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Ecos de vanguarda: um esboço para uma compreensão das novas dramaturgias

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Academic year: 2021

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Mestrado em Estudos de Teatro

Ecos de Vanguarda

Um esboço para uma compreensão das novas dramaturgias

Eunice Lopes Tudela de Azevedo

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

ESTUDOS DE TEATRO

Ecos de Vanguarda

Um esboço para uma compreensão das novas dramaturgias

Eunice Lopes Tudela de Azevedo

Dissertação orientada pela Prof. Vera San Payo de Lemos e apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para a obtenção do grau de Mestre em estudos de Teatro

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Resumo

As novas dramaturgias como um afastamento radical em relação ao teatro dramático, serão, juntamente com uma abordagem seletiva da vanguarda histórica, os focos centrais das páginas que se seguem. A viagem que se realizará através dos vários movimentos de vanguarda da primeira metade do século XX, pretende salientar as respetivas contribuições para a formação de elementos característicos das novas dramaturgias.

Com o auxílio da produção teórica de Hans-Thies Lehmann, far-se-á uma incursão pelas mais variadíssimas concretizações das novas dramaturgias, de maneira a definir os seus traços principais e de que forma eles se reportam à vanguarda, bem como a sua aplicação prática em espetáculos contemporâneos. Parte-se de uma breve análise da Poética de Aristóteles, enquanto texto fundador do drama; um conceito essencial para levar a cabo o confronto entre teatro dramático e teatro pós-dramático, para uma melhor caracterização deste último.

Palavras-chave: vanguarda, pós-dramático, novas dramaturgias, teatro contemporâneo.

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Abstract

The main concerns of the present dissertation are the new dramaturgies and their radical demarcation when it comes to dramatic theatre, as well as a selective approach to the historical avant-garde that aims at underlining its possible contribution to the formation of elements that are distinctive of the new dramaturgies.

With the aid of Hans-Thies Lehmann's theatrical theory, an incursion through the vast array of possible embodiments of these new dramaturgies will be attempted in a way that allows one to define their most bold stylistic traits and how they can be traced back to the experimentation of the avant-garde. An analysis often accompanied by practical contemporary examples of how these traits are applied in today's theatre will be attempted as well. Our journey begins with a brief presentation of the dramatic principles enunciated in the pages of Aristotle's Poetics that prove themselves essential to the comparison between dramatic and postdramatic theatre in an effort to best describe the latter.

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Agradecimentos

Queria agradecer, antes de mais, a paciência, a disponibilidade e a generosidade da Prof. Vera San Payo de Lemos, que tão bem me acompanhou neste percurso. Deixo, aqui, uma palavra de agradecimento, também, à Prof. Maria Helena Serôdio, com quem dei os primeiros passos na descoberta do Teatro e cujo rigor, competência e conhecimento tanto contribuíram para o momento em que hoje me encontro.

Não poderia, também, esquecer a minha segunda casa, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, espaço de crescimento por excelência, e a todos aqueles que, de alguma maneira, contribuíram para a minha formação, em especial o Prof. José Pedro Serra e o Prof. Joaquim Manuel Magalhães, figuras fundamentais no meu percurso académico.

Por último, mas não menos importante, agradeço a meu pai e minha mãe, pela liberdade e respeito concedidos à escolha do meu próprio caminho, pelo apoio — da mais variada natureza —, pela dedicação, pela paciência inabalável e pelo constante esforço sem o qual nada disto seria possível.

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Theatre was and is searching for and constructing spaces and discourses liberated as far as possible from the restraints of goals (telos), hierarchy and causal logic.

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Índice

Introdução 7

Cap. I — Fundações do Drama: A Poética 11

Cap. II — A Vanguarda 21

I. Vanguarda e Modernidade 21

II. Ubu Roi 23

III. O Futurismo Italiano 28

IV. O Caso Russo 40

1) Futurismo Russo 40

2) Outubro Teatral 46

3) Agit-prop e Auto-ativismo 87

V. DADA 105

VI. Antonin Artaud 113

Cap.III — Novas Dramaturgias 121

Conclusão 135

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Introdução

A presente dissertação pretende ser uma espécie de esboço para um panorama explicativo das novas dramaturgias, construído através da exposição de alguns dos seus traços mais marcantes e não tanto uma exploração exaustiva e absoluta das manifestações do pós-dramático no teatro contemporâneo, tarefa que seria, de certo, impossível em tão reduzido número de páginas.

O termo pós-dramático utilizado por Hans-Thies Lehmann, na sua obra

Postdramatisches Theater, para apelidar as novas manifestações teatrais que vêm

surgindo desde o final dos anos sessenta apresenta-se um tanto restritivo e com uma dimensão negativa dada pela utilização do prefixo "pós", uma vez que este transmite uma ideia de negação e rutura radical com o passado dramático do teatro, facto que não corresponde à realidade. O próprio autor de O Teatro Pós-dramático sente uma necessidade de especificar a natureza do prefixo, quando declara que o termo não pressupõe nenhuma negação cega da tradição teatral, mas antes uma prática que pretende ir para além do dramático, mas que mantém, frequentemente, uma ligação

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com essa dimensão mais convencional, ainda que não seja para dele se distanciar.1 Devido a esta possibilidade de equívoco, mas também por ser uma nomenclatura mais abrangente no que toca às possíveis realizações de um teatro cujo cerne não é mais o drama, o termo "novas dramaturgias" é aqui preferido em detrimento do "pós-dramático". A obra de Lehmann será encarada, nas próximas páginas, como uma base extremamente útil para a elaboração do roteiro das novas dramaturgias, o que não implica que a autora da presente dissertação subscreva inteiramente as teses desenvolvidas pelo teórico alemão, que se apresentam, por vezes, um pouco rígidas na sua aplicação a um tema que é, por natureza, bastante livre e camaleónico e, por isso, difícil de compartimentar em conceitos fixos.

A presente incursão pelas novas dramaturgias pretende não só dar a conhecer melhor esta realidade, ilustrando, sempre que possível, a sua realização prática com exemplos, tanto nacionais como estrangeiros, mas também abordar o seu relacionamento com as experimentações teatrais levadas a cabo pela vanguarda histórica. Este momento de afastamento em relação ao passado dramático do teatro será abordado com vista a uma análise da extensão da influência que os movimentos de vanguarda tiveram na construção das novas formas da arte do palco. Contudo, ao abordar as vanguardas e a rutura que elas iniciaram é necessário ter presente que nem todas as inovações que com elas surgiram têm um caráter completamente original, uma vez que são conhecidas as influências da Commedia dell'Arte, dos mistérios medievais ou do teatro isabelino, bem como de outras culturas para além da ocidental. Digno de nota é, também, alguma divergência em relação ao radicalismo dos manifestos produzidos pelos vários movimentos no que toca à realização teatral, uma vez que não apresentaram experimentações tão

                                                                                                               

1 Cf. Hans-Thies Lehmann, Postdramatic Theatre, Oxon, Routledge, 2009, pp.26-27.

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profundamente radicais como seria de se esperar, visto que frequentemente se identificava ainda uma matriz dramática em algumas das concretizações teatrais da vanguarda. De fora da análise da pré-história das novas dramaturgias ficarão, por uma questão de economia de espaço físico e de restrição de objeto de estudo, figuras influentes como Edward Gordon Craig, Erwin Piscator ou Bertolt Brecht, bem como o Teatro do Absurdo ou o Surrealismo que, mesmo constituindo este último parte integrante da vanguarda histórica, não teve grande expressão prática no campo teatral, pelo que o ponto de contacto mais próximo da estética surrealista será Artaud.

