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PARTE I – ANTÍGONA NA GRÉCIA ANTIGA

1.2 TRAGÉDIA MODERNA

Alguém que se contrapõe a um poder tirânico. Um herói cego por sua vontade. Um “visitante indesejável no mundo” (STEINER, 2006). A trajetória de um declínio, uma queda

70 Esse embate, a nosso ver, está relacionado também aos conflitos presentes na própria Atenas do século V a.C.

Analisamos mais detalhadamente esses conflitos no artigo “Antígona e o solo movediço da justiça” (RESENDE, 2016a).

irreparável. Os dois lados de uma eticidade cindida. Indivíduo, coletivo. Qual é a experiência trágica do homem moderno que ainda pode ser representada pelo mito de Antígona? Ou ainda, como esse mito, gestado no ambiente da tragédia ática, pode ser reapropriado e qual é o tipo de configuração estética que ainda pode dar conta dele na modernidade e na contemporaneidade?

Primeiramente, é preciso dar os contornos disso que entendemos como experiência e forma trágica. Isso porque pensar o problema do trágico é nos depararmos com um longo percurso da recepção tanto dos textos dos tragediógrafos – cuja maioria se perdeu – quanto da Poética de Aristóteles (384-322 a.C.), e, mais recentemente, com o que a filosofia estética chamou de “filosofia do trágico” (SZONDI, 2004a). Além disso, é preciso lidar com o fato de que “muitas teorias gerais de tragédia giram em torno de dois ou três textos apenas”, como nos lembra Eagleton (2013, p. 78). É esse o caso do próprio Aristóteles, que considera o Édipo Rei como modelo para definir os parâmetros da (boa) tragédia, e também de Hegel, que parte de Antígona para entender o fundamento do trágico. Comecemos pelo primeiro problema: o percurso do conceito de “trágico”.

Após sua recuperação71, durante o Renascimento, o texto da Poética foi amplamente utilizado como parâmetro da Tragédia Ática, que, como sabemos, tornou-se, juntamente com toda a Arte Grega, modelo da perfeição para os neoclassicistas, especialmente na França. No entanto, a compreensão de uma forma comum para a tragédia ática não é, nem de longe, uma questão unânime ou bem resolvida. Há inúmeros fatores que contribuem para a dificuldade do acesso a essa forma. O primeiro deles, que parece óbvio, é a distância temporal, cultural e linguística que nos separa dos gregos. Não queremos colocar em questão aqui o exaustivo trabalho dos helenistas em recuperar esse contexto, em comparar versões, obras de um mesmo autor ou de uma mesma época, e em traduzi-las, repetida e cuidadosamente, para que tenhamos o mínimo acesso às tragédias gregas. Mas se trata, ainda, do mínimo acesso. Seja por problemas de conservação, seja por vontade política e ideológica, inúmeros originais se perderam ao longo desses mais de 2500 anos. Das 123 tragédias que Sófocles teria escrito ao longo de sua vida, por exemplo, nos chegaram completas apenas sete (o que significa pouco mais de cinco por cento de sua obra). Qualquer teoria que se faça sobre o conjunto da obra de Sófocles corre o risco de perder a validade se se pudesse levar em conta essa totalidade. E o

71 O percurso de recepção da Poética de Aristóteles é bastante acidentado. Considera-se a possibilidade de ter-

nos chegado apenas uma das duas partes que comporiam o compêndio, sendo a segunda sobre a comédia. A parte que nos chegou vem, sobretudo, das versões árabes dos séculos IX e X, de um manuscrito de Bizâncio, o código Parisinus 1741, datado de por volta dos séculos X e XI, e das versões latinas feitas na Itália por volta dos séculos XV e XVI, época do Renascimento. Porém, essas versões só são recuperadas, estudadas e comparadas no século XX. Cf. Pereira, 2004, p. 5-7.

mesmo vale para os outros tragediógrafos. A vontade de aproximar esses textos de nossa sensibilidade pode, por vezes, levar o crítico a generalizações e a desvios de interpretação cujas consequências para a crítica posterior é irrevogável (como no caso da figura do “herói trágico”, já citado).

