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PARTE II – ANTÍGONA NO CONTEXTO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

3.6 ANTIGONEMODELL 1948

Como já dissemos anteriormente, apesar de não ser um dos trabalhos mais consagrados de Brecht, Antígona é um dos poucos que possuem um modelo de representação. Brecht justifica a elaboração desse modelo no terceiro dos sete tópicos do Prefácio de Antigonemodell 1948:

Já que não trataremos, propriamente, de experimentar uma nova dramaturgia, mas, sim, de experimentar uma nova forma de representação numa peça antiga, a nova versão da Antígona não pode ser entregue aos teatros, como habitualmente, para que façam dela uma livre adaptação. Foi elaborado um modelo obrigatório para a representação, constituído por um conjunto de fotografias acompanhadas de notas explicativas. (BRECHT, 2005, p. 208, grifo nosso)

Essa explicação do dramaturgo alemão nos mostra que o mais importante para ele, em sua versão de Antígona, era justamente a maneira de representar, a forma como essa tragédia antiga poderia ser levada aos palcos naquele momento. Como tentamos demonstrar anteriormente, Brecht possuía um projeto simultaneamente estético e político que era trabalhado por ele em todas as suas peças. Assim, se à primeira vista não há grandes alterações na estrutura do texto alemão com relação ao texto grego, esse modelo de representação pensado por Brecht torna-se fundamental para entendermos a sua proposta nessa reescrita. Embora afirme ser um “modelo obrigatório”, mais adiante Brecht (2005, p. 208; 210) esclarece que “a sobrevivência de um modelo como este depende, naturalmente, das possibilidades de imitação e de variação que oferecer” e que “o propósito do modelo não é propriamente fixar uma forma rígida de representação – muito pelo contrário!”. O dramaturgo estimula os teatros a utilizá-lo justamente com a possibilidade de perceber suas incompletudes e modificá-lo de acordo com as necessidades do momento e de uma nova apresentação.

Nesse sentido, parece-nos lamentável que o Modelo não tenha sido traduzido integralmente e publicado em nenhuma língua255, tendo ficado restrito ao idioma alemão. O acesso que temos em português é apenas ao Prefácio do Modelo256, que dá uma ideia geral da representação, mas não nos deixa conhecer em detalhes a riqueza do pensamento de Brecht para essa versão de Antígona. Gostaríamos de apresentar aqui a estrutura geral desse modelo e analisar sua importância para esta versão de Brecht para Antígona.

Temos no Modelo, inicialmente, um Prefácio, divido em sete partes numeradas, que, como dissemos, dão uma ideia geral sobre o porquê da escolha de Antígona e da escrita de um modelo, sobre o arranjo cênico da peça, o estilo de representação, além de outros comentários sobre a representação feita por Brecht em Chur. Depois desse Prefácio, o Modelo segue com indicações para o prólogo da peça e para a peça propriamente dita, que compreendem três tipos de texto: indicações precisas para versos específicos; comentários gerais sobre as cenas; e um jogo de “perguntas” e “respostas”, em que são comentadas cenas específicas ou pensamentos gerais de Brecht sobre a representação. Comentamos, a seguir, mais detalhadamente as partes do Modelo.

Basicamente, na primeira parte do Prefácio, Brecht expõe seu pensamento sobre a “superação do nazismo” e sobre como a arte deve dar conta dessas ruinas, passando “do estado de expectativa (esperando ser tratada) à ação” (BRECHT, 2005, p. 205), e conclui: “pode-se, pois, dar-se o caso de, numa época de reconstrução, justamente, não ser fácil fazer arte progressiva; este fato, porém, só deveria servir-nos de estímulo” (BRECHT, 2005, p. 206). Essa primeira parte reforça nossa hipótese sobre a contextualização da peça em Berlim em 1945, pois Brecht está aqui preocupado com os rumos que serão tomados depois da guerra, com suas ruínas – e isso implica em compreender o contexto da guerra.

