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Ator Construtor

VI. Antonin Artaud

Figura carismática da história do teatro, ligada brevemente ao movimento surrealista, Antonin Artaud foi mais homem de teoria que de prática, embora tenha fundado o Teatro Alfred Jarry (1926-1928), juntamente com Roger Vitrac, tendo encenado um número reduzido de peças de entre as quais a adaptação da obra de Shelley Les Cenci, de 1935, é recordado como a mais significativa. O seu misticismo e linguagem fantástica um tanto vaga fascinou durante décadas muitos praticantes das artes de palco que encontraram nos seus escritos uma liberdade criativa muito distante da visão aristotélica do teatro.

Tal como todas as expressões de vanguarda anteriormente referidas, Artaud opunha-se à tradição ocidental e respetiva cultura empedernida que, na sua ótica, era

contrária à verdadeira cultura que deveria ser primitiva e espontânea. Esta cultura ocidental consagrada era a grande influência na base do teatro que então se fazia e que Artaud desprezava, uma vez que o considerava vazio de espírito, embora demasiado carregado no que tocava à configuração cénica e espacial, opinião que se destaca, desde já, como uma crítica da estética realista e convenções de teatro burguês. Contudo, Artaud refere a necessidade e o seu desejo pessoal de recuperar um certo ambiente sombrio presente nas tragédias gregas — uma importante parcela da tradição cultural ocidental — para formar o seu novo teatro. Este teatro procurado por Artaud fazia uso de todos os recursos possíveis de se utilizar em palco — gestos, sons, luzes, barulhos (ARTAUD 1994: 12) —, bem como de uma radical desconstrução da linguagem e consequente afastamento das formas aristotélicas que eram, como referido no primeiro capítulo, centradas em textos com um enredo logicamente encadeado e discurso racional.

O seu esforço de edificação de uma nova estética teatral pretendeu traduzir- se em um teatro que tivesse um efeito semelhante ao de uma praga quando esta contagiava uma localidade. Por outras palavras, Artaud pretendia que o espetáculo se repercutisse em um efeito caótico de destruição da ordem de tal forma que levaria à libertação e purificação dos vivos. O seu teatro pretendia, deste modo, ser um veículo para a desintegração da ordem social vigente; a burguesa, que, tal como acontecia com o teatro que dela brotava, Artaud pretendia ver destruída. A praga, tal como o seu teatro, poria a descoberto a desordem latente, levando-a ao extremo e libertando tanto conflitos como o inconsciente reprimido, manifestando-se como uma crise total após a qual nada resiste para além da morte ou purificação extrema (ARTAUD 1994: 31). Outra consequência a advir deste espetáculo praga prende-se com a revelação ao homem da sua dimensão mais sombria e mais escondida, facultando-lhe uma noção mais verdadeira de si mesmo que o convidaria a agir, face

ao destino, de forma superior e heróica, como aconteceria, talvez, com a tragédia clássica.

A apologia da cultura oriental em detrimento da ocidental constitui um dos

leitmotiv da obra artaudiana. No teatro ocidental que, então, era regido

exclusivamente pela ditadura do discurso não havia o devido lugar para os elementos que ele considerava essenciais à teatralidade, como a linguagem do gesto, a mímica, a pantomima, as posturas, atitudes, entoações objetivas, em suma, tudo o que era especifico da teatralidade (ARTAUD 1994: 40). Artaud encontrou todos estes elementos conjugados de forma equitativa, bem como a distância necessária perante o drama psicológico, no teatro oriental, em especial no de Bali, situado no extremo oposto do teatro burguês e que Artaud descreve da seguinte forma:

In the Oriental theater of metaphysical tendencies, as opposed to the Occidental theater of psychological tendencies, this whole complex of gestures, signs, postures, and sonorities which constitute the language of stage performance, this language which develops all its physical and poetic effects on every level of consciousness and in all the senses, necessarily induces thought to adopt profound attitudes which could be called metaphysics-in- action (ARTAUD 1994: 44).