Para dar início a esta reflexão será necessário, num primeiro momento, definir, de forma sumária, em que consiste o teatro dito dramático, tratado como ponto de partida através da análise da Poética de Aristóteles, no primeiro capítulo da presente dissertação, de forma a servir de termo de comparação para melhor definir o objeto de estudo das próximas páginas. Segue-se um segundo capítulo, construído cronologicamente, em que se aborda a vanguarda histórica, começando pela sua ligação com a modernidade, procedendo, depois, à exposição dos movimentos com maior expressão teatral que a constituíram — o Futurismo Italiano e o caso russo, que compreende não apenas o Futurismo, mas também as várias experimentações que se seguiram à Revolução de Outubro, e o Dada —, bem como à abordagem da prática teatral e reflexão estética de Alfred Jarry e Antonin Artaud. Alfred Jarry é destacado por Ubu Roi, considerado por muitos como o primeiro espetáculo de vanguarda, devido à sua natureza profundamente disruptiva em relação ao teatro convencional, e Artaud é referido principalmente pelos seus textos teóricos em que este expressa o seu desejo de ver realizado um teatro livre da estrutura empedernida do drama ocidental, fruto de um teatro que havia esquecido a sua especificidade. O teatro artaudiano seria completamente pensado a partir da

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dimensão do espetáculo, que se construía com uma matriz sensorial — não racional como o drama logocêntrico — que envolvesse por completo o espectador de forma a abalá-lo por meio da saturação dos seus sentidos.

O terceiro e último capítulo, parte de uma definição sumária do teatro dramático, bem como de uma breve síntese da rutura trazida pela vanguarda, para chegar ao tal esboço que pretende servir de base para a análise das transformações trazidas pelo abandono do texto como cerne do teatro. A partir das alterações salientadas pretende-se compreender quais as principais consequências da desconstrução da hierarquia do dramático que se manifestaram ao nível do estatuto do espectador, do papel do ator, e dos elementos que compõem o espetáculo teatral — o espaço, a cenografia, a sonoplastia, a iluminação, o texto e a linguagem cénica — , bem como salientar a influência das novas tecnologias e meios de comunicação e de como elas se articulam com a cena.

As possibilidades de aplicação do pós-dramático à realidade do espetáculo são incontáveis. O desaparecimento do jugo literário abriu todo um novo mundo que pressupõe uma liberdade quase total para a conceção e produção de espetáculos, para a descoberta de novas formas de receção do momento teatral, para a revisitação de textos clássicos, para o trabalho do ator, do encenador, e até do autor. Constitui-se, assim, uma abertura notável, num momento em que o Teatro encontrou um amplo espaço para além da rigidez da razão, que culmina na oportunidade de este se reinventar, de se reconstruir como bem entende. As novas dramaturgias constituem, de certa forma, um retorno do Teatro à sua infância, momento em que, saído de uma dimensão cerimonial, o seu cerne era ele mesmo.

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Capítulo I

Fundações do Drama: A Poética

Na sua vasta obra, Aristóteles tratou de temas tão diversos quanto física e retórica ou música e política. Alguns desses temas estavam intrinsecamente ligados à pólis, como é o caso do drama, cerne da Poética, obra central deste capítulo. A reflexão presente na obra nasce após o século de ouro da tragédia ática, sendo posterior à representação dos grandes textos dramáticos da Antiguidade e, como tal, retira delas as características que definem o drama, não estabelecendo, a priori, o paradigma sobre as quais elas se baseiam, não apresentando, portanto, uma natureza normativa2. Contudo, com o passar dos séculos, a Poética acabou por dar origem a tratados normativos, estabelecendo regras que se empederniram com as inúmeras leituras e releituras do texto feitas pela Renascença e classicismo francês.

Nesta obra em particular, Aristóteles propõe-se tratar da

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(...) arte poética em si e das suas espécies, do efeito que cada uma destas espécies tem; de como se devem estruturar os enredos, se se pretender que a composição poética seja bela; e ainda na natureza e do número das suas partes. E falaremos igualmente de tudo o mais que diga respeito a este estudo, abordando, naturalmente, em primeiro lugar, os princípios básicos (ARISTÓTELES 2007: 37).

Os princípios básicos referidos pelo autor são, nomeadamente, a mimesis e a

katharsis, uma vez que o primeiro constitui o fenómeno através do qual o drama é

possível e o segundo o seu objetivo último e extraliterário, já que uma tragédia apenas se torna completa fora de si mesma, ao provocar no seu espectador ou leitor esse sentimento de purificação.

Aristóteles não foi o primeiro a abordar o tema da mimese, uma vez que Platão já havia introduzido o conceito na República — a propósito da questão da presença dos poetas na sua cidade perfeita e se esta seria ou não nociva para a ordem pública e boa formação dos cidadãos — embora de uma forma bastante diferente daquela que podemos encontrar na Poética. Para Platão, a mimese não é mais que uma simples imitação sem technè, "duas vezes mais distante do princípio ordenador da realidade" (SERRA 2006: 107) — a Ideia —, presente apenas nos casos em que o poeta se fragmenta e dissimula a sua própria voz assumindo a pele de outras personagens, fazendo crer ao leitor/espectador que não é ele, mas um outro que lhes fala. Deste modo, para Platão, nem toda a produção poética tem por base a mimesis, uma vez que aquela pode ser levada a cabo também por meio de diegesis, ou seja, através da narração simples, em que o poeta assume a sua voz quando narra os acontecimentos, evitando a multiplicidade. A mimese é, assim, apresentada na República com uma

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conotação negativa3, uma vez que se afasta da verdade — tão cara a Platão, contrariamente a Aristóteles que prefere a constante presença da verosimilhança — já que pode dificultar a boa formação dos jovens quando o objeto de imitação não é de índole superior e deturpar a noção do real dos cidadãos, algo que não vemos no pensamento de Aristóteles, pois reabilita o conceito e, consequentemente, a produção artística que dele nasce.

Para Aristóteles, a mimese não é uma simples cópia do real e a poesia não é uma atividade desprovida de technè, mas antes uma obra produzida por meio de um verdadeiro conhecimento aplicado. Contrariamente ao pensamento de Platão, a mimese é, na Poética, apresentada com um fenómeno natural4, inseparável da natureza humana, através do qual o homem se faz homem, levando a cabo a sua aprendizagem, mas também porque retira da mimesis um certo prazer. Aristóteles não faz a distinção entre diegesis e mimesis, pois para este autor tudo é mimese, sendo esta última considerada o fenómeno na base de toda a produção artística5.

Contudo, é feita a distinção entre modo, objetos e meios para efetuar a mimese, que variam consoante a arte em questão. Entre os meios6 através dos quais se pode realizar a mimese Aristóteles destaca "o ritmo, a melodia e o metro" (ARISTÓTELES 2007: 39), embora também possa ser levada a cabo por meio da cor, da imagem, do som, etc. Relativamente ao objeto da imitação, Aristóteles destaca o homem em ação — o objeto da mimese trágica por excelência —, ainda que, como já foi referido, consoante a arte, este possa variar. No que toca aos modos7 de imitação o autor distingue narração de representação, sendo esta última o modo identificado na mimese trágica e o primeiro o modo através do qual nasce a epopeia.