Na segunda parte do Prefácio, Brecht justifica a escolha de Antígona, afirmando que “do ponto de vista do tema, podia conseguir uma certa atualidade e, do ponto de vista da forma, levantar problemas interessantes” (BRECHT, 2005, p. 207). Nesse segundo ponto, é interessante notar que, para Brecht, importa o fato de o drama de Antígona se passar no plano dos governantes, pois, como já apontamos anteriormente, é aí que ele pode mostrar as

255 Em 25 de novembro de 2016, o Brecht Archiv, de Berlim, nos informou, por e-mail, que “provavelmente não

há nenhuma tradução completa do Antigonemodell 1948”.

256 Traduzido por Fiama Paes Brandão e publicado no livro Estudos sobre Teatro (BRECHT, 2005, p. 205-215).

Curiosamente, mesmo que o texto desse Prefácio fale que o modelo é “constituído por um conjunto de fotografias acompanhadas de notas explicativas” (p.208), nenhuma imagem é inserida nessa publicação. Nossa hipótese para isso é que o livro base dessa tradução (Schriften zum Theater) continha apenas o texto do Prefácio. De toda forma, seria mais proveitoso para o leitor brasileiro uma edição que desse, ao menos, uma ideia geral de como se organiza o modelo como um todo, como fazem, para o inglês, Kuhn, Giles e Silberman (2015), em Brecht on performance.

contradições dos poderosos, sobretudo nos interesses envolvidos em um contexto de guerra. Além disso, é nesse momento que ele vai falar da forma do drama helênico, que apresenta diversos elementos de distanciamento, na passagem já mencionada no item anterior. Na terceira parte, como já dissemos, ele justifica a escrita de um modelo para Antígona, sobretudo em uma época “que só aplaude o que é ‘original’, ‘sem-par’, ‘nunca visto’ e que exige que tudo seja ‘único’.” (BRECHT, 2005, p. 209).

Gostaríamos de nos deter um pouco mais na quarta parte do Prefácio, em que Brecht comenta “o arranjo cênico de Neher para Antígona”. Caspar Neher (1897-1962), cenógrafo alemão, trabalhou com Bertolt Brecht em diversas produções, como Baal, Ascenção e queda da cidade de Mahagonny, Mãe coragem, e foi qualificado pelo dramaturgo como “o maior cenógrafo do nosso tempo” (BRECHT, 2005, p. 244). Neher parece partilhar com Brecht uma visão sobre o teatro que coloca o cenário a serviço do objetivo estético e político do trabalho. Não se trata de um cenário meramente decorativo, pois Neher “é um grande pintor. Mas é, sobretudo, um hábil narrador. Sabe, como ninguém, que tudo o que não esteja a serviço de uma história a prejudica.” (BRECHT, 2005, p. 243). Vejamos, então, parte do arranjo proposto pelo cenógrafo para Antígona, nas palavras de Brecht (2005, p. 210):

Diante de um semicírculo de biombos cobertos de juncos pintados de vermelho, bancos compridos onde ficarão os atores que aguardam a deixa. Os biombos têm no meio uma fenda, onde foi colocada a aparelhagem de pick-up, que é utilizada à vista de todos, e pela qual saem os atores quando terminam a sua atuação. A área de representação é delimitada por quatro estacas, das quais pendem caveiras de cavalos. Em primeiro plano, do lado esquerdo, vemos uma banca com os acessórios necessários para a representação. (...) Para o prólogo, fez-se descer, com o auxílio de arames, uma parede caiada de branco. (...) Por sobre a parede é descido, no início da cena, um letreiro com a indicação do local e do tempo. Não há cortina.

Por essa descrição, percebemos que, assim como todo o projeto estético de Brecht, há aqui uma intenção de romper com a ilusão da representação. Não há cortina, todas as trocas cênicas, a movimentação dos atores, os acessórios que serão utilizados, os equipamentos de som, tudo está aparente desde o início e as ações de contrarregragem são executadas aos olhos do público. O próprio Neher comenta suas escolhas, no programa da apresentação em Chur, afirmando que Brecht buscou, em sua versão, “despir ‘Antígona de Sófocles’ dos aspectos mitológicos e de culto”257, e que, dentre outras coisas, seu projeto cenográfico elimina a cortina, “que só serve para conferir à cena o misterioso, o encantamento, o sobrenatural, de

que o modo de representação não ilusionista não necessita.”258 (NEHER apud HECHT, 1988, p. 178).