Não era apenas o distanciamento do texto dado pela linguagem cénica do teatro de Bali que Artaud admirava, uma vez que apreciava, de forma semelhante, a dimensão ritualística em que aquele se baseava por ter preservado uma tradição milenar que continha em si os segredos da verdadeira teatralidade expressados através de uma mistura de dança, música e pantomima. Contudo, o teatro de Bali não descurava a dimensão mais próxima do teatro ocidental, dando alguma

importância, também, ao enredo.É com as palavras de Artaud, espectador atento e fascinado, que aqui se esboça uma caracterização deste teatro:

[It] begins with an entrance of phantoms; the male and female characters who will develop a dramatic but familiar subject appear to us first in their spectral aspect and are seen in that hallucinatory perspective appropriate to every theatrical character, before the situations in this kind of symbolic sketch are allowed to develop. (…) mechanically rolling eyes, pouting lips, and muscular spasms, all producing methodically calculated effects which forbid any recourse to spontaneous improvisation, these horizontally moving heads that seem to glide from one shoulder to the other as if on rollers, everything that might correspond to immediate psychological necessities, corresponds as well to a sort of spiritual architecture (…) (ARTAUD 1994: 53-55).

Outro aspeto que seduziu profundamente Artaud e que é, de certa forma, referido na citação anterior, relaciona-se com a preponderância absoluta do papel do encenador cujo poder criativo neutralizava o poder do texto. Era esse o nível de controlo do espetáculo que Artaud pretendia alcançar, não deixando margem para improviso. Esta presença dominadora do encenador implicaria uma curtíssima margem de manobra para o ator que, apesar de essencial ao espetáculo, seria apenas um títere, estatuto que, certamente, encheria de orgulho Gordon Craig.

Os temas do teatro de Bali eram vagos, abstratos e muito gerais, ganhando vida apenas por meio dos artificios de palco, que se impunham perante os sentidos através de uma utilização diferente do gesto e da voz, e contribuiam para um afastamento da função de lazer, tão comum no teatro ocidental. O teatro balinense

estava longe de ser um divertimento, revestindo-se de uma qualidade cerimonial que pretendia criar estados espirituais afastados da realidade quotidiana.

Para Artaud, o ocidente havia prostituido a ideia de teatro (ARTAUD 1994: 37), facto que encarava como consequência de este revolver essencialmente em redor da dimensão literária, oferendo ao texto o lugar de topo na hierarquia dos seus constituintes, uma realidade que se esbateu desde então, mas que durante séculos regeu a convenção teatral no ocidente. A desilusão de Artaud com esta supremacia do texto no teatro vem do facto de ele não o considerar como um elemento característico do palco, mas antes como algo exclusivamente literário que pertencia a uma esfera artística completamente diferente. O teatro precisava de procurar a sua própria linguagem; uma linguagem concreta e física, construída por tudo o que pudesse ocupar o palco e que tivesse por alvo primeiro os sentidos, em vez de encarar a razão como filtro primário, como sucedia com o discurso. Esta linguagem direcionada para os sentidos deveria, acima de tudo, satisfazê-los; preenchê-los, por meio de uma poesia do espaço distinta da da palavra, que materializaria a nova linguagem necessária ao teatro que Artaud idealizava e que tinha por objetivo a produção de imagens materiais equivalentes às palavras, isto é, teria por objetivo a criação dos hiéroglifos referidos, por várias vezes, nos seus textos críticos. Esta poesia espacial foi definida por Artaud da seguinte forma:

(…) this poetry in space capable of creating kinds of material images equivalent to word images. (…) This very difficult and complex poetry assumes many aspects: especially the aspects of all the means of expression utilizable on the stage, such as music, dance, plastic art, pantomime, mimicry, gesticulation, intonation, architecture, lighting, and scenery (ARTAUD 1994: 38-39).

Para que esta linguagem pura, de valor ideográfico, fosse eficaz necessitava de ser concreta, ou seja, de produzir significado de forma objetiva através da sua presença ativa em palco. Por conseguinte, Artaud não admitia a presença em palco de elementos meramente superficiais e decorativos, alheios à produção de significado que poderia ser criado por meio de combinações de linhas, formas, cores, objetos no seu estado natural, mas também através de uma linguagem do gesto.