                                                                                                               

3 Cf. Pensar o Trágico, José Pedro Serra, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, p.135 4 Cf. Poética, Aristóteles, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, p.42.

5 Cf. ibidem, p.38. 6 Cf. ibidem, p.39

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A mimese é, portanto, um fenómeno natural de representação do real através do qual é possível a produção artística, baseando-se num jogo de semelhança e dissemelhança com a realidade. É através da mimese que o poeta forja um novo universo, uma realidade forjada num plano distinto do do seu autor, e, consequentemente, fictício para o espectador que necessita de ter a plena consciência dessa dimensão ilusória, de modo a que experiencie a catarse.

Chegamos, assim, a outro aspecto essencial da teoria aristotélica: a catarse. Este polémico conceito8 é encarado como o objetivo último da tragédia, devendo ser experienciada pelo espectador ou leitor de modo a que neste ocorra a sublimação do temor e compaixão. Estas paixões são provocadas através de uma identificação com os heróis trágicos — indivíduos "que não se distinguem nem pela sua virtude nem pela justiça; tão-pouco caem no infortúnio devido à sua maldade ou perversidade" (ARISTÓTELES 2007: 61) — em quem o espectador reconhece os traços de uma humanidade universal, apesar de serem indivíduos de condição nobre e elevada. Deste modo, o espectador sente receio que desgraças semelhantes lhe possam acontecer, mas também compaixão ao constatar que um ser, nem bom, nem mau, é vítima de um "imerecido castigo que, ao abater-se sobre o nosso semelhante, revela a nossa fragilidade" (SERRA 2006: 170). Assim,

A catarse da piedade e do terror implica, pois, uma aprendizagem destas emoções; esta aprendizagem consiste numa clarificação, isto é, na conveniente e apropriada adequação da piedade e do terror aos objectos devidos, no tempo oportuno e de maneira correcta. A procura de uma habitualmente justa, equilibrada e proporcionada atribuição de piedade e

                                                                                                               

8 Cf. Pensar o Trágico, José Pedro Serra, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006,

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de terror às diversas situações é não só esforço educativo, como sinal de sabedoria (SERRA 2006: 284).

Deste modo, a catarse apresenta-se como um fenómeno de efeito esclarecedor e fomentador de equilíbrio, através do qual o espectador se liberta das paixões suscitadas pelo desenrolar da acção, mas também como um fenómeno próprio da tragédia, visto que é apenas a queda do herói trágico, a mudança da fortuna e o pathos que daí nasce que provocam tais sentimentos no espectador.

A já referida distância reconhecida entre realidade e ficção, entre plateia e palco, permite ao espectador viver de forma vicariante as emoções que, quando realmente experienciadas, seriam demasiado dolorosas e difíceis de comportar impossibilitando, assim a sublimação das mesmas e consequente aprendizagem, ou seja, a catarse. Essa tão necessária distância, bem como a identificação anteriormente referida, nasce da criação de um universo que apesar de real não o é, uma vez que é apenas uma imitação trabalhada do real, o que significa que a catarse vem no prolongamento da mimese trágica.

Vimos já que a catarse é um aspecto específico e fulcral ao género trágico do qual Aristóteles apresenta uma definição um tanto vaga, embora revelando alguns conceitos fulcrais:

A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da acção e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões (ARISTÓTELES 2007: 47-48).

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Aristóteles apresenta, então, a tragédia como a mimese de uma ação, levada a cabo por meio da representação e não da narração — reservada à epopeia —, que deverá ser elevada e completa, introduzindo, assim, a importante unidade da ação — a única realmente abordada por Aristóteles, uma vez que a 'Lei das Três Unidades' provém de uma releitura da Poética feita por Castelvetro no séc. XVI. O autor refere, também, a linguagem adequada ao género trágico, especificada como "a que tem ritmo, harmonia [e canto]", e que deverá ser embelezada e composta "por ‘formas diferentes’", isto é, deverá ser composta por "algumas partes executadas apenas com metros, enquanto outras incluem o canto.” (ARISTÓTELES 2007: 48). Por último, Aristóteles faz referência ao objetivo da tragédia, a catarse, atingida, como já foi referido, através da experiência de sentimentos como o temor e compaixão.

Relativamente à tragédia Aristóteles apresenta não apenas as suas divisões formais9, mas também, e principalmente, os elementos que a constituem: enredo, caracteres, elocução, pensamento, espectáculo e música. Estas seis partes que definem a tragédia estão hierarquicamente organizadas10, por importância, pelo próprio autor, que dá clara primazia ao mythos — o enredo —, isto é, à estruturação dos acontecimentos.O enredo é considerado a parte mais importante, uma vez que o objeto imitado tem por base a ação humana, e é essa mesma ação que, por meio de um desenrolar natural, provoca o temor e compaixão que conduzem à catarse, pelo que é essencial que o enredo seja bem estruturado, de acordo com o princípio da necessidade e verosimilhança. Estes dois conceitos chave da Poética são constantemente frisados por Aristóteles, não apenas no que toca à estruturação dos

                                                                                                               

9 “(...) quantitativamente, as partes em que se divide a tragédia são estas: prólogo, episódio, êxodo, parte coral e,

dentro desta, o párodo e o estásimo, que são comuns a todas as tragédias (...)." Poética, Aristóteles, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, p.59.

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acontecimentos, mas também em relação à construção dos caracteres que constituem o segundo elemento mais importante da tragédia.

Aristóteles apresenta o carácter como "o que nos permite dizer que as pessoas que agem têm certas qualidades" (ARISTÓTELES 2007: 48). Os caracteres são factores importantes no processo de identificação do auditório com a cena, devendo ser bons, mas não excessivamente, para que seja possível tal processo, mas também para que o infortúnio que se abate sobre o herói trágico não cause repulsa no espectador, mas antes compaixão e temor.

Em seguida é referido o pensamento, expresso pela linguagem, que "consiste em ser capaz de exprimir o que é possível e apropriado" (ARISTÓTELES 2007: 50), seguido da elocução que é apresentada como a capacidade de "comunicação do pensamento por meio de palavras" (ARISTÓTELES 2007: 50). As duas últimas partes que constituem o drama são, claramente, as mais negligenciadas por Aristóteles, uma vez que o efeito da tragédia pode ser cumprido sem recurso ao espectáculo e música, sendo esta última vista como "o maior dos embelezamentos" (ARISTÓTELES 2007: 50).

É na recusa da centralidade do opsis — o espectáculo — que Aristóteles funda a superioridade do género trágico perante o épico, defendida nas últimas páginas da Poética:

[A] tragédia, tal como a epopeia, mesmo sem nenhum movimento, produz o seu efeito próprio: de facto, a sua qualidade é visível através da leitura. (...) E depois, é melhor porque tem tudo que a epopeia tem (já que até pode usar o mesmo metro) e tem ainda um elemento que não é de menos importância, como a música [e o espectáculo], através dos quais se produzem os mais vivos prazeres. Por conseguinte, tem vivacidade tanto na leitura como nas

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Embora não negue alguma importância à dimensão do espectáculo, aquela é sempre relativa, já que nem sequer é considerada uma questão do domínio da arte do poeta, mas antes do domínio do corego, que assume a responsabilidade da produção do espetáculo.

