• Nenhum resultado encontrado

2.2 ANUSSIM NO BRASIL EM PLENO SÉCULO XXI

2.2.2 Os anussim espalhados pela Europa

Por mais recente que possa parecer a discussão no Brasil, na Europa é um assunto tratado com grande seriedade desde o século XIX, como podemos constatar da tentativa de revogar o Edito de Alhambra, com a finalidade de motivar o comércio, de acordo com o que relata Célia Garcia, da universidade de Granada:

Con carácter previo a 1860 destacan los intentos de Manuel de Lira y Pedro Varela por derogar el Edicto de Expulsión de 1492. Don Manuel de Lira propuso la derogación de la orden de expulsión en aras a abrir un nuevo frente comercial con mercaderes judíos. (GARCIA. 2011).

Esta primeira tentativa, por mais que tenha sido rechaçada, foi o ponto inicial para uma longa discussão politica e diplomática, que ao longo do tempo teve muitos

24 Significa em hebraico “os que retornam a Israel”, e é uma entidade judaica fundada em Israel, por Michael

Freund, na década de 1970, com o objetivo de encontrar e resgatar culturalmente e fisicamente, judeus perdidos que se encontrem espalhados pelo mundo.

desdobramentos, como por exemplo, a circular emitida em 1924, que definia algumas situações relativas aos judeus sefaraditas e seus descendentes, dando-lhes a possibilidade de requererem nacionalidade espanhola, independente de fixarem residência na Espanha ou manterem residência em seus países atuais:

Al respecto el Ministerio de Estado emitía, con fecha de 29 de diciembre de 1924, la Circular núm. 857 (Hassan, 1979:587-588) exponiendo las instrucciones a seguir para dar cumplimiento al Decreto y haciendo especial hincapié en el hecho de que quienes pretendiesen seguir viviendo en el extranjero podrían ser dispensados del requisito de personarse en España para dar cumplimiento a la renuncia de otras nacionalidades, así como para jurar la Constitución -siempre y cuando alegaran motivos para justificar la imposibilidad de ausentarse del lugar de su residencia. Como notas aclaratorias a lo preceptuado en el Decreto, se detalla la forma en que debe ser incoado el procedimiento, así como la documentación que debe acompañar a la solicitud. (GARCIA. 2011).

Esta circular, bem como toda a discussão que se seguiu no século XX e primeiras décadas do século XXI, finalizam-se este assunto através da emissão de um Decreto Real, com vista a uma reparação histórica, que vem para reconectar a herança ancestral dos anussim ao universo judaico sefaradita. O referido decreto, aprovado em janeiro de 2016, descreve os procedimentos a serem tomados por todo aquele que se julgue descendente destes judeus que sofreram o processo do Édito de 1492. Como nos relata Susana Toledo (2016):

A partir de 29 de janeiro de 2016 a legislação espanhola permite que os serfaditas originários da Espanha solicitem a nacionalidade, porém não são todos que têm direito. Em especial, essa nacionalidade se concede por "carta de naturaleza", quer dizer: se concede por vontade do governo espanhol através da aprovação de um "Real Decreto". Foi uma decisão tomada com a intenção de fazer justiça aos judeus espanhóis expulsos do território há mais de cinco séculos que ficaram sem pátria. [...] Além disso, deverá passar em duas provas que são formuladas e administradas pelo Instituto Cervantes: por um lado, a prova de conhecimento básico da língua espanhola de nível A2 e, por outro, a prova de conhecimento da Constituição e da realidade social e cultural espanhola. (TOLEDO. 2016).

Este decreto tenta religar os descendentes dos judeus expulsos em 1492, concedendo a estes a nacionalidade espanhola, independente de sua permanência na Espanha, e requerendo que, além dos argumentos em favor da ligação histórica, que os candidatos apresentem alguma ligação cultural com a Espanha, através do conhecimento da história e cultura espanhola, sua realidade social e domínio da

língua. Seguindo o mesmo caminho, Portugal também realizou adaptações a sua Lei de cidadania, com a finalidade a estender a nacionalidade por naturalização aos descendentes de judeus sefaraditas, conforme encontramos no site do Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro:

Decreto-Lei n.º 30-A/2015, de 27 de Fevereiro

(Aditamento ao Regulamento da Nacionalidade Portuguesa)

Entrou em vigor em 01 de março de 2015 o diploma legal que procedeu à2.ª alteração do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, e que veio consagrar a possibilidade de aquisição da nacionalidade portuguesa, por naturalização, a cidadãos estrangeiros que comprovem ser descendentes de judeus sefarditas.