O texto da Poética de Aristóteles, tal como ele chegou para a modernidade, mesmo tendo sido escrito quando a tragédia já tinha tido o seu declínio, tornou-se uma espécie de “manual normativo” a respeito da forma e do efeito da tragédia. Essa leitura da Poética funda uma tradição de pensamento que permite que Szondi (2004a) faça uma diferenciação entre uma “poética da tragédia”, que diz respeito a essa tradição e a uma preocupação com a forma e o efeito da tragédia, e uma “filosofia do trágico”, que teria se iniciado com Schelling (1775- 1854). Esta filosofia, para além de pensar no efeito da obra trágica, estabelece uma reflexão sobre a experiência da tragédia como problemática humana e, segundo o pensamento de Szondi (2004a), como fundamento mesmo da dialética. Não uma dialética do trágico, ou uma dialética presente no trágico, mas, conforme sua correção, “o trágico como dialética”, numa equivalência entre os termos. Embora para cada filósofo que pensou sobre o trágico a partir de Schelling essa “dialética” ganhe diferentes nuances e entendimentos, basicamente poderíamos afirmar que a ideia de trágico trata da cisão entre contrários, que, pela aniquilação de ambos, reconstituem ao final uma totalidade perdida, seja ela a relação homem-natureza, homem- deus(es), ou a natureza ética, a eticidade de que fala Hegel. Nesse sentido de uma filosofia do trágico, ou de uma “poética do trágico” – e não da tragédia –, podemos afirmar, com Pedro Süssekind (2008, p.198), que

uma poética integrada a um sistema estético investiga as tragédias como exemplos, a partir dos quais se pode extrair a concepção do trágico que, em vez de apenas determinar um gênero poético, diz respeito à relação entre o absoluto e o individual, entre o divino e as suas manifestações, entre o universal e o particular.

Nessa linha de raciocínio, entendemos que é possível extrair da tragédia antiga um tipo de experiência humana, algo como um “traço trágico”, que serviria tanto para compreender certos tipos de ações e acontecimentos humanos – cuja responsabilidade incidiria interna ou externamente ao homem – quanto determinadas estéticas que tentam dar conta dessa experiência.

Embora seja divergente a crença em uma possibilidade da tragédia na modernidade72, tendemos a acreditar que há, sim, um tipo de experiência particular que podemos entender como o “trágico moderno” e, radicalmente, como o “trágico contemporâneo”, se conseguimos enxergar em nossa própria época a permanência dessas experiências. E, nesse sentido, corroboramos com a leitura de Raymond Williams quando ele afirma que “um sentido absoluto de tragédia é na verdade um sentido particular, que deve ser entendido e avaliado historicamente” (2002, p. 87). Isso inclusive se pensarmos no entendimento que temos do que seria a tragédia ática, pois, como já dissemos, não temos nem de longe acesso ao que foi a totalidade desse tipo de obra. Nesse sentido, assim como Williams (2002, p. 90), “não estamos procurando um novo e universal sentido da tragédia. Estamos procurando a estrutura da tragédia na nossa própria época.”.

Em Tragédia Moderna (2002), Williams amplia o entendimento do termo “tragédia”, defendendo seu uso para tratar de experiências cotidianas – desastres, terremotos, acidentes de trânsito, por exemplo –, uso esse já consagrado no “senso comum”. Para Williams:

O argumento de que não há sentido trágico significativo nas “tragédias do dia a dia” parece basear-se em duas crenças relacionadas: a de que o acontecimento em si não é trágico, mas apenas se torna trágico por meio de reações convencionadas (...); e a crença de que uma reação significativa depende da capacidade de conectar o evento a um conjunto de fatos mais geral, de modo que ele não seja mero acidente, mostrando-se capaz de carregar um sentido universal. (WILLIAMS, 2002, p. 71)

Seguindo a argumentação de Williams, a reação a um determinado acontecimento e a possibilidade de conectá-lo a um conjunto mais geral nos ligam diretamente à ideia de que “algumas mortes importavam mais do que outras, e a posição social era a verdadeira linha divisória” (WILLIAMS, 2002, p. 74). Ainda hoje nos parece claro como a ênfase dada – notadamente pela mídia – a determinados acontecimentos e o sofrimento decorrente deles está ligada à posição social e à possibilidade de visibilidade e de particularização dos indivíduos dessas posições.

Para Williams, a consciência trágica que pode ser percebida na modernidade tem muito a ver com o trabalho de Bertolt Brecht, e com a consciência de que há um sofrimento pelo qual a humanidade passa que poderia ser evitado pela ação humana e que, todavia, não é: “temos que enxergar não apenas que o sofrimento pode ser evitado, mas também que ele não

72 Não é nossa intenção aqui, nem caberia no âmbito desta tese, aprofundar uma discussão sobre as

possibilidades da tragédia moderna. Sabemos que se trata de um tema amplo e complexo, que pode ser melhor aprofundado na consulta das bibliografias citadas. Especialmente, conferir: STEINER, 2006; WILLIAMS, 2002.