No que toda à estruturação do enredo, Aristóteles insiste, como já foi aqui referido, no princípio da verosimilhança e da necessidade, apresentado como o que distingue o poeta do cronista, uma vez que este último relata as coisas como aconteceram, estando preso aos factos, ao passo que o poeta relata o que poderia ter acontecido, da forma mais credível possível, mesmo que isso signifique relatar algo que não é verdade ou impossível. O importante é a verosimilhança (e não a verdade), para que o espectador acredite no que está a ver e seja envolvido pelos acontecimentos, tudo para que seja criado um sentimento de identificação com o herói trágico e com a ação que este pratica, de modo a que sejam produzidos temor e compaixão, e, consequentemente, a catarse.

O enredo deve ser formado por episódios que sigam uma sequência lógica de causalidade, e que formam uma ação una e completa, composta apenas pelos acontecimentos essenciais e de acordo com a verosimilhança, o que não deixa espaço para o irracional não justificado11. Dentro do enredo Aristóteles distingue aqueles que são simples "em que os acontecimentos vão progredindo lenta mas seguramente no sentido da inversão da fortuna, sem surpresa nem paradoxo" (SERRA 2006: 152), como se verifica em As Troianas, de Eurípides, daqueles que são compostos por ações complexas, onde têm lugar a peripécia e o reconhecimento. Entende-se por peripécia "a mudança dos acontecimentos para o seu reverso, mas isto, como costumamos dizer, de acordo com o princípio da verosimilhança e da necessidade" e por reconhecimento "é a                                                                                                                

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passagem da ignorância para o conhecimento" (ARISTÓTELES 2007: 57), acontecimentos sempre regidos pela necessidade e verosimilhança.

Em suma, um enredo bem elaborado, para Aristóteles, é aquele que é

(...) simples de preferência a duplo, como pretendem alguns, e que a mudança se verifique, não da infelicidade para a ventura, mas, pelo contrário, da prosperidade para a desgraça, e não por efeito da perversidade, mas de um erro grave, cometido por alguém dotado das características que defini, ou de outras melhores, de preferência a piores.” (ARISTÓTELES 2007: 61).

Aristóteles introduz, nesta passagem, um outro conceito de definição polémica — uma vez que pode ser interpretado de várias formas12 —, que está na origem da

mudança da fortuna do herói trágico: hamartia. Entendido como um "erro grave" (ARISTÓTELES 2007: 23), não numa acepção moral, mas antes no sentido de errar o julgamento, de modo que "a queda não remete directa e primordialmente para uma culpa que se desdobrava no castigo, mas resulta de um equívoco, de um erro de cálculo, do qual o agente é mais vítima do que causador" (SERRA 2006: 165), sublinhando, assim, a vulnerabilidade humana e a arbitrariedade da existência.

Para além da tragédia, Aristóteles aborda, também, a epopeia, em muito semelhante à tragédia13, divergindo não só na extensão e capacidade de abarcar múltiplos episódios — algo dificultado pela representação da tragédia —, como no modo através do qual a mimese se constrói: a narração. Relativamente à comédia, igualmente comparada com a tragédia, a distinção de géneros é feita apenas através do

                                                                                                               

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objeto imitado, já que na comédia são representados "caracteres inferiores" (ARISTÓTELES 2007: 46).

Apesar de centrada na tragédia, esta obra contém em si diretrizes aplicáveis a todo o drama14, e não apenas ao da Antiguidade Clássica, já que se registam repercussões desta obra durante séculos, mesmo quando o intuito consistia em quebrar as formas tradicionais, como no caso de Brecht, que, mesmo querendo inovar, fê-lo por oposição direta ao teatro aristotélico, forjando o seu teatro épico.

Em suma, os conceitos que importam salientar são a mimese aristotélica, a definição de tragédia dada por Aristóteles e os elementos que a constituem, bem como o fraco papel do espectáculo na sua composição, por oposição à importância dada ao enredo que deverá ser bem estruturado, sempre de acordo com a necessidade e verosimilhança. Esta extrema importância dada ao enredo traduz-se na centralidade do texto, facto que resulta numa noção de teatro principalmente literária e não tanto performativa.

                                                                                                               

14"S'il traite, dans La Poétique, surtout de la tragédie qui est, dans l'Antiquité, le genre dramatique majeur, la

définition que nous citons ici est pertinente pour toute pièce de théâtre, quels que soient le genre et l'époque auxquels elle appartient." Les Grandes Théories du Théâtre, Marie-Claude Hubert, Armand Colin, Paris, 2008.

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Capítulo II

A Vanguarda

I. Vanguarda e Modernidade

O termo vanguarda tem a sua origem na palavra avant-garde, de origem francesa, utilizada para definir, num contexto militar, a linha da frente de uma ofensiva de guerra, cuja responsabilidade consiste em liderar os restantes soldados para a batalha. Aplicado ao campo artístico, o termo é usado, de forma semelhante, para definir artistas e movimentos que, apesar de terem assumido várias formas, constituíram sempre a linha da frente do progresso artístico, sendo, frequentemente, recebidos, num primeiro momento, de forma hostil por um público representativo dos costumes e valores que essa mesma vanguarda pretendia combater.

Apesar das inúmeras diferenças entre os vários movimentos de vanguarda, como veremos no desenrolar do presente capítulo, é possível constatar tantos outros pontos comuns.No entanto, parece haver um sintoma maior na base destes mesmos

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movimentos: a modernidade entendida como um conceito sócioeconómico, definida por Ben Singer da seguinte maneira:

(…) uma grande quantidade de mudanças tecnológicas e sociais que tomaram forma nos últimos dois séculos e alcançaram um volume crítico perto do fim do século XIX: industrialização, urbanização e crescimento populacional rápidos; proliferação de novas tecnologias e meios de transporte; saturação do capitalismo avançado; explosão de uma cultura de consumo de massa e assim por diante. (SINGER 2004: 95)

Segundo Singer, com o processo de industrialização e desenvolvimento da sociedade capitalista ocorreu um novo fenómeno de urbanização que levou à concentração, nas grandes metrópoles, de um elevado número de pessoas, muitas das quais gravitavam entre as indústrias e os espaços urbanos de lazer experienciando toda uma série de novas sensações produzidas pela vida da cidade, repleta de luzes, atrações, novos meios de transporte e um novo ritmo frenético até então desconhecido. Esta profunda transformação do mundo e do quotidiano do homem urbano, que se havia tornado "(…) marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador (…)" (SINGER 2004: 96), ocorreu num curto espaço de tempo, trazendo consigo a necessidade de desenvolvimento de um novo modo de lidar com o mundo, bem como de o apreender e expressar. Foi, em parte, essa tarefa que o movimento modernista tentou levar a cabo no campo artístico, onde, perante a incapacidade das formas antigas face a um mundo radicalmente diferente, tentou elaborar novas e surpreendentes formas de expressão.

