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Foi no seguimento da Revolução de 1905 — um movimento anti-governamental desorganizado que esteve na base das mudanças sociais que só se efetivariam em 1917 — que a Rússia experienciou uma maior abertura do país, bem como uma vitalidade inovadora do panorama artístico russo que levou à importante transformação que fez de Moscovo um dos centros artísticos mais fortes do Ocidente e parte integrante do circuito de intercâmbio cultural. Deste esforço de renovação surgiu o movimento Futurista Russo — encabeçado pela expressão pictórica seguida de perto pela expressão literária26 — que se dividiu em duas

formulações: o egofuturismo e o cubofuturismo.

O egofuturismo, fundado por Igor Severianin, em 1911, apresentava-se como radicalmente diferente do Futurismo Italiano, mas também do seu compatriota, o cubofuturismo. As criações de Severianin cobriam-se de formas                                                                                                                

26 Cf. Angelo Maria Ripellino, Mayakovsky y El Teatro Ruso de Vanguardia, Sevilla, Editorial Doble J, 2002,

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decadentes e banais presas no século XIX (RIPELLINO 2002: 13). O cubofuturismo — mais próximo do Futurismo Italiano, ainda que significativamente diferente — fez-se sentir a partir de 1910, mas efetivou-se apenas em 1912 com o manifesto

Uma Bofetada no Gosto Público onde se apresentou como um acérrimo defensor da

completa renovação da arte russa; renovação, essa, que deveria ter repercussões a nível social e político, ajudando ao combate, em todas as frentes possíveis, contra o marasmo burguês.

Foi através do já referido manifesto que Mayakovsky, Khlebnikov, Burlyuk e Kruchenykh apresentaram o programa básico do cubofuturismo. Nele denunciavam um passado castrador da criatividade artística e pouco apropriado à sensibilidade moderna. Estes jovens artistas pretendiam destruir as formas convencionais de expressão artística e abrir caminho para a construção de novas formas que levariam à renovação do panorama artístico. Para levarem a cabo esta empresa renovadora começaram por atacar a linguagem, desconstruindo a convenção e recusando formas antigas, rígidas e castradoras. É deste esforço de desconstrução — semelhante à parole in libertà de Marinetti — que surge o ZAUM, uma linguagem transmental cunhada por Kruchenyhk, baseada na preferência pela sonoridade e grafia das palavras em detrimento da produção de sentido das mesmas. Aplicada principalmente na produção poética, a sua presença na expressão dramática não se fazia sentir de forma tão frequente, já que os Futuristas acabavam por dar preferência à inteligibilidade do espetáculo. Contudo, um dos registos da sua aplicação no palco encontra-se na ópera futurista de Kruchenyhk Vitória Sobre o

Sol, de 1913, fator que pode ter contribuído para a receção polémica da produção.

É impossível negar alguma influência do movimento de Marinetti na génese do cubofuturismo, contudo é importante salientar que apesar da partilha de algumas preferências — apologia do progresso técnico, colaboração entre artes e mistura de

expressões artísticas no teatro, preferência por formas menores como o circo e o

music-hall, recusa da convenção artística e valores sociais instituídos aliada a um

esforço de renovação dos mesmos, anti-realismo, etc. — estes movimentos diferiam radicalmente em vários outros aspetos. As opõçes políticas, a visão da relação do homem com a máquina, a posição que assumiam perante o fenómeno da guerra e herança cultural constituíam os grandes pontos de divergência, uma vez que os Futuristas russos — homens de esquerda e pacifistas — olhavam para um passado mais distante em busca de inspiração para o seu trabalho hercúleo, não se limitando, como os Italianos, a uma total e veemente recusa de tudo o que fora antes criado pela humanidade.

A já referida ópera de Kruchenyh, Vitória Sobre o Sol, constituiu, em parelha com a tragédia Vladimir Mayakovsky, de Mayakovsky, as primeiras e mais importantes concretizações do programa teatral do movimento russo, apresentadas, em São Petersburgo, entre 2 e 4 de Dezembro de 1913. Com libretto de Kruchenykh, música de Matyushin e figurinos e cenografia de Malevich, Vitória

Sobre o Sol, uma ópera profundamente anti-realista, produto do desejo de

mecanização da sociedade e reveladora de uma forte antipatia pela ordem social burguesa, surge ainda hoje na memória coletiva mais pela contribuição inovadora de Malevich do que pelo trabalho dos seus companheiros. Foi nesta produção — alvo de fortes críticas pelo público — que Malevich deu início à exploração das formas geométricas puras, características do seu suprematismo futuro, apresentando um cenário completamente abstrato e de influência cubista, como descrito por Rudnitsky:

Malevich painted the backdrops utilizing pure geometric forms: his renowned 'black square' appeared for the first time in one of the

sketches for this production alongside straight and curved lines, musical notes, signs resembling question marks. There is no concern for top or bottom, no allusion whatsoever to any particular place of action: the very concept of 'place' in his scenery is disregarded. It simply represents a kind of sombrely abstract background for the actor's performance (RUDNITSKY 2000: 13).