é evitado. E não apenas que o sofrimento nos esmaga, mas também que ele não tem, necessariamente, de nos esmagar” (WILLIAMS, 2002, p. 262).

Esse entendimento do trágico ganha um caráter claramente político na modernidade, pois impele o homem à ação e volta a ênfase do herói trágico individual para o coletivo: há um sofrimento que pode ser considerado trágico e que é causado por um conjunto de ações humanas. Isso diz respeito não a um sujeito, mas a decisões e ações coletivas. Nussbaum afirma, inclusive, que esse caráter já está presente desde a tragédia ática: “as tragédias nos mostram nitidamente que mesmo o mais sábio e melhor dos seres humanos pode deparar com a desgraça. Mas mostram-nos também, de modo igualmente nítido, que muitas desgraças são resultado do mau comportamento, seja dos seres humanos, seja dos deuses antropomórficos” (NUSSBAUM, 2009, p. XXVIII). E ela é ainda mais clara sobre o papel da tragédia (e a importância de manter tal representação viva ainda hoje):

A verdadeira notícia da tragédia grega, para nós, bem como para os atenienses, (...) a má notícia é que somos tão culpáveis como Zeus em Trakhínai, como os generais gregos em As troianas, como Odisseu em Filoctete e como muitos outros deuses e mortais em muitas épocas e lugares – a menos e até que nos livremos de nossa indolência, ambição egoísta e obtusidade e nos perguntemos como os males que testemunhamos poderiam ter sido impedidos. (NUSSBAUM, 2009, p. XXXIV)

É interessante pensar que a responsabilidade pela ação trágica deva ser imputada ao homem, mesmo quando ela vem de uma figura externa, como seriam os deuses para a tragédia ateniense. Dessa forma, o sujeito moderno, já desamparado pelos deuses, abandonado à sua “própria sorte”, ainda pode se deparar com uma cisão trágica em sua história e se ver impelido a buscar suas causas e – mais importante – suas resoluções.

No caminho contrário a esse pensamento, George Steiner, em seu livro A morte da tragédia, afirma que “onde as causas do desastre são temporais, onde o conflito pode ser resolvido por meios técnicos ou sociais, podemos ter drama sério, mas não tragédia”, isso porque ele acredita que “a tragédia é irreparável” (STEINER, 2006, p. 4). A tragédia, em sua visão, é entendida, “em sentido radical”, como “a representação dramática ou, mais precisamente, a prova dramática de uma visão da realidade na qual o homem é levado a ser um visitante indesejável no mundo” (STEINER, 2006, p. XVII). A partir dessa definição estrita, ele busca afirmar, ao longo da obra, a conclusão de que a tragédia, enquanto a forma de representação dessa experiência, está morta, ou seja, não tem mais lugar enquanto “gênero disponível” no mundo contemporâneo.

No entanto, acreditamos que se desejarmos afirmar a possibilidade de um conflito trágico na modernidade e na contemporaneidade, devemos concordar com esse caráter de irreparabilidade do conflito de que fala Steiner, mas com isso entendemos que não é preciso anular as causas temporais ou sociais, por exemplo. O fato de que os conflitos possam ser resolvidos e não o sejam, como afirma Williams, já traz inúmeras consequências irreparáveis. Interessa-nos pensar o trágico não como um modelo abstrato que afeta um sujeito humano ideal, mas como o trágico que ronda o ser humano histórico, concreto, cuja morte – e, especialmente, a morte em massa daqueles que não estão na camada mais “nobre” – é, sim, um evento irreparável, no sentido de sua consequência histórica. Não é, no entanto, irreparável no sentido paralisante, no sentido de que o homem frente a ele não tem o que fazer. Há uma consciência histórica que deve ser estabelecida a partir desses acontecimentos, e que deve mostrar ao homem que aquilo “poderia ter sido evitado”. Isso, a nosso ver, ainda pode ser apropriado pela arte, de diferentes formas.

Nesse sentido, parece-nos fundamental entender que tipo de conflito é esse que move o homem grego no século V a.C. a encenar uma obra teatral de determinada forma e que continua movendo o homem atual a dar forma estética a esse tipo de experiência. Em outras palavras, e voltando às perguntas que deram início a este subcapítulo, que tipo de experiência trágica pode ser percebida na Antígona de Sófocles, e que continua válida ao longo dos séculos? E, ainda, quais as formas que essa experiência assume na estética dos séculos XX e XXI?