Como é sabido, designam-se de judeus sefarditas, os judeus descendentes das antigas e tradicionais comunidades judaicas da Península Ibérica. A aquisição trata-se de nacionalidade derivada, que só produz efeitos a partir da data em que é lavrado o registro de aquisição de nacionalidade na Conservatória dos Registros Centrais.

Sendo assim, a nacionalidade obtida por aquisição não é transmissível aos filhos do(a) requerente que sejam maiores de idade à época do registro da aquisição da nacionalidade.

Em relação aos filhos incapazes ou menores de idade à época do registro da aquisição, a nacionalidade é transmissível, desde que preenchidos os requisitos legais. (CONSULADO GERAL DE PORTUGAL NO RIO DE JANEIRO. 2015).

A iniciativa portuguesa, que deu origem a mudança na referida lei, também é fruto de uma longa discussão, mas diferentemente de ter sido uma iniciativa de governo como foi o decreto proposto na Espanha, a problemática portuguesa foi levantada a partir de uma obra que faz o resgate histórico do vilarejo de Belmonte em Portugal, onde, de acordo com a referida obra, existe uma pequena comunidade de anussim, que mantiveram por séculos, apesar de todas as perseguições sofridas pelos judeus em solo português, sua identidade cultural mesmo que de forma marginalizada, e que agora tem o reconhecimento de sua construção histórica perante outras comunidades judaicas pelo mundo. Silva nos comenta sobre esta questão inicial:

O mais significativo exemplo de persistência da identidade judaica entre os descendentes de marranos foi descoberto pelo Engenheiro de Minas judeu- polonês, Samuel Schwarz (1880 – 1953). Em 1925, publicou um livro intitulado Os Cristãos Novos em Portugal no Século XX, onde revelou a existência no pequeno vilarejo de Belmonte, região centro de Portugal, de uma comunidade de descendentes de cristãos-novos que por séculos

mantiveram clandestinamente sua identidade étnico-cultural judaica. (SILVA. 2008).

De clandestinos a judeus oficiais, o exemplo do povoado de Belmonte torna- se referência para outras experiências ao redor do mundo, pois, independente de todas as peculiaridades que possam existir no caso português, a comunidade de Belmonte levantou a curiosidade de antropólogos, historiadores e sociólogos, que de forma progressiva começaram a estudar o caso e a validar suas conquistas. Um dos fatores preponderantes para este intento deve-se ao fato da chamada obra de resgate, que na verdade foram um conjunto de ações empreendidas pelo capitão do exercito português, Artur Carlos de Barros Basto, de origem anussim, que durante sua vida, dedicou todos os esforços possíveis para a criação de toda a estrutura necessária para que a comunidade judaica de Belmonte, antes marginalizada e subterrânea, pudesse se desenvolver e se manter. O movimento liderado por Barros Basto, apoiando pessoas de origem anussim logo ganhou força e se espalhou por diversas regiões:

Sediado na cidade do Porto e liderado por Barros Basto um amplo movimento de apoio ao retorno de marranos ao judaísmo estendeu-se pelas regiões da Beira e Trás-os-Montes (Centro e Norte do país). Em 1926, constituiu-se um comitê internacional para ajudar no retorno dos marranos. Em 1927, foi fundado um jornal intitulado Ha-Lapid (O Facho), que circulou até 1958 e que promovia a causa dos marranos através de notícias e divulgação de ensinamentos judaicos. Em 1929 foi criado o Instituto Teológico Israelita - Yeshibah Rosh-Pinah, dirigido por Barros Basto, que se destinava a preparar líderes para as comunidades judaicas recém-formadas. E, sobretudo, durante as décadas de 1920 e 1930 os deslocamentos de Barros Basto, Samuel Schwarz e outros “apóstolos dos marranos” através das vilas e povoações das Beiras e Trás-os-Montes, fizeram surgir, tanto na zona rural quanto urbana, comunidades marranas. (SILVA. 2008).

Barros Basto identificou que o movimento de retorno dos anussim de Belmonte e por consequência de outros lugares de Portugal, só vingaria se toda uma estrutura organizacional, educacional e midiática fosse criada para que a ideologia pudesse sobreviver, mesmo após sua morte, e assim tirar de vez da obscuridade tantas famílias de origem judaica que ainda estavam vivendo a sombra do medo causado pelos tribunais da inquisição, mesmo estes já não atuando mais como outrora. O comitê criado por ele nos anos de 1926 teve o apoio fundamental de instituições judaicas oficiais como a Anglo Jewish Association, a Alliance Israélite

Universelle e a Spanish Portuguese Jew‟s Congregation, conforme nos relata GARCIA (2007).

Este apoio foi fundamental, pois fez com que as comunidades, escolas e sinagogas ligadas a estas instituições passassem a reconhecer a identidade cultural judaica de seus primos judeus belmontinos. Em 1927, com a criação do jornal Há- Lapid, a comunidade de Belmonte ganhou voz dentro da sociedade portuguesa, o que possibilitou que a discussão se amplificasse, trazendo a tona além das lutas e conquistas dos judeus de Belmonte, uma parte relevante da própria história portuguesa, que estava mais viva do que nunca. Em 1929, Barros Basto, ao criar uma Yeshibah25, fortaleceu o movimento criado vindo a preparar as futuras lideranças que

dariam continuidade ao trabalho até hoje. De acordo com o site da Shavei Israel, as comunidades do Porto e de Belmonte, são na atualidade o referencial para todas as comunidades em Portugal e de países de língua portuguesa. Cecil Roth, ao analisar todo o desenvolvimento da experiência dos anussim de Belmonte nos informa que:

Não é impossível que o renascimento marrano tenha começado demasiado tarde para ser eficaz entre a grande massa do povo. Se, afinal, o renascimento parece ter chegado demasiado tarde, a catástrofe terá sido devida à lenta e inexorável pressão das circunstâncias, e não à perseguição inquisitorial. Aquele martírio prolongado, sem exemplo na história, provou não ter poderes para vencer o indómito espírito judaico. A despeito de todos os seus horrores, os marranos foram capazes de preservar a sua identidade e a essência da sua fé até aos dias de hoje. ROTH (2001,p. 249).

Roth vai direto ao ponto ao argumentar que, mesmo passando por diversos problemas, como as perseguições inquisitoriais nos primórdios da idade moderna, e as perseguições católicas fomentadas pelo governo de Salazar, que devido ao apoio irrestrito que sua politica fornecia a instituição católica da época em troca de apoio para suas ações, fez com que os anussim de Belmonte, durante as décadas de 30 e 40 sofressem perseguições e difamações por parte da igreja, e a constante inveja e rivalidade da comunidade judaica de Lisboa, tida como única e oficial naquela época. Em contrapartida as experiências portuguesas, retornando a questão brasileira, podemos comparar certas situações que não ocorreram no Brasil, como por exemplo, a perseguição aberta e oficial de católicos como acontecera lá, e por mais

25 Yeshibah ou Yeshivah (hebraico moderno) é o nome dado a uma instituição educacional judaica, que pode ir

que em ambas as situações os Estados estivessem sob um regime ditatorial militar, o florescimento das comunidades anussim brasileiras, espelhadas na comunidade de Belmonte e seguindo os passos de reconhecimento pelas vias legais inspiradas pela legislação espanhola, continuam seu caminho de busca pela identificação de sua identidade cultural:

No plano nacional, além da distância de meio século que a separa do movimento em Portugal, a iniciativa dos bnei anussim nordestinos, apesar de acontecer sob uma ditadura, no caso, militar, não enfrentou a oposição de um catolicismo legalmente unido ao Estado, nem tampouco se debateu contra uma campanha anti-semita promovida institucionalmente, como foi o caso português. Também é bom lembrar as diferenças na dimensão do movimento. Em Portugal a chamada “obra de resgate” ganhou notoriedade e atingiu a milhares de descendentes de cristãos-novos e criptojudeus. No Nordeste brasileiro as cifras encontradas não ultrapassam, nas avaliações mais otimistas, as centenas. (SILVA. 2008).

Se analisarmos de forma criteriosa todas as discussões que há mais de um século vem ocorrendo na península ibérica, com a finalidade de reparar a história, ressarcindo de algum modo os descendentes dos judeus expulsos de seus territórios e o desenrolar de toda a temática em pleno século XX e no começo do século XXI, podemos identificar, tomando como forma comparativa o que vem ocorrendo no Brasil na atualidade, que em alguns aspectos parece que a experiência vivenciada pelos judeus anussim do vilarejo de Belmonte e de comunidades adjacentes, em Portugal, é de certa forma paradigmática. Assim, uma pequena análise à luz da experiência dos judeus anussim de Belmonte sobre as comunidades de judeus anussim que estão sendo erguidas em solo brasileiro pode ser esclarecedora e altamente relevante para possíveis soluções da problemática enfrentada pelos anussim brasileiros.

3 DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DOS POVOS DE CULTURAS