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PARTE II – ANTÍGONA NO CONTEXTO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

2.3 LIBERAÇÃO DA FRANÇA

Em 25 agosto de 1944, Paris é liberada. Em setembro do mesmo ano, após ter pausado suas apresentações no mês anterior, Antígona de Anouilh, dirigida por André Barsacq, volta aos palcos do Atelier. É a première “libre” da peça. Mas havia ela em algum momento sido clandestina? É o que se questiona Gabriel Marcel em sua crítica publicada em Les temps présents, em 20 de outubro de 1944 (apudLATOUR, 1986, p. 285). Afinal, por que falar de “estreia livre”? Nenhuma alteração é percebida na peça antes e depois da liberação. Talvez seja o caso daquela tentativa, que comentamos anteriormente, de tornar-se resistente na onzième heure. É um momento em que a palavra “clandestinidade” tenta se espalhar um pouco por toda parte, como nota Marcel. Anouilh mesmo zomba dessa classificação, ao dizer « ce qu’on appelait sottement ‘la générale libérée’ »133 (ANOUILH, 1987, p. 167, grifo nosso). Vejamos como Anouilh narra, desta vez, o ensaio geral em tempos de Liberação:

On leva um rideau incertain devant une salle bondée où, seule, la couleur des uniformes avait changé. À la fin, même silence angoissant (on n’était pas sûr

132 Disponível em: https://amisdejeananouilh.files.wordpress.com/2010/03/antigone-1944-creon-et-antigone-

jean-davy-et-monelle-valentin.jpg. Acesso em: 12 jan. 2017.

qu’il faille applaudir) – soudain le général Koenig, gouverneur militaire de Paris, qui était dans une avant-scène, se leva et cria :

- C’est adimirable!

La salle éclata em applaudissements – c’était permis.134 (ANOUILH, 1987, p. 167-168)

Havia, para Anouilh, um medo de não aceitação da peça após a Liberação. O que exatamente ele temia? Não ser considerado verdadeiramente patriótico? “A cor dos uniformes havia mudado”. Qual seria, então, a reação daquele público, daquela sala cheia já não mais de oficiais alemães, mas de franceses recém-saídos de um processo de expulsão dos ocupantes? De fato, a nova configuração do contexto não pressupunha apenas uma “mudança na cor dos uniformes”, como a fala de Anouilh faz crer.

Junto com a Liberação da França, segue um momento em que é preciso “fazer justiça”, dar nome àqueles que colaboraram com os ocupantes, que cometeram crimes e excessos. Esse momento é conhecido como “Épuration” e também é um capítulo bastante controverso da história francesa. Se, por um lado, era importante fazer um levantamento crítico do período logo em seguida, para que crimes não ficassem impunes e para que a história pudesse ser escrita com um ponto de vista mais presente daqueles que a viveram e a sofreram, por outro lado um sentimento de “vingança” parece ter guiado o período de julgamentos, muitos deles também carregados de excessos e de polêmicas. Natural, afinal, como afirma Pierre Assouline (1985, p.21), « l’épuration se nourrit obligatoirement de la revanche. A l’automne 1944, il n’est pas encore question de souvenir ou de mémoire, d’oubli ou de pardon. L’Occupation, c’était hier stricto sensu »135. Mesmo os líderes da Liberação136 se dividiam em como deveria ser aquele período, em como “canalizar a violência popular” (ASSOULINE, 1985, p.19), que se espalhava por toda a França.

Especificamente a respeito de intelectuais e escritores, a questão se colocava de uma forma controversa. O caso do escritor Robert Brasillach é emblemático. Ele foi fuzilado em 6 de fevereiro de 1945, após ter sido condenado, em 19 de janeiro do mesmo ano, por colaboração com o inimigo137. No dia seguinte à sua condenação, um grupo de escritores138,

134 “Levanta-se uma cortina incerta diante de uma sala cheia, onde, apenas, a cor dos uniformes havia mudado.

No final, mesmo silêncio angustiante (não havia a certeza de que haveria aplausos) – de repente, o general Koenig, governante militar de Paris, que estava na primeira fila, se levantou e gritou: - É admirável! A sala se rompe em aplausos – estava permitido.”

135 “A épuration se alimentou obrigatoriamente da revanche. No outono de 1944, ainda não é questão de

lembrança ou de memória, de esquecimento ou de perdão. A Ocupação tinha sido ontem stricto sensu.”

136 Lembramos que a resistência era dividida em diversos grupos (havia a comandada por Charles de Gaulle, a

comunista ligada à URSS, a resistência interna), cada qual com seus objetivos e pensamentos para a França livre.

