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POR UMA DRAMÁTICA DA NÃO IDENTIFICAÇÃO

PARTE II – ANTÍGONA NO CONTEXTO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

3.3 POR UMA DRAMÁTICA DA NÃO IDENTIFICAÇÃO

O principal objetivo do teatro épico-dialético de Brecht é tirar o espectador do lugar de passividade em que este se encontraria, e dar-lhe uma liberdade de ação e de pensamento crítico. Sobre os frequentadores das salas de teatro de sua época, ele diz: “parecem-nos bem longe de qualquer atividade, parecem-nos, antes, objetos passivos de um processo qualquer que se está desenrolando” (BRECHT, 2005, p. 138). Isso porque o teatro os colocaria imersos

233 Esta é, segundo Brecht (1976, p. 475), a tese principal de seu Pequeno órganon: « une certaine manière

d’apprendre est le plaisir le plus importante de notre époque, si bien qu’elle doit occuper une grande place dans notre théâtre ».

em um fluxo de emoções e sensações que apresentam o mundo de uma forma mágica, naturalizada e não modificável, especificamente por provocar uma identificação do espectador com os personagens e o drama que é mostrado. Brecht classifica esse tipo de dramaturgia da identificação como aristotélica, « sans qu’il importe de savoir si elle l’obtient en faisant ou non appel aux règles énoncées par Aristote », pois ele entende que « aucune catharsis ne peut avoir pour fondement une attitude de parfaite liberté, une attitude critique visant à trouver aux difficultés des solutions purement terrestres » 234 (BRECHT, 1972, p. 237-8).

É válido ressaltar que Brecht não combate os parâmetros da tragédia ática analisados por Aristóteles em sua Poética (o teórico alemão vai, inclusive, dizer que eles concordam totalmente quando à primazia da fábula, por exemplo), mas ao uso que o teatro moderno, mais especificamente o drama burguês, faz desses parâmetros e da ideia de catarses. É a este teatro burguês que Brecht chama de “aristotélico”, por entender a ideia de catarses apenas como identificação (e não como um movimento de medo e compaixão, distanciamento e identificação). Dessa forma, Brecht acredita que o teatro burguês, o teatro de sua época, que ele busca combater, deixa os espectadores como “figuras inanimadas”, como se “todos dormissem profundamente e fossem, simultaneamente, vítimas de sonhos agitados” (BRECHT, 2005, p. 138).

É interessante pensarmos aqui a oposição presente no teatro de Brecht entre razão e emoção. Para Brecht, as formas de manifestação das emoções são sempre históricas e possuem um fundamento de classe bem marcado; qualquer tentativa de representá-las com um caráter universal ou intemporal seria, portanto, enganadora. Embora afirme que a emoção que ele rejeita, em última instância, é apenas aquela vinculada à identificação (que levaria à catarse), ele admite colocar uma ênfase no tratamento racional da realidade. Brecht chega mesmo a afirmar que o faz em oposição ao tratamento emocional provocado pelo fascismo: « le fascisme, avec sa manière grotesque d’insister sur le facteur émotionnel, et tout autant peut-être un certain déclin de l’élément rationnel dans la doctrine marxiste m’ont moi-même incité à porter davantage l’accent sur l’aspect rationnel »235 (BRECHT, 1972, p. 239). Por outro lado, Adorno e Horkheimer, mais ou menos na mesma época236, enxergam as emoções

234 “Não sendo importante saber se ela o obtém fazendo ou não referência às regras propostas por Aristóteles”,

pois “nenhuma catarse pode ter por fundamento uma atitude de perfeita liberdade, uma atitude crítica visando a encontrar às dificuldades soluções puramente terrestres”. É interessante perceber aqui que Brecht fala claramente de soluções terrestres, o que nos faz contrapor com a ideia de destino comumente atribuída à tragédia.

235 “O fascismo, com sua maneira grotesca de insistir no fator emocional, e da mesma forma talvez um certo

declínio do elemento racional na doutrina marxista me incitaram a dar ainda mais a ênfase sobre o aspecto racional”.