A vanguarda, fenómeno heterogéneo, constituiu a dianteira do progresso artístico no início do século XX, tendo como objetivo primeiro a destruição da

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ordem burguesa — tanto ao nível dos valores sociais e políticos, como da expressão artística — abrindo, assim, caminho ao desenvolvimento de novas linguagens, novas formas e conteúdos que expressassem em pleno o novo estilo de vida e que exercessem um poder transformador sobre todos os setores da sociedade. Apesar de se confundir com o movimento modernista, não o esgota. Os modernistas, não obstante erguerem um espelho crítico perante a sociedade, não intervinham diretamente no domínio social ou político, nem promoviam, por meio da sua arte, a transformação da ordem mundial. De forma contrastante, a vanguarda atacava veementemente a ideologia dominante na sociedade burguesa, criticava as convenções estéticas em vigor e subvertia as instituições de produção e distribuição artísticas. Em suma, a vanguarda, constituída por pequenos grupos coesos de não conformistas, integrava o movimento Modernista, mas devido à postura radical e opções políticas adotadas pelos artistas que a compunham diferia, assim, da vertente mais comercial da cultura Modernista (BERGHAUS 2005: 15).

II. Ubu Roi

Será, certamente, uma tarefa árdua, se não impossível, a tentativa de determinar exatamente em que momento histórico teve início o movimento modernista — expressão artística das transformações sociais e culturais trazidas pelo processo de modernização — e a partir de que altura se começaram a fazer sentir manifestações da vanguarda na arte do palco. Contudo, parece impossível ignorar a contribuição de Alfred Jarry como um dos grandes pontos de partida da rutura.

Estreado em Paris, no Théâtre de l'Œuvre, dirigido por Lugné-Poë, em dezembro de 1896, Ubu Roi contou com apenas duas representações — um ensaio geral público no dia nove e a estreia no dia dez — perante um público de dimensões

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reduzidas composto, em parte, por amigos do autor. Mesmo nestas circunstâncias a reação à criação de Jarry foi, à semelhança de um motim, forte e maioritariamente negativa desde as primeiras falas controversas, reação semelhante à provocada pelo texto publicado no início desse mesmo ano, constituindo, assim, um dos maiores escândalos do teatro francês. Ubu, "(...) uma estranha e violenta comédia inspirada, sob uma perspectiva grotesca, no Macbeth shakespeariano" (MOLINARI 2010: 354), de curta duração, apresentava algum dinamismo e economia de meios, centrando-se no regicídio do Rei da Polónia levado a cabo por Mère e Père Ubu, personagens movidas pela ganância e estupidez.

A produção de Jarry cobriu-se, logo nos primeiros momentos, de formas profundamente anti-realistas, quando o próprio autor, envergando um figurino extravagante, que evocava o estilo clown, se dirigiu diretamente ao público, em jeito de prefácio, proferindo um discurso algo extenso num tom exagerado, através do qual partilhou importantes linhas da sua estética teatral e informaçao sobre o espetáculo. Alguma dessa informação revelava o local da ação — "As to the action which is about to begin, it takes place in Poland -- that is to say, nowhere." (JARRY, 2003: 3) — que reiterava as qualidades anti-realistas do espetáculo, uma vez que era constituído por uma tela onde havia sido pintado, de forma quase pueril, uma mistura de espaços interiores e exteriores — sendo possível, nestes últimos, notar uma clara mistura de regiões geográficas — onde muito pouco ou até mesmo nada fazia lembrar a Polónia. Este cenário único concebido para ser simples, ter um mínimo de adereços e alguma abstração de maneira a exigir ao espectador uma participação mais ativa através da sua imaginação. Terá sido, de igual forma, construído com o objectivo de se revestir de intemporalidade e universalidade, combatendo, assim, o realismo de palco, bastante comum no teatro de então. No combate ao realismo salienta-se também a entrada e saída em palco das

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personagens, que ocorria através de uma lareira, bem como a marca de mudança de cena levada a cabo por cartazes trazidos por um personagem, —"'Father time figure" (BERGHAUS, 2005: 26) — trajado de um negro formal. A economia de meios cénicos contagiou também o número de personagens, uma vez que Jarry utilizava um único ator como representante de um grupo — um soldado em vez de um exército inteiro —, outro aspecto que, juntamente com a música, combatia o realismo. A banda sonora, com ecos de feira, composta por Claude Terrasse, fora produzida apenas por um piano e alguma percussão, contrariamente à orquestra inicialmente pretendida.

Entre personagens representadas por atores reais, com uma dicção peculiar, envergando máscaras e movimentando-se de forma alusiva à marioneta, encontravam-se várias figuras relacionadas com o universo burguês — magistrats e

financiers —, que no terceiro acto transformar-se-iam em autênticas marionetas.Os figurinos, grotescos e pueris, reforçavam a linha anti-realista, não correspondendo muitas vezes à boa caracterização dos personagens, apresentando-se estes em vestes exageradas e excêntricas, como era o caso do próprio Père Ubu que, "com uma túnica cinzento-aço e um chapéu de côco na cabeça" (MOLINARI 2010: 354), se assemelhava, segundo as ilustrações originais, a uma esfera gigante da qual brotavam os membros de Firmin Gémier, ator principal.

Jarry procurou sempre o escândalo e formas de provocar um efeito de choque no público, algo construído em Ubu Roi pela convergência de todos os elementos do espetáculo, mas dado principalmente pelo tratamento subversivo da linguagem. Foi precisamente o jogo da linguagem —'Merdre!' (JARRY 2002: 29) — que despoletou a forte reação do auditório, uma vez que, a ligeira dissimulação do termo tabu não foi suficiente para o mascarar. O jogo mantém-se ao longo de toda a peça em que Jarry desconstrói a linguagem, ignorando regras de ortografia e

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brincando com as palavras em detrimento da racionalidade, agrupando-as mais pela sua dimensão sonora do que pela sua capacidade de produtora de sentido (HUBERT 2008b: 161).

Encontramos refletido em Ubu Roi o programa estético de Jarry que prduzia um teatro total, onde o jogo com os sentidos ocupava um lugar cimeiro em detrimento da presença do texto. Entre essas opções estéticas — que serviram, posteriormente, de inspiração a muitos artistas de vanguarda — contam-se "(...) a violenta agressividade contra o público, o absurdo, o simbolismo sumário, o grotesco violento ao ponto de se tornar trágico, a dissolução da linguagem, repleta de neologismos e de expressões sem sentido, a crueldade, a redução da cenografia a poucos elementos indicativos." (MOLINARI 2010: 354)

A sua conceção estética assentava principalmente, como já foi referido, num antirealismo marcado15, presente em todas as componentes do espetáculo, uma vez que Jarry pretendia revitalizar um teatro que ele julgava esgotado pelas formas convencionais do teatro burguês, encarado então como o papel químico do quotidiano. Este combate ao realismo encontrava-se presente na cenografia por meio da simplicidade, uma vez que esta não deveria ser elaborada, antes meramente sugestiva, para que fosse transmitido ao espectador apenas o essencial do espetáculo. A presença de elementos cénicos apenas alusivos abriam espaço à participação ativa do espectador, já que este poderia permitir que a sua imaginação corresse livremente, bem como refletir na cena a sua subjectividade interpretando-a como preferisse, pois Jarry não pretendia construir bloqueios à dimensão criativa do público, nem torná-lo num mero consumidor passivo dos produtos da indústria teatral.

                                                                                                               

15 "Cette transformation simultané de l'espace scénique et du personnage, opérée par Jarry, bouleverse la nature

de l'illusion. Le théâtre ne cherche plus à reproduire la réalité (...). Il représente crûment la condition humaine de façon burlesque." Marie-Claude Hubert, Le Théâtre, Paris, Armand Collin, 2008, 163.

