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PARTE II – ANTÍGONA NO CONTEXTO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

2.4 O HOMEM ANOUILH

Sobre o homem Anouilh, embora este tenha afirmado em 1946 “não ter biografia”143, muito poderia ser dito. E de fato o foi, por biógrafos144 e por ele mesmo, no livro

141 “‘Antígona’, desde sua criação, levantou várias discussões e polêmicas. No que nos concerne, queremos nos

colocar estritamente sobre o plano da arte dramática, e nesse plano ‘Antígona é uma obra que conta”.

142 “A emocionante heroína de Sófocles foi, entre as mãos de Anouilh, pulverizada de si mesma. Certos Alain

Laubreaux e companhia fingiram descobrir ali profundezas patéticas e derramaram algumas lágrimas de crocodilo sob sua vítima. Eles ostentaram uma generosidade barata. Antígona não é uma inimiga ‘real’ de Creonte; isso não passa de uma abstração, uma máquina de teatro e nada mais.”

143 Em uma carta a Hubert Gignoux, ele diz “Je n’ai pas de biographie” (citado por BEUGNOT in ANOUILH,

2007, p. X). Beugnot interpreta essa fala de Anouilh como um duplo gesto de pudor, que ao mesmo tempo retira a importância de sua vida privada e coloca em evidência sua criação artística.

autobiográfico La Vicomtesse d’Éristal n’a pas reçu son balai mécanique – souvenirs d’un jeune homme (1987). Se não nos interessa aqui fazer um percurso de sua trajetória artística e, menos ainda, biográfica, nem propor uma leitura sociológica de sua obra145, acreditamos que alguns aspectos podem ajudar a compreender sua polêmica Antígona.

Como dissemos anteriormente, Anouilh nunca assumiu uma posição política clara. O retrato que o escritor faz de si, posteriormente à Ocupação (e, portanto, à escrita de sua Antígona) e em referência a esse momento, é sempre de alguém que não estava muito a par do que se passava. O termo que ele mais usa para falar de si, em francês, é ahuri (algo como um idiota, meio pasmado), como na carta a Flügge (ANOUILH, 1979 In FLÜGGE, 1981, p. 394- 397), em que afirma: “bien que je sois un amnésique et un ahuri qui est passé à travers tous les événements sans en comprendre le sens”, e um pouco mais adiante, “dans ma naïveté un peu ahurie d’homme qui s’est toujours senti libre”146. Na mesma carta, ao comentar a crítica publicada em Lettres Françaises147, ele afirma: “je n’avais rien compris à rien”148; e um pouco mais ao final: “je vivais dans la lune”149. É uma tentativa constante de afirmar de diferentes maneiras sua inocência e, talvez, de justificar sua falta de tomada de posição, como a pintura de um autorretrato de alguém que se ocupava apenas de sua arte e que, assim, “se sentia livre”. Não parece haver ali nenhuma autocensura ou um arrependimento posterior, mas uma consciência tranquila de alguém que – poderíamos dizer, “felizmente” – não sabia o que estava acontecendo, e por isso pôde continuar seu trabalho “normalmente”.

Em La vicomtesse d’Éristal, Anouilh conta alguns episódios da época, com um certo humor que demonstra também um certo desprezo em relação ao período:

J’étais ahuri ou innocent, comme on veut, au point que lorsque Vermorel vint me trouver avant la Libération, porteur, pensait-il, de ma dernière chance, pour m’expliquer qu’il fallait s’unir pour reprendre les théâtres aux directeurs dès que Paris serait libérée et les exploiter nous-mêmes – je lui répondis innocemment que je n’étais qu’un auteur et que je me voyais vraiment pas prendre d’assaut les théatres. Il repartit, ou sceptique ou navré, je ne l’ai jamais su...150 (ANOUILH, 1987, p. 166-167, grifo nosso)

145 Gisèle Sapiro, no livro La Guerre des écrivains, 1940-1953, considerando diversos fatores, especialmente os

sociológicos, como local de nascimento e de residência, situação econômica, idade, propõe uma leitura do que ela denomina como “Le champ littéraire sous l’Occupation”. Neste livro, ela considera Anouilh como um escritor ligado à colaboração.