Este cenário, tal como os figurinos futuristas de dimensões exageradas — construídos a partir de cartão, mas realçados pelo trabalho de luz — cunharam o estilo da produção, pois condicionavam os movimentos dos artistas levando a uma movimentação próxima da marioneta27. As personagens apresentavam-se como híbridos militarizados — meio máquinas, meio humanas — de carácter grotesco. O absurdo, qualidade transversal a todos os elementos da produção, encontrava-se com maior expressão no libretto, caracterizado, por Rudnitsky, não apenas como pobre e primitivo, mas também desprovido de interesse e pouco refinado, tanto no sentido como na linguagem, coberto de um energético e ruidoso debitar de discurso cujo principal objetivo era camuflar o vazio textual (RUDNITSKY 2000: 12). Também a composição musical, levada a cabo por Matyushin, não se destacava pela positiva, continuando o registo desinteressante do texto de Kruchenykh.

Já a produção de Mayakovsky teve um sucesso superior, coincidente com a qualidade do espetáculo, apresentando de forma igualmente anti-realista um texto muito mais polido que o libretto de Kruchekykh. Esta tragédia, mesclada com comédia, tinha por base temas muito semelhantes a Vitória Sobre o Sol e apresentava a figura do poeta Vladimir Mayakovsky como personagem principal,                                                                                                                

27 " (…) in Victory Over the Sun the actors wore papier-mâché heads half as tall again as their bodies, and

performed on a narrow strip of stage using marionette gestures to accompany their 'non-sense' words (…)." Camilla Gray, The Russian Experiment in Art: 1863-1922, London, Thames & Hudson, 2007, 187.

sendo as restantes aparentes produções da sua imaginação, que gravitavam à sua volta em enormes figurinos fantásticos. Estes figurinos, feitos de cartão de um lado apenas, obrigava os atores a movimentarem-se sempre de lado, no proscénio, virados para o público, de maneira a ocultar a unilateralidade dos figurinos, constrastando, assim, com a figura vibrante do poeta que se representava a si mesmo e se movia livremente sobre o palco, recitando e abordando diretamente o público, transformando a produção num monodrama assente num grande monólogo quebrado apenas por modelações no ritmo e entoação do discurso, recurso que constituiu um dos grandes fatores de inovação da mesma, quebrando barreiras entre lírica e discurso dramático.

Juntamente com os figurinos, Filonov concebeu uma série de painéis, iluminados apenas em alguns momentos do espetáculo — prólogo e epílogo —, que haviam sido pintados com cores vibrantes num estilo pueril e posicionados junto de um pano de fundo de tecido cru, que serviram de cenário a esta produção mais acessível à sensibilidade do público do que havia sido a criação de Kruchenykh e Matyushin.

O teatro futurista russo forjou, assim, espetáculos com intuito renovador, baseados em recursos que acabaram por ser incluídos, logo após a Revolução de 1917, nas produções dos teatros de vanguarda e no teatro de agitação e propaganda. Contudo, com o passar dos anos, muitas das características destas primeiras manifestações futuristas foram lentamente incorporadas nos teatros mais convencionais28. Entre essas características salientam-se algumas das principais que marcaram presença nas produções anteriormente referidas, como os temas apropriados à sensibilidade moderna — centrados no progresso tecnológico, na                                                                                                                

28 Cf. Angelo Maria Ripellino, Mayakovsky y El Teatro Ruso de Vanguardia, Sevilla, Editorial Doble J, 2002,

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industrialização e vida urbana —, o anti-realismo e anti-ilusionismo — recorde-se a interpelação direta do público por Mayakovsky —, bem como a crítica aos valores e convenções da sociedade burguesa. De notar é, também, a liberdade de criação linguística, a recusa do cenário convencional e integração de inovações pictóricas nos mesmos, o trabalho de ator estilizado — contrário à representação naturalista e frequentemente inspirado pela marioneta —, o uso de figurinos exagerados e não- naturalistas, o recurso à máscara, o trabalho de luz como forma de dinamização do cenário que se apresentava muitas vezes como abstrato, não representando nenhum lugar particular. A colaboração entre artes e a recusa do convencional enredo aristotélico são também aspetos caracterizadores destas produções.

A atividade dos Futuristas Russos não se esgotava nos seus espetáculos, uma vez que tinham uma forte dimensão literária e pictórica, mas também de ação direta. No entanto, o esforço do movimento não teve, nos seus primeiros anos, a repercussão esperada pelos seus membros que promoviam, também, soirées literárias — recorrendo muitas vezes à provocação direta do público — onde apresentavam as suas produções e recitavam a sua poesia em pequenos cabarés. Frequentemente incompreendidos, eram marginalizados e olhados com desconfiança e pouca credibilidade, principalmente pelas suas ações de rua através das quais tentavam intervir, de forma bastante teatral, na realidade quotidiana para a qual queriam desesperadamente contribuir. Os Futuristas pretendiam que as suas criações tivessem repercussões sociais práticas, transformadoras da sociedade e dos valores, mas essa oportunidade só chegou com a Revolução de Outubro, em 1917, após a qual, durante os primeiros anos do regime soviético, o futurismo teve a sua grande oportunidade.Apoiantes entusiastas da nova ordem social que prometia uma Rússia industrializada e livre dos valores burgueses, os Futuristas obtiveram com a

mudança política a liberdade de experimentação e criatividade artística por que tanto ansiavam.

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