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A sua posição face ao ator contrariava o estatuto de estrela do mesmo, que permitia que ao ator manipular o texto e o espetáculo em proveito próprio. Jarry pretendia submetê-lo à visão artística do encenador, mas também do autor do texto, atribuindo-lhe uma importância menor. O ator deveria trabalhar de forma mecânica, física, com um tom monótono que contrastaria com os seus gestos expressivos, pondo, deste modo, a tónica na comunicação não verbal, sendo, assim, influenciado pelo teatro de marionetas. A utilização da máscara seria também importante, bem como um aspecto que reforçaria o forte peso da expressão física em detrimento de uma representação mais focada no aspecto psicológico e de expressão emocional, assemelhando-se, assim, ao trabalho que Meyerhold desenvolveu com os seus atores décadas mais tarde.

Também o conteúdo do seu teatro diferia em muito do teatro burguês, bem como as formas através das quais era expressado. Jarry não optava pela linearidade narrativa, nem pela psicologização dos personagens, muito menos abordava assuntos contemporâneos ou trivialidades do quotidiano. Pretendia tratar tópicos universais de uma forma intemporal e abstrata.

Todos os esforços de Jarry convergiam para um objetivo claro de desconstrução do teatro dominante: um teatro burguês, estrangulado por convenções ultrapassadas e esgotado num realismo psicológico, produto de uma indústria que procurava mais lucro do que expressão artística. Ubu Roi foi orquestrado como uma bomba que deveria ser atirada a um público para quem o teatro constituía apenas um espaço de diversão superficial e ostentação. Assim, Ubu tornou-se o símbolo da estupidez burguesa nos mais variados domínios (STYAN 2004a: 49), facto que justifica o enorme impacto do espetáculo no século que o seguiu. A sua importância fora também alimentada pela reação do público e da crítica que, ao produzir duras apreciações sobre o espetáculo, propagaram a onda de escândalo por toda a élite

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parisiense (BERGHAUS 2005: 26). A sua popularidade ultrapassou em pouco tempo as fronteiras francesas, dando a conhecer Jarry e o seu ataque aos valores burgueses a todos os centros culturais do velho continente. Na Itália, Filippo Tomaso Marinetti, ao tomar conhecimento do escândalo, entrou em contacto com o autor do espetáculo, com que manteve correspondência, chegando mesmo a conhecê-lo numa das suas idas a Paris. Contudo, o reconhecimento da influência de Jarry não se esgotou no Futurismo de Marinetti, já que foram vários os registos de homenagens ao seu trabalho, como a que lhe prestou Antonin Artaud, em 1926, juntamente com Roger Vitrac, com a fundação do Teatro Alfred-Jarry, e Eugène Ionesco, com a criação do Collège de 'Pataphysique, em 1948.

Ubu Roi é, deste modo, justamente considerado como o primeiro espetáculo de vanguarda16, tendo libertado o teatro dos grilhões da convenção burguesa. Ainda que não tenha proposto nenhuma alternativa completa, viável e concreta, para a formação de novas convenções, certamente terá aberto caminho para uma série de experimentações levadas a cabo nas primeiras décadas do século XX e sobre as quais nos debruçaremos nas próximas páginas.

III. O Futurismo Italiano

Alimentados pelas já referidas drásticas mudanças socioculturais e tecnológicas do fim do século XIX, muitos dos movimentos de vanguarda não só defendiam o progresso tecnológico, como cantavam a glória das máquinas e o fervor da guerra, como Filipo Tomaso Marinetti o fez, no primeiro manifesto futurista de 1909, intitulado Manifesto do Futurismo, que, impresso nas páginas do Le Figaro, obteve

                                                                                                               

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reações fortes e abalou a boa sociedade parisiense espalhando-se rapidamente pela Europa como força agitadora.

Pouco tempo após a publicação do primeiro manifesto, Marinetti levou à cena o primeiro espetáculo futurista — de influência jarryesca —, no Théâtre

L'œuvre de Lugné-Pöe, onde havia sido estreado, anos antes, Ubu Roi.O espetáculo,

Roi Bombance, assumia os contornos de uma sátira de revolução e democracia17. A produção gerou algum escândalo embora tenha assumido formas menos radicais que o expectável quando confrontada com as ideias do manifesto de 1909 onde, de forma violenta, era proclamada a necessidade de uma nova arte, mais adequada ao jovem mundo moderno, dedicada à velocidade e à luta, às massas, às máquinas e fábricas (CARLSON 1993: 339).

Foi após o contacto com Jarry e a recusa do seu estatuto de poeta simbolista que Marinetti, influenciado pelas características mais marcadas da vida moderna — simultaneidade, dinamismo e velocidade — teve o impulso do Futurismo: o primeiro movimento organizado de vanguarda e também um dos mais radicais, uma vez que bebeu do termo original — avant-garde — o seu caráter bélico. Com a Itália como seu berço e Paris como rampa de lançamento, este movimento vanguardista, que pretendia ter repercussões em todos os setores da sociedade através da disseminação artística, considerava-se pioneiro numa guerra contra a tradição.

Marinetti elegera o teatro como campo de batalha e veículo por excelência para a propagação da mensagem futurista, não apenas por se encontrar já inserido no meio como crítico e dramaturgo, mas principalmente pela possibilidade de intervenção imediata, pelo cariz público e popularidade do meio, que poderia,

                                                                                                               

17 Cf. RoseLee Goldberg, Performance Art: From Futurism to the Present, London, Thames&Hudson, 2010,

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através da libertação do espectador da realidade do quotidiano, ter um efeito libertador na sociedade em geral. (BERGHAUS 2005: 31). Contudo, os Futuristas — à semelhança dos Dadaístas e Surrealistas — não foram nem grandes teóricos, nem grandes técnicos do teatro, como refere Molinari18, revestindo sempre as suas produções de um carácter amador e experimental.

O manifesto, texto convencionalmente político, foi por estes artistas italianos utilizado para dar a conhecer, de forma original e agressiva, o programa do movimento que não se esgotava no meio artístico, como já foi referido, havendo, também, manifestos de cariz político, como é o caso do Manifesto do Partido

Político Futurista (1915), que mostrava ligações ao fascismo. Contudo, os manifestos mais relevantes no que toca à actividade teatral dos futuristas são o

Manifesto dos Dramaturgos Futuristas, de 1911, e autoria de Marinetti, Teatro de Variedade, de 1913, também de Marinetti, Manifesto do Teatro Futurista Sintético,

de 1915, produzido por Marinetti em conjunto com Emilio Settimelli e Bruno Corra. O teatro dominante de então, apelidado de passadista por Marinetti e seus companheiros, era um mero duplicado do quotidiano, feito de realismo psicológico e linearidade narrativa; espelho da sociedade burguesa e produto de uma indústria de entretenimento movida muito mais pelo lucro do que pela expressão artística, ao qual o público acorria, num desfile de ostentação e vaidade, pela dimensão social do evento.Tal como acontecera com o programa estético de Alfred Jarry — e de todos os movimentos de vanguarda —, o teatro futurista formou-se por oposição a este

teatro de digestão. Abertamente influenciado pelo teatro de variedades, Marinetti

considerava-o o mais adequado à sensibilidade moderna, não apenas pelas formas e conteúdos do espetáculo, ou pela maneira como o espectador era chamado a colaborar, mas também por ser um produto da modernidade eletrificante no qual                                                                                                                

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Marinetti não reconhecia "tradição alguma, nem mestres, nem dogmas" (BERNARDINI 1980: 119). Contudo, é possível reconhecer no teatro de variedades a influência do passado, embora extremamente variada e composta principalmente por formas menores de entretenimento19.