236 A Dialética do esclarecimento é de 1947, enquanto os textos de Brecht sobre a dramática não aristotélica são

ou a mitificação trazida pelo nazismo não como uma oposição, mas como a outra face da racionalidade, e afirmam que “o esclarecimento é totalitário” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21):

O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este os conhece na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las.

Adorno e Horkheimer afirmam que, tentando afastar-se do mito e dominar as forças da natureza, o homem cai em outra espécie de mito – a racionalidade. A imposição de um pensamento racional e a pretensão – que nunca se concretiza por completo – de dominação da natureza pelo homem têm como consequência a alienação e o afastamento do homem de si próprio. E é aí que a racionalidade torna-se também totalitária, na medida em que aliena o homem de sua realidade com a pretensão de manipulá-la.

Se por um lado há uma consequência negativa dessa forma de dominação da natureza pela racionalidade – o fato de enxergar o mundo como um sistema fechado, capaz de sínteses totalizadoras –, por outro, a visão cientifista de Brecht traz também ganhos para seu teatro, justamente por trabalhar a fábula e a realidade como manipuláveis, e não como algo dado a priori. Podemos questionar, obviamente, os limites dessa manipulação, a pretensão e a complexidade de uma tal operação que visa a “esclarecer” o público e a fazer com que esse esclarecimento leve a ações concretas e efetivas sobre a realidade. De toda forma, a alteração que Brecht propõe no âmbito da estética – alteração não apenas reformista, no sentido de usar a identificação para falar de coletividades, mas em seu fundamento mesmo – é uma alteração política, que visa a atuar na forma de apreensão do mundo por parte dos espectadores.

Ao teatro “aristotélico” (esse teatro burguês de sua época), Brecht quer contrapor um teatro que permita ao público ter a liberdade de trânsito pelo que se passa no palco e de construção de montagens fictícias: “tais imagens [de perspectiva histórica] exigem, evidentemente, uma forma de representação que mantenha livre e móvel o espírito atento. Este tem que dispor da possibilidade de realizar montagens fictícias na nossa construção” (BRECHT, 2005, p. 144). E ele explicita: “identicamente, o técnico de obras fluviais, vendo um rio, vê, ao mesmo tempo, seu leito primitivo e ainda vários outros leitos fictícios, possíveis se a inclinação do planalto ou o volume da água fossem outros.” (BRECHT, 2005, p. 144). Trata-se de uma maneira de exibir a imagem de forma que apareçam nela todas as

outras imagens que ela contém, pois, em última instância, como afirma Didi-Huberman (2013b, p. 77), na dimensão estética não é possível falar da imagem, pois “il n’y a que des images, des images dont la multiplicité même, qu’elle soit conflit ou connivence, resiste à toute synthèse”237.

Esta ideia da multiplicidade de imagens é válida tanto se falamos do teatro épico- dialético de Bertolt Brecht, cujo enredo é organizado de maneira a permitir ao espectador vislumbrar outras possíveis organizações e soluções a cada cena, quanto se pensarmos na imagem mítica de Antígona, que é retomada pelo dramaturgo alemão. Isso porque não há uma Antígona, mas uma multiplicidade de leituras e releituras, de imagens e imaginários, que são sempre convocados e reconvocados quando se coloca em cena a personagem. Antígonas, pois, são muitas, e cada uma delas pode ser lida como uma imagem dialética, com suas inscrições de história, com suas múltiplas leituras e visibilidades.

O distanciamento que Brecht teve no momento do exílio e que o permitiu elaborar, por exemplo, os fotogramas com imagens de guerra, e estabelecer montagens de imagens que continham em si outras possíveis leituras, é o distanciamento que ele deseja que o espectador adquira em seu teatro. Que veja ali uma ação e possa pensar também sobre as outras possibilidades de ação naquela circunstância. Que enxergue as contradições do personagem e reflita sobre como este poderia agir de diferentes formas. Que realize montagens, enfim, a partir do que é dado em cena; não se contente com o mundo apresentado ali, mas perceba-o como modificável.

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