Já analisamos, na primeira parte deste capítulo, as interpretações correntes da tragédia de Sófocles. Porém, aqui, o que queremos afirmar como o ágon trágico, o conflito central que poderíamos denominar de uma “experiência trágica” fundamental de Antígona, é o limiar de (in)decidibilidade da própria condição humana e a relação decorrente entre o Estado e a vida nua. Isso porque acreditamos que o que é central na tragédia de Sófocles é exatamente esse conflito entre uma representante do domínio do oikos e do disforme (das leis pré-políticas) e um representante da pólis e das leis positivas que começavam a ganhar forma no contexto da democracia ateniense. Acreditamos, seguindo também as ideias de Agamben (2010), como veremos mais adiante, que essa separação entre vida nua e poder soberano está intrinsecamente relacionada com o entendimento do humano e com as grandes atrocidades que se passaram nos estados totalitários do século XX, contexto das reescritas de Antígona que analisamos nesta tese.

Temos, então, duas questões fundamentais para o entendimento da experiência trágica de Antígona: a definição da vida humana e, a partir daí, a sua relação com o Estado. Hannah

Arendt (2010), em A condição humana, volta ao pensamento grego justamente para buscar compreender essas definições na organização política grega e como ela se transforma na organização atual. O que é central em Antígona, como vimos anteriormente, é também central para a democracia ateniense, a saber, a divisão entre uma esfera do oikos e uma esfera da pólis. De um lado, temos a união natural da família em função das necessidades para a manutenção vital, organização cuja função é prioritariamente feminina e na qual reina a desigualdade, marcada sobretudo pela dominação de um patriarca. De outro, temos a organização humana pelo discurso, a vida qualificada, em que o homem livre na Grécia pode assumir sua liberdade numa relação entre iguais (e desta organização jamais participam mulheres, escravos ou bárbaros, que não são detentores dessa vida qualificada, política, pautada no discurso).

Como afirma Arendt (2010, p. 33),

Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política não apenas difere mas é completamente oposta a essa associação natural cujo centro é constituído pela casa (oikia) e pela família. O surgimento da cidade- estado significava que o homem recebera, “além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos”73.

Essa divisão, porém, ainda seguindo o pensamento de Arendt, se modifica ao longo dos séculos, a começar pelo próprio entendimento romano da ideia do homem como o zoon politikon (definição de Aristóteles), que é traduzida como “animal social”. Uma esfera “social”, nem privada nem pública, não era conhecida na Grécia Antiga e teria tido suas origens na Modernidade, assumindo a forma política do Estado Nacional. Na organização grega da pólis, o governante jamais poderia ser entendido como um grande chefe de famílias, e a cidade como um conjunto delas, pelas próprias diferenças – fundamentais – que elencamos. Na organização moderna, por sua vez, a sociedade seria “o conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-símile de uma única família sobre-humana, e sua forma política de organização é denominada nação” (ARENDT, 2010, p. 38). Assim, a própria existência do termo “economia política” (lembrando que economia tem suas origens em oikonomia), que seria impensável para os gregos, torna-se uma questão fundamental da nação.

Isso significa, em última instância, que as esferas da casa, por um lado, de uma vida natural e suas necessidades biológicas, e da pólis, por outro, da vida qualificada, do animal

político e capaz de discurso, que antes estavam completamente apartadas, passam por um processo de indistinguibilidade, e “constantemente recaem uma sobre a outra, como ondas no perene fluir do próprio processo da vida” (ARENDT, 2010, p. 43). É esse processo identificado por Arendt que Agamben vai desenvolver em todo o seu projeto do Homo Sacer, afirmando que “o espaço da vida nua, situado originalmente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção” (AGAMBEN, 2010, p. 16). Agamben vai além, ao afirmar que essa zona de indecidibilidade é precisamente o espaço topológico moderno que abriga o campo de concentração e permite a existência jurídica do estado de exceção.

Se acreditamos que existe uma experiência trágica moderna, e que ela pode ser compreendida como a experiência trágica do homem no estado de exceção – e lembramos, com Agamben, que o estado de exceção está presente hoje de diversas formas –, podemos entender que Antígona é uma peça emblemática desse tipo de organização em que os parâmetros jurídicos parecem se sustentar sobre terrenos movediços. Isso porque essa zona de indecidibilidade entre público e privado, entre uma vida biológica e uma vida qualificada, se constituem como o centro do conflito agônico em Sófocles, e a imagem mítica veiculada pela tragédia permite que as apropriações modernas e contemporâneas tratem do mesmo conflito trágico nas sociedades em que foram escritas/encenadas.

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