Radicalmente distinto do teatro passadista, a tónica do teatro de variedades encontra-se no espetáculo, facto bastante presente na ausência de enredo lógico, mas também no espaço dado ao improviso do ator no contacto com o público. Com base na Fisicofolia de que fala Marinetti20, o teatro de variedades compõe-se através de uma série de números diferentes, — desde acrobacias, a números musicais, passando pelo clowning e dança, etc. —, onde reinavam a energia e o movimento, postos em cena de forma bastante dinâmica e breve, mas também absurda. O teatro de variedades tinha como objetivo primeiro a distração da plateia através da ativação de quase todos os seus sentidos, trabalhando incessantemente na inovação e originalidade dos seus actos, de forma a conseguir produzir o espanto no auditório. Esta interação entre o palco e a plateia, que proporcionava o desenrolar da ação não apenas no palco, mas por todo o auditório, agradava bastante os Futuristas, já que pretendiam banir das salas de espetáculo o mero voyeur. A utilização do cinematógrafo em alguns dos números do teatro de variedades também apelava bastante aos Futuristas, cuja sensibilidade vibrava com qualquer produto do progresso técnico e reconhecia nessa utilização mais uma forma para cobrir o teatro

                                                                                                               

19 "Marinetti admired variety theatre for one reason above all others: because it 'is lucky in having no tradition,

no masters, no dogma'. In fact variety theatre did have its traditions and its masters, but it was precisely its variety — its mixture of film and acrobatics, song and dance, clowning and 'the whole gamit of stupidity, imbecility, doltishness, and absurdity, insensibly pushing the intelligence to the very border of madness' — that made it an ideal model for Futurist performances." RoseLee Goldberg, Performance Art: From Futurism to the

Present, London, Thames&Hudson, 2010, 17.

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Cf.Aurora Fornoni Bernardini, O Futurismo Italiano. São Paulo, Editora Perspectiva, 1980, 123.

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do muito desejado dinamismo, velocidade e simultaneidade contributivas para a desconstrução de formas teatrais tradicionais.

Este espetáculo anti-académico, primitivo e ingénuo (GOLDBERG 2010: 17), onde não havia espaço para personagens bem delineadas, criava aquilo que Marinetti apelidou de "maravilhoso Futurista", composto por uma série de recursos utilizados no teatro de variedades. Entre eles Marinetti destaca:

1) caricaturas possantes; 2) abismos do ridículo; 3) ironias (…); 4) símbolos envolventes e definitivos; 5) cascatas de hilaridade irrefreável; 6) analogias profundas entre a humanidade, o mundo animal, o mundo vegetal e o mundo mecânico; 7) esforços de cinismo revelador; 8) enredos de frases espirituosas, de trocadilhos e de adivinhações que servem para arejar agradavelmente a inteligência; 9) toda a gama de riso e de sorriso para distender os nervos; 10) toda a gama de (…) imbecilidades, parvoíces e absurdos que impelem insensivelmente a inteligência até à beira da loucura; 11) todas as novas significações da luz, do som, do ruído e da palavra, com seus prolongamentos inexplicáveis na parte mais inexplorada de nossa sensibilidade; 12) um acúmulo de acontecimentos tramitados às pressas e de personagens empurradas da direita para a esquerda em dois minutos (...); 13) pantomimas satíricas instrutivas (…). (BERNARDINI 1980: 120)

Também no Manifesto do Teatro Futurista Sintético se encontra o elogio da guerra e é reiterada a importância do teatro como veículo de propagação das ideias futuristas devido à extensão do seu alcance junto da população italiana, no entanto, o tópico principal do manifesto é a importância da síntese no teatro. Em oposição ao demorado teatro passadista, os Futuristas queriam apresentar um espetáculo assente na brevidade, de tal modo que propunham que a construção dos mesmos tivesse por

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base "átimos": atos tão curtos que durariam apenas alguns segundos. Os Futuristas pretendiam, assim, encenar em poucos minutos e com economia de linguagem e movimentos, toda uma série de situações, ideias, sensações, factos e símbolos, sem qualquer tipo de linearidade narrativa ou lógica de enredo, que formariam um espetáculo altamente dinâmico e breve. Com estes átimos os Futuristas pretendiam construir um espetáculo baseado, como escreve Bernardini, numa "(…) síntese de contusão, de choque, cujo propósito era não embalar o espectador mas arrancá-lo, com uma risada ou um safanão, de seu engodo, para pô-lo defronte da redução ao absurdo da forma habitual de edificação ou de consolo veiculada pelo teatro" (BERNARDINI 1980: 23). O dinamismo, brevidade e simultaneidade, que constantemente reclamavam para o teatro, tinha como finalidade não apenas desconstruir a convenção, mas também fazer frente à crise que se fazia sentir no teatro desde o aparecimento do cinematógrafo, cujo carácter de novidade e linguagem mais próxima da sensibilidade moderna o distanciava do velho teatro passadista.

Referem, no mesmo texto, a apologia de um teatro sem técnica, ou seja, sem o peso da tradição dramática que, na ótica futurista, se havia transformado, desde os Gregos, num dogma empedernido e castrador da liberdade criativa do artista. Esta renúncia à tradição está bem presente na negação de princípios aristotélicos, como a verosimilhança, os caracteres bem construídos, a identificação do público com os personagens, o desenvolvimento lógico de um enredo coerente21, mas também no reconhecimento da distância da convenção em relação à realidade moderna. Este teatro "atécnico" pretendia dar um espaço considerável ao improviso no contacto com o espectador, uma vez que pretendia conseguir um maior envolvimento do público no espetáculo — de modo a resgatá-lo da sua qualidade de voyeur — bem                                                                                                                

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como revolucionar o estatuto do ator ao destruir a ribalta, submetendo-o, assim, ao projeto do encenador ou do autor.

No Manifesto do Teatro Futurista Sintético é abordada, também, uma série de formas próprias do teatro Futurista que deveriam substituir os antigos géneros teatrais:

(…) Abolir a farsa, o vaudeville, a pochade, a comédia, o drama e a tragédia, para criar no seu lugar, as numerosas formas do teatro futurista, como: as saídas em liberdade, a simultaneidade, a compenetração, o poemeto animado, a sensação encenada, a hilaridade dialogada, a sensação encenada, a hilaridade dialogada, o ato negativo, a saída em eco, a discussão extralógica, a deformação sintética, a aberração científica, a coincidência, a vitrina... (BERNARDINI 1980: 23)

Estas formas descritas num estilo irreverente, próprio do manifesto que pretende mais a agitação que o esclarecimento pleno, nem sempre tornam clara a realidade prática do programa futurista, mas algumas delas tiveram expressão nas experiências práticas do movimento podendo ser reconhecidas nos relatos das

serate22. Materializando a verdadeira inovação prática do movimento Futurista — onde as fronteiras do teatro e performance se esbateram — as serate eram apresentações públicas das principais ideias do programa futurista transmitidas através das formas que haviam sido desenvolvidas por estes artistas. Estes acontecimentos, que tinham lugar num edifício teatral convencional, consistiam numa mistura de leitura de manifestos com a apresentação das criações artísticas —                                                                                                                

22 As of 1910, the term 'Futurist serata' meant: presenting the key ideas of the Futurist movement in a large

theatre and offering the audience examples of how these principles could be translated into performative language." Günter Berghaus, Avant-Garde Performance: Live Events and Electronic Technologies, New York, Palgrave Macmillan, 2005, 31.