146 “Mesmo que eu seja um amnésio e um abobado que passou através de todos os acontecimentos sem

compreender o seu sentido” e “na minha inocência um pouco abobada de homem que se sentiu sempre livre”. Grifos nossos.

147 Citada no item 2.2.

148 “Eu não entendi nada de nada” 149 “Eu vivia na lua”.

150 “Eu era abobado ou inocente, como quiser, ao ponto que quando Vermorel veio me encontrar antes da

Novamente, é uma maneira de dizer que o fato de ser um escritor, ao invés de impulsioná-lo para uma ação política mais concreta, o afastava disso. Mesmo logo antes da Liberação, convocado a tomar posição, Anouilh prefere se defender por trás da imagem de um artista cuja relação com a realidade não é senão indireta. Obviamente não queremos aqui afirmar que um artista deva “pegar em armas”, nem “tomar de assalto” um teatro. Porém muitas vezes a forma como o dramaturgo descreve os acontecimentos do período demonstram ou uma ironia, ou um desprezo um pouco niilista pelo que se passava (como no caso da générale libérée, em que ele diz que apenas a cor dos uniformes havia mudado). Esse tipo de posicionamento, de uma sátira um pouco desacreditada de qualquer saída possível, está presente no teatro e na literatura da época de Anouilh, por exemplo em Camus, e um pouco depois no que ficou conhecido como “Teatro do Absurdo” (denominação que inclui os franceses Eugène Ionesco e Jean Genet, o irlandês Samuel Beckett, o espanhol Fernando Arrabál). Ainda podemos ver ressonância desse tipo de pensamento hoje, nesta época em que o capitalismo parece ter se estabelecido como o único sistema possível, após o fracasso pragmático do socialismo. Se a arte não consegue apontar uma saída, ela se coloca por vezes em um lugar de crítica absoluta, que se demonstra, no entanto, insuficiente, pois deixa o espectador também ele sem saída.

A descrença de Anouilh a respeito daquele período ganha, ainda, contornos de um certo deboche pelo momento da Liberação. Em sua autobiografia, Anouilh narra um episódio em que é convocado pela síndica do prédio para ajudar a fazerem uma barricada para se protegerem, quando os alemães deixavam a capital Paris, em agosto de 1944. Todo o trecho contém palavras que remetem a contextos de revolução na França, de libertação do povo pelo povo – e, no entanto, trata-se sempre de um humor irônico. Sobre a senhora que vem lhe demandar ajuda, ele diz “ma concierge (...) me dit avec son visage de tricoteuse”151 (ANOUILH, 1987, p. 168, grifo nosso), numa referência à denominação dada às mulheres que queriam participar da vida política durante a Revolução de 1789. A aceitação de Anouilh em participar é descrita nos seguintes termos: “J’y allai, bien sûr, sans trop croire à l’efficacité quarante-huitarde de ce barrage”152 (ANOUILH, 1987, p. 168, grifo nosso), novamente ironizando um momento revolucionário (de 1848). E ele finaliza sua narração sobre o

os teatros aos diretores a partir do momento em que Paris fosse liberada e os explorar nós mesmos – eu o respondi inocentemente que eu era apenas um autor e que eu não me via tomando de assalto os teatros. Ele foi embora, cético ou chateado, eu nunca soube.”

151 “Minha zeladora (...) me diz com seu olhar de tricotadeira”.

episódio com: “Dommage que Victor Hugo n’ait pas été là”153 (para tomar parte na festa popular que tomava conta da França, poderíamos completar?).

Quando perguntado por Flügge na carta de 1979 se Jean Anouilh era monarquista, o dramaturgo responde: “oui, monarchiste de raison”. Como compreender essa resposta? O complemento “de raison” se oporia a uma prática? Ou quereria dizer que ele achava a monarquia a posição mais razoável? De toda forma, para alguém que nunca tomou partido abertamente, esse tipo de expressão, colocado ao lado de suas ironias a respeito da época da Ocupação e da Liberação da França, nos faz crer que, minimamente, Anouilh não tinha uma inclinação realmente “pró-revolucionária”.

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