Tal como a praga e o teatro oriental, a crueldade constitui outro conceito central na sua obra, que o próprio Artaud sente necessidade de clarificar por não coincidir com a noção convencional do termo. A palavra crueldade deveria ser tomada num sentido mais amplo e não na sua dimensão de agressividade física, uma vez que, para ele, significava rigor, intenção e decisão implacáveis, irreversibilidade e determinição absoluta perante o espectador (ARTAUD 1994: 101). O teatro da crueldade deveria ser, acima de tudo, um veículo de agitação dos sentidos e dos nervos do espectador, que era, literalmente, o elemento central à volta do qual o espetáculo acontecia. Este espetáculo total fazia-se por meio dos mais variados recursos, desde som, a luz, objetos modificados, gestos, movimentos, cores, etc. O trabalho sonoro seria constante e estimularia o público por meio de sons, barulhos e gritos orquestrados não apenas pelo que representariam, mas também pela sua capacidade de ativação e agressão dos sentidos. A luz seria trabalhada de forma semelhante ao estímulo sonoro, salientando a sua capacidade sugestiva e poder de invasão dos sentidos. Lado a lado com o jogo de luz e sonoplastia surgiria o dinamismo da ação, que não pretendia ser mera reprodução da vida quotiana, mas antes comunicação de forças em estado puro. Artaud propôs, assim, um teatro feito de imagens violentas que agrediam e hipnotizavam os sentidos do espectador, longe

da psicologia, do realismo e do discurso racional como elemento central; um teatro que encenasse forças naturais e que provocasse no espectador um transe sensorial.

O ator da crueldade seria, como já foi referido, um instrumento do encenador, envergando figurinos geométricos, distintos da indumentária moderna, de reminiscências ritualistas, que o fariam parecer um hieróglifo animado. O trabalho deste ator era baseado numa certa objetividade e economia do gesto, bem como num domínio fortíssimo da mímica, levado a cabo num espaço radicalmente diferente do espaço teatral convencional, que revolucionaria a relação entre palco e auditório. O espetáculo total que Artaud defendia deveria ter lugar num espaço amplo, com um lugar central reservado ao núcleo da ação — mas que não era efetivamente um palco — e que permitisse rodear o espectador por todos os lados, destruindo qualquer barreira entre público e atores, maximizando a comunicação entre ambos, de formar a tornar o espectador mais ativo. A arquitetura ideal para um espetáculo total é descrita por Artaud como um espaço aberto,

(…) enclosed by four walls, without any kind of ornament, and the public will be seated in the middle of the room, on the ground floor, on mobile chairs will allow them to follow the spectacle which will take place all around them. In effect, the absence of a stage in the usual sense of the word will provide for the deployment of the action in the four corners of the room. Particular positions will be reserved for actors and actions at the four cardinal points of the room. The scenes will be played in front of whitewashed wall-backgrounds designed to absorb the light. In addition, galleries overhead will run around the periphery of the hall as in certain primitive paintings. These galleries will permit the actors, whenever the action makes it necessary, to be pursued from one point in the room to

another, and the action to be deployed on all levels and in all perspectives of height and depth (ARTAUD 1994: 96-97).

Os temas do teatro da crueldade eram escolhidos com o espetáculo em mente, sendo constituídos por matérias universais ou históricas, do conhecimento geral, para que o público não se perdesse na dimensão racional do espetáculo ao focar a sua atenção na compreensão do enredo. Este espetáculo incluiria música, dança, pantomima e mímica, fazendo uso de movimento, harmonia e ritmo sem obedecer a qualquer hierarquia.

Em suma, o teatro que Artaud procurava deveria ser altamente estimulante a nível sensorial e cuidadosamente planeado de uma ponta à outra. A sua natureza surpreendente seria composta por súplicas, gritos, aparições, figurinos de inspiração ritualista, que se encontrava também no trabalho da voz, harmonia, ritmo, música, objetos de dimensões peculiares, cores, movimentos, elementos de uma extrema diversidade que se conjugaria para a produção de uma linguagem teatral pura, formando hieróglifos produtores de sentido, como alternativa à forte presença do texto. Todavia, apesar do manifesto desgosto em relação à autoridade do texto no teatro ocidental, Artaud não pretendia bani-lo por completo do seu espetáculo ideal, mas antes desconstruir a linguagem de uma forma reminiscente da teoria surrealista, concedendo-lhe apenas a importância que lhe é reservada no onírico. O teatro por ele defendido materializava-se, desta forma, num espetáculo primitivo e intemporal, dotado de uma universalidade próxima da da tragédia ática.

Capítulo III

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