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poesia, pintura, teatro e música — que emanaram dos princípios enunciados nesses mesmos manifestos, constituindo, assim, não apenas um meio de propagação da mensagem, mas também uma forma demonstrativa dos princípios práticos do movimento. Em suma, as serate eram soirées literárias transformadas em veículo de agressão da platéia, bem como dos valores burgueses e da convencionalidade artística.

Contudo, uma serata não se esgotava no domínio artístico, já que o seu cariz político era fortemente marcado. Os Futuristas prentendiam, através delas, atacar todas as esferas da vida pública, combatendo em especial o culto do passado e as forças sociais que o sustinham (BERGHAUS 2005:33), fazendo propaganda pelo progresso tecnológico e pela ideologia militarista e nacionalista que defendiam. Foi nestas soirées tumultuosas que os Futuristas forjaram um novo tipo de declamação, uma que se caracterizava, principalmente, pela ilustração visual e gestual de textos poéticos e teóricos, levada a cabo por declamadores preparados para enfrentar a ira da platéia que, muitas vezes, respondia à provocação dos Futuristas de forma agressiva, atirando, para o palco, não apenas palavras desagradáveis, mas também projéteis de todo o tipo23.

A violenta rutura da ilusão teatral, a surpresa, a provocação da plateia e o apelo à participação do público são recursos que marcavam presença já nas primeiras

serate e constituem as características principais dos espetáculos futuristas, cujos

objetivos primeiros consistiam na libertação do teatro do mercantilismo estrangulador que se fazia sentir no meio dominante da altura, bem como do teatro da convenção com séculos de existência e do jugo da moral burguesa. Para tal

                                                                                                               

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recorriam a uma série de elementos e inovações, começando por modificar o estatuto do ator, do autor e do público.

Relativamente ao ator, os Futuristas pretendiam desfazer o preconceito da ribalta e a sede de aplausos, de modo a que o seu trabalho se submetesse à autoridade do autor, em vez de se reger pelas opções que o destacariam, muitas vezes em detrimento do espetáculo (BERNARDINI 1980: 55). Esta alteração na conduta do ator implica, também, uma mudança no estatuto do autor do espetáculo, uma vez que lhe é dado maior controlo sobre o mesmo. Salienta-se, também, no que toca ao autor, a promoção, pelos Futuristas, do

(…) desprezo pelo público, especialmente o desprezo pelo público das primeiras apresentações, cuja psicologia podemos assim sintetizar: rivalidade de chapéus e de toilettes femininas, - vaidade pelo lugar que custou caro, que se transforma em orgulho intelectual, - palcos e plateia ocupados por homens maduros e ricos, de cérebro naturalmente desdenhoso e com digestão dificílima, que torna impossível qualquer esforço mental (BERNARDINI 1980: 53).

Também recomendam, tanto ao autor como ao ator, que experienciem "a volúpia de serem apupados"24, que, aliada ao já referido desprezo pelo público, se traduz na libertação de ambos das expectativas deste último, para que possam criar na absoluta independência e originalidade. No que toca ao público, Marinetti e seus companheiros de movimento pretendiam que renunciasse ao seu convencional estatuto de simples voyeur que procurava o teatro como lugar de ostentação e digestão. No seu lugar, os Futuristas pretendiam um espectador resgatado da realidade do quotidiano, ativo, pensante, colaborante e aberto a novas experiências.                                                                                                                

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O reportório — radicalmente distinto do do teatro passadista — deveria "reflectir alguma parte do sonho futurista", produto da vida moderna "exasperada pelas velocidades terrestres, marítimas e aéreas, e dominada pelo vapor e pela eletricidade". Deste modo, não deveria cair na habitual trama amorosa, nem na "fotografia psicológica" ou reprodução da realidade quotidiana, muito menos deveria basear-se em reproduções históricas (BERNARDINI 1980: 54). Deveria, antes, servir o movimento com temas relacionados com a vida nos grandes centros urbanos, com a realidade industrial e progresso tecnológico.

As formas do teatro Futurista construíram-se, principalmente, por oposição à convenção aristotélica. A verosimilhança, a identificação do espectador com as personagens, o enredo construído de forma lógica e progressiva, com a extensão suficiente para se observarem os caracteres em ação apresentavam-se como aspetos a combater. Os Futuristas queriam um teatro breve, repleto de dinamismo e variedade, com espaço para o absurdo e recursos comuns a outras artes — como a utilização da montagem cinematográfica ou clowning — bem como para a introdução da máquina no espaço teatral. Também as personagens eram forjadas por oposição às do teatro burguês, uma vez que não detinham profundidade psicológica, embora se revelassem totalmente na ação, podendo "igualmente esgotar-se em simples gestos de valor absoluto, ou não existirem de todo, permanecendo a ação entregue aos objetos" (MOLINARI 2010: 357).

Relativamente à cenografia é importante citar o manifesto Cenografia

Futurista, de 1915, escrito por Enrico Prampolini, um dos principais cenógrafos do

movimento, que apresentou como a grande inovação Futurista no campo da cenografia o distanciamento da bidimensionalidade constituída por panos de fundo pintados, frequentemente de maneira realista. Prampolini pretendia enfatizar em pleno o espaço cúbico do edifício teatral, explorando as potencialidades de um

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cenário mecanizado e móvel, afastado da estética realista e complementado pelo trabalho de luz, que o cobriria de uma diversidade cromática criadora de ambientes adequados a cada cena. Como tal, Prampolini, no manifesto, declara:

Let's renovate the stage. The absolutely new character that our innovation will give the theatre is the abolition of the painted stage. The stage will no longer be a coloured backdrop but a colourless electromechanical architecture, powerfully vitalised by chromatic emanations from a luminous source, produced by electric reflectors with multicoloured pares of glass, arranged, coordinated analogically with the psyche of each scenic action (DRAIN 2003: 23).

Esta conceção dinâmica da cenografia levaria, segundo Prampolini, a uma conceção de teatro pós-orgânico — de influência craiguiana — em que o ator seria um elemento obsoleto, sendo substituído por um espaço completamente tecnológico onde a luz seria, como já foi sugerido, um elemento crucial25. No entanto, este

projeto cenográfico nunca foi realmente aplicado pelos Futuristas — os Construtivistas russos foram quem mais se aproximou da teoria de Prampolini — uma vez que, frequentemente, apresentavam uma cenografia bidimensional baseada na iconografia Cubista, onde o ator se movimentava como uma figura mecanizada pelo trabalho do corpo estilizado e desfigurada pelos figurinos que o integravam no projeto de encenação, impedindo-o, assim, de ser o elemento central.

Após uma breve análise do programa Futurista é clara a tónica posta no espetáculo, em detrimento do texto, facto reiterado pela utilização do verso livre e daquilo a que Marinetti chamou parole in libertà. Este recurso literário promovia o                                                                                                                

25 Cf. Matthew Causey, Theatre and Performance in Digital Culture: From Simulation to Embeddedness,

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