137 O termo em francês que caracteriza seu crime é intelligence avec l’ennemi, e estava previsto no Código Penal

dentre os quais Anouilh, assina uma petição solicitando a revoga da pena – em vão. Ainda que possamos concordar que Brasillach cometeu ações criminosas de colaboração, usando do jornal que dirigia, Le petit parisien, para delatar e perseguir judeus e comunistas, devemos lembrar que era mais fácil e cômodo, nesse momento, julgar e condenar escritores (afinal, eles deixaram provas concretas contra si) do que aprofundar em uma investigação sobre a colaboração econômica na época. Aliás, o desejo nesse período era justamente que se fizesse um julgamento rápido, em que fossem punidos alguns “bodes expiatórios” que aplacassem o desejo de vingança após a Liberação, para que a vida – econômica, sobretudo – seguisse seu curso.

« Peut-on écrire sans conséquence? Jamais la question ne fut autant d’actualité »139, nos lembra Assouline (1985, p. 22). As palavras, nesse contexto, ganham não só peso, como poder soberano, no sentido foucaultiano de fazer viver e deixar morrer. É uma época em que « certains articles tuent, font tuer ou sauvent des hommes. Un stylo est une arme, une signature une caution »140 (ASSOULINE, 1985, p.14). Embora Assouline valorize, sobretudo, a palavra escrita, por acreditar que ela tem, nesse sentido, maior poder do que o teatro, por atingir um público maior, devemos também lembrar que o teatro tem uma “arma” diferencial, que é o fato de possibilitar a reunião de pessoas. Quando as manifestações coletivas estão interditas e o toque de recolher marca o necessário isolamento e confinamento dos cidadãos, o teatro torna-se (ou volta a ser) um espaço do “público”, de reunião das pessoas em torno de um comum. Mas a imprensa, como a mídia televisiva posteriormente, tinha, de fato, um papel forte de influência na opinião pública, sendo consumida por uma parcela maior da população.

A imprensa que havia funcionado abertamente na época da ocupação, colaborando com o ideal alemão e de Vichy, foi banida ou recuperada (no caso de jornais que haviam sido temporariamente ocupados) após a Liberação. É um momento, portanto, em que a crítica cultural fala de política mais abertamente, mesmo que haja alguns que prefiram se esquivar desse tipo de polêmica, como é o caso de Claude Hervin, em Libération: “‘Antigone’, depuis sa création, a soulevé bien des discussions et des polémiques. En ce qui nous concerne nous

138 Dentre eles, além de Anouilh, figuravam: Paul Valéry, Paul Claudel, François Mauriac, Albert Camus, Jean

Paulhan, Jean Cocteau, Colette, André Barsacq, Jean-Louis Barrault, Thierry Maulnier. Nessa lista, estão presentes motivações muito diferentes entre si. Mauriac, por exemplo, assina a petição em nome de uma “caridade” cristã. Camus responde Mauriac em artigos no jornal Combat, afirmando que seria capaz de perdoar apenas quando a família de resistentes mortos também o fosse. Ainda assim, Camus assina a petição em favor de Brasillac, não por clemência ou por concordar politicamente com o condenado – longe disso, aliás –, mas por ser absolutamente contra a pena de morte. Sobre essa querela específica, conferir GUÉRIN, 2013, p. 52-60.

139 “Pode-se escrever sem consequência? Jamais a questão foi tão atual.”

140 “Alguns artigos matam, fazem matar ou salvam homens. Uma caneta é uma arma, uma assinatura, uma

voulons nous placer strictement sur le plan de l’art dramatique et, sur ce plan-là ‘Antigone’ est une œuvre qui compte.”141 (in LATOUR, 1986, p. 286). É uma crítica que se pretende neutra, como se fosse possível isolar a arte de tudo que a rodeia e falar de um “plano estritamente artístico” para emitir um julgamento “puramente estético”.

Outros, porém, ainda que falem sob um ponto de vista estético, não evitam o questionamento sobre a ética presente na peça. Edgar Morin, em sua crítica publicada no jornal Action, em 6 de outubro de 1944, afirma:

L’émouvante héroïne de Sophocle s’est, entre les mains d’Anouilh, pulverisée d’elle-même. Certes Alain Laubreaux et consorts ont feint d’y découvrir des profondeurs pathétiques et ont versé quelques larmes de crocodile sur leurs victime. Ils peuvent faire parade de générosité à peu de frais. Antigone n’est pas une ennemie « réele » de Créon ; ça n’est qu’une abstraction, une machine de théâtre et rien de plus.142 (MORIN in LATOUR, 1986, p. 286)

Para além da crítica, bastante passional, a Alain Lambreaux (autor da análise elogiosa que citamos no item anterior), é interessante perceber que Morin aponta duas características da peça de Anouilh: primeira, que ele “pulveriza” a Antígona de Sófocles, que aqui não é mais uma oposição real a Creonte, trazendo novamente a ideia de que a personagem grega teria, originalmente, uma força de resistência, que aqui teria se perdido; segundo, que a peça moderna seria uma “abstração”, uma “máquina de teatro”. Esse termo é interessante para pensarmos a presença do trágico na peça de Anouilh, que, a nosso ver, está muito relacionada com uma questão formal na peça. Voltaremos a essa questão mais adiante, pois interessa-nos relacionar essa forma estética da peça de Anouilh com seu ponto de vista ético.

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