FIGURA 4 – Desenhos de Caspar Neher para Antígona de Sófocles de Brecht. Fonte: HECHT, 1988.

Sobre a movimentação dos atores, que estarão sempre à vista do público, Brecht comenta, durante um dos jogos de “pergunta” e “resposta” do Modelo:

Pergunta: Como os atores que ainda não estão em cena têm que se portar? Resposta: Aqueles atores nos bancos ao fundo, que esperam sua entrada, podem ler, fazer pequenos movimentos, como se maquiar ou sair discretamente. Feito da maneira correta, isto incomoda tão pouco quanto incomodou o clique audível de três câmeras durante a estreia em Chur. Os atores que tenham terminado seu papel afastam-se em definitivo.259

258 „der ja nur dazu dient, der Bühne das »Geheimnisvolle«, »Zaubermäβige«, »Überwirkliche« zu verleihen, das

sie bei nichtillusionistischer Spielweise nicht benötigt“.

259 „Frage: Wie haben sich die Schauspieler zu verhalten, die gerade nicht spielen? / Antwort: Die auf den

Bänken im Hintergrund ihre Auf-tritte abwartenden Schauspieler können lesen, kleinere Bewegungen ungeniert machen, etwa sich schminken oder unauffällig abgehen. Das stört bei richtiger Spielweise so wenig, wie das

Os atores que não estão em cena continuam fazendo pequenos movimentos, se preparando para estar em cena, de modo que o público dificilmente conseguirá entrar completamente no ambiente ficcional; ele permanece sempre ciente desse ambiente, do que o estrutura e, portanto, de que se trata de uma construção. Assim, compreendemos que o arranjo cênico proposto por Neher casa com o projeto de Brecht de um teatro “não ilusionista” e que, por sua importância, ele é descrito no modelo e representado em diversas fotos.

Nos itens 5 e 6 do Prefácio, Brecht tratará do “estilo da representação”. Primeiramente, ele afirma concordar com Aristóteles sobre a centralidade da fábula na tragédia, discordando do que o filósofo entende como o objetivo desta (a catarse). Brecht afirma que “tanto as disposições de grupo como a movimentação das personagens devem narrar a fábula (...); e também ao ator não cabe outra missão senão esta.” (BRECHT, 2005, p. 212). Brecht faz, ainda, uma consideração importante sobre a atuação no seu teatro épico- dialético. Não se deve pensar que sua representação está em função de uma estilização estética, de um estranhamento puro e simples, pois, para ele, “o objetivo da estilização é revelar ao público, que é uma parte da sociedade, tudo o que, na fábula, é importante para a sociedade” (BRECHT, 2005, p. 212). Ou seja, a estilização existe para revelar, e não para obscurecer a fábula.

Já no sétimo e último item do Prefácio, Brecht reafirma a provisoriedade do seu Modelo, que é baseado em uma experiência específica e que contém elementos que deverão ser reavaliados posteriormente. E conclui: “Não será, também, necessário trabalhar os ‘modelos’ com seriedade maior do que exige qualquer outra atividade lúdica” (BRECHT, 2005, p. 215).

Sobre o Modelo propriamente dito, temos a impressão geral de que se trata de anotações bastante diversificadas sobre a peça. Em alguns momentos, Brecht faz questão de descrever a movimentação dos atores, como se fossem rubricas ou notas de direção, quase fala por fala, como no seguinte trecho, em relação ao Prólogo: “Os versos 1-4 são falados para o público. No verso 10, a Segunda vai até o saco e olha para dentro. Os versos 17 e 18 são falados novamente para o público, depois as duas vão para a mesa e sentam-se, a cena é retomada com o verso 21”260. Porém, nem toda a peça está descrita assim. Em alguns momentos, Brecht faz apenas um comentário mais geral sobre algum personagem: “Não é

recht hörbare Klicken von drei Kameras während der Churer Uraufführung störte. Die Schauspieler, die mit ihrer Rolle fertig sind, gehen endgültig ab” (p.80).

