• Nenhum resultado encontrado

3 DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DOS POVOS DE CULTURAS

3.1 DOS DIREITOS HUMANOS E A SUA REPRESENTAÇÃO PARA OS POVOS DE

3.1.1 Direitos Humanos, Cultura e Diversidade

Ao continuarmos a temática sobre Direitos Humanos, podemos fazer uma relação destes com o sentido da Cultura, ou seja, chegar a um ponto de partida que podemos chamar de Direitos Humanos como Cultura, pois como característica do mundo humano, do ser humano, o esforço para o bem, como forma de transformar o mundo ao seu redor, tornando-o melhor habitável, ou seja, mais adequado em vários sentidos ao seu bem-estar. A união destes esforços, técnicas, instrumentos, utilizados com o objetivo desta transformação, bem como as normas utilizadas para as transformações constantes das relações interindividuais, no tocante de tornar possível uma convivência pacífica e a própria sobrevivência do grupo - forma o mundo da “cultura” contraposto ao da “natureza” (BOBBIO, 1992).

Neste sentido, Reale (1998) argumenta, em concordância com a ideia em questão, tendo como base o pensamento do filósofo alemão neokantiano Heinrich Rickert (1922), da Escola de Baden28, que manteve o foco de seu pensamento sobre

os conceitos de cultura e de valor. Nos fala Reale:

Além da esfera da natureza constituída pela série dos fenômenos reais concatenados segundo o nexo fatal da causalidade, e, além da esfera ideal dos valores que transcendem sujeito e objeto, é preciso colocar um terceiro reino: o reino da cultura. É este que estabelece uma relação que serve de ponte entre ambos. A cultura é a ligação entre a natureza cega para o valioso,

28 Escola de Baden, também conhecida como Escola Sudocidental Alemã - Dentre os seus méritos está o

redescobrimento de dois conceitos fundamentais na especulação contemporânea: o conceito de espiritualidade como valor e o de seu desenvolvimento na história.

e aquilo que vale por si, sem referibilidade ao mundo dos fenômenos reais. No domínio da cultura, os fatos deixam de ser simples elos na concatenação causal e inflexível da Natureza para adquirirem um sentido (Sinn), um significado, uma direção na medida em que procuram encarnar os valores transcendentais. (Reale. 1998, p. 179).

Para este, a cultura é muito mais do mero conjunto de crenças e crendices; é antes o sentido que liga os vários campos entre sujeito e objeto, para uma melhor compreensão da própria natureza humana, seus direitos e deveres, suas noções de valor e de percepção do mundo. Continuando sua explanação tendo por base o mesmo ponto de vista, nos argumenta da seguinte forma:

A cultura é, pois, o complexo rico e multifacetado reino da criação humana, de tudo aquilo que o homem consegue arrancar à fria seriação do natural e do mecânico, animando as coisas com um sentido e um significado, e realizando através da História a missão de dar valor aos fatos e de humanizar, por assim dizer, a Natureza. (Reale. 1998, p. 179).

Sendo assim, o termo Cultura assume um significado importante, apontando para um conjunto de bens, ou seja, um conjunto de elementos da vida material, como o lugar de moradia, seus utensílios, seus objetos do uso cotidiano entre outros, com elementos da vida espiritual e filosófica, como suas crenças, conhecimentos, artes, etc., e com elementos da vida social, ou seja, sua família, o conjunto de suas instituições jurídicas e afins, ou seja, podemos concluir com isso que o estudo da cultura refere-se a toda a gama de costumes; maneiras e técnicas tradicionais específicas de uma sociedade, e aqui começamos a entender a relação entre os Direitos Humanos e as Culturas Tradicionais de muitos povos, como em questão o povo judeu e sua diversidade cultural e étnica, que nos remete ao ponto central de nosso estudo, os judeus sefaraditas expulsos da península ibérica e seu processo constante de (re)construção cultural.

Dentro desta perspectiva, podemos pensar a diversidade cultural através do princípio da diferença, e não da igualdade humana, que é a realidade entre os grupos humanos. Esta diferença primordial entre os grupos e sociedades humanas, nada mais são do que marcadores de ordem cultural e não de ordem biológica, sendo assim, o princípio racial que define um grupo não se sustenta por si, pois o que define este grupo é o sentido de pertencimento a este, através da identificação dos indivíduos de forma individual com a coletividade na qual estão inseridas.

Todas as obras culturais, incluindo o próprio Direito, pertencem ao conjunto de expressões do universo da Cultura, ou seja, do mundo construído pelo próprio homem, através da sua atuação na história (MONTORO, 1985), e representam todo o conjunto de bens e situações que ligam a Natureza aos valores, entre o “ser” e o “dever ser”. Sendo assim, entende-se que o processo cultural é governado por uma série de princípios lógicos e éticos que vão muito além do que a experiência histórica pode conceber e constituem desta forma, a razão primordial do fato cultural em si. Em concordância com este pensamento, Sandra Afonso de Castro (2013) argumenta sobre a relação do Direito com a Cultura e a Diversidade:

Também o Direito, enquanto realizado na História, isto é, o Direito Positivo, é uma realidade histórico-cultural que é exteriorização do Logos como razão jurídica. É um produto cultural da humanidade.

A escola é a socialização de uma cultura fundada na ciência e na filosofia, e tem por função promover a apropriação do conhecimento elaborado e sistematizado. E o Direito, expressão do mundo da cultura, é uma ciência a que o educando precisa ter acesso, até porque tem ele o direito de conhecer o Direito. (CASTRO. 2013).

Afirma ser o Direito, e por consequência os Direitos Humanos, como algo produzido pela própria humanidade, positivado nos tratados e constituições, como um mecanismo que vise assegurar a própria existência de caracteres como a dignidade humana de forma coletiva ou individual e por analogia a própria cultura. Continuando a argumentação, encontramos:

Em complemento às duas primeiras, surge a terceira geração, relacionada aos direitos de fraternidade, que inclui os direitos de titularidade coletiva, reconhecidos no século XX, coroando a tríade liberdade, igualdade, fraternidade (fraternité). Essa geração ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, especialmente após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

Fazem parte dessa dimensão direitos cujos sujeitos não são os indivíduos, mas os grupos humanos, como a família, o povo, a nação e a própria humanidade: direito do consumidor, à qualidade de vida, à liberdade de informação – surgidos a partir do desenvolvimento de novas tