocupações modernas ligadas às campanhas de mobilização nacionalistas, educacionais, sanitárias e o drama da implantação de um parque industrial no território brasileiro.

O nacionalismo, agora com um forte sentido mobilizador, fornecia uma espécie de nova missão aos intelectuais brasileiros. Os dilemas de representar a nação pareciam esvair-se frente à urgência de salvar o país, transformando-se em pontos de uma ordem do dia, em bandeiras de mobilização e de engajamento: no front externo, a campanha pelo serviço militar obrigatório; no front interno, as intensas campanhas religiosas, sanitárias e educacionais. Eram estas que, a longo prazo, deveriam se converter em instrumentos mais adequados para moldar aquela já rarefeita “comunidade pragmática” chamada Brasil (Saliba, 2002, p. 151).

Em muitos casos, tipos como os do “Jeca Tatu”, “o homem cordial” ou “Macunaíma” são vistos enquanto signos da revolta, da crítica e da denúncia social rigorosa. Demonstram o que deve ser condenado, execrado, posto à margem, mas também os conflitos com que se defrontavam os intelectuais contemporâneos daquele contexto. Daí por que o Jeca sofre tanto da crítica que lhe escapa a consciência e a maturidade intelectual. Era personagem real que conseguia reunir as mais diferentes opiniões e visões modernas a seu respeito, garantia da confusão social e literária em que se encontrava a figura do nacional.