260 „1-4 Die Verse werden zum Publikum gesprochen. Nach 10 Die Zweite geht zum Sack und schaut hinein. 17,

18 ist wieder zum Publikum gesprochen, danach gehen die zwei zum Tisch und setzen sich, dann das Spiel wieder aufnehmend mit 21“ (BRECHT, 1973, p. 78).

preciso dar muito destaque à dupla função do coro (comentarista e coadjuvante). Pode-se imaginar que o coro simplesmente se presta a representar os grandes de Tebas em ação”261. Ou expressa o seu objetivo com relação ao público:

Pergunta: Hemon representa o povo? Resposta: Não.

Pergunta: O coro de Anciãos representa o povo? Resposta: Não.

Pergunta: Qual posição deve então o público ser induzido a tomar? Resposta: A do povo que assiste à discórdia dos que dominam262.

De forma geral, portanto, o Modelo não é um manual de representação, em que um diretor ou um grupo poderá se basear para reproduzir fielmente o que foi a Antígona de Sófocles de Brecht. Algumas indicações, inclusive, tenderiam a se perder, a se tornar inúteis, pois a descrição verbal ou imagética dificilmente é capaz de reproduzir o que é uma encenção, e alguns trechos, quando lidos, parecem não fazer sentido. No entanto, as observações de Brecht neste Modelo parecem-nos importantes para o projeto que ele tem para sua versão da tragédia, corroborando para elucidar o que era importante para ele (as contradições entre os poderosos, por exemplo) e o modo de representação visando a uma não identificação por parte do espectador.

261 „Aus der Doppelfunktion des Chores (Kommentator und Mitspieler) muß man nicht viel Wesens machen.

Man kann denken, daß der Chor sich einfach ausleiht zur Darstellung der Thebanischen Großen in der Handlung“ . (BRECHT, 1973, p. 84).

262 „Frage: Vertritt Hämon das Volk? Antwort: Nein. Frage: Vertritt der Chor der Alten das Volk? Antwort:

Nein. Frage: Welche Stellung einzunehmen soll dann das Publikum veranlaßt werden? Antwort: Die des Volks, das dem Zerwürfnis der Herrschenden zusieht“ (BRECHT, 1973, p. 88).

FIGURAS 5 e 6 – Creonte em cena com a máscara. Fonte: HECHT, 1988, p. 122 e 123.

É importante frisar, ainda, que se trata de um modelo imagético, composto por fotos da apresentação em Chur feitas por Ruth Berlau (1906-1974), atriz, escritora e fotógrafa, colaboradora e amante de Bertolt Brecht. Como dissemos anteriormente, nem o registro escrito nem o imagético dão conta do que foi a representação da Antígona de Brecht. As imagens, porém, colaboram para esclarecer algumas escolhas de cenografia e adereços e também de movimentação cênica, como nas fotografias acima, em que vemos uma movimentação bastante estilizada do personagem Creonte. Apresentamos, a seguir, mais algumas das imagens do Modelo, para proporcionar uma ideia mais ampla do tipo de fotografia e de ilustração que o compõem.

FIGURA 7 – As duas irmãs no Prólogo de 1948. Fonte: HECHT, 1988, p. 59.

FIGURA 8 – Antígona e Ismena em cena. À esquerda, a banca de acessórios com as máscaras. À direita, o gongo que é soado no início da peça. Nas laterais e ao fundo, os bancos para os atores. Fonte:

FIGURA 9 – Desenho de Caspar Neher para a cena em que Antígona está presa à berlinda. HECHT, 1988, p. 97.

FIGURAS 11 e 12 – Desenhos de movimentações cênicas e respectivas cenas. HECHT, 1988, p. 145 e 159.

FIGURA 13 – Mensageiro, ferido de guerra, traz a notícia da derrota para Creonte. Fonte: HECHT, 1988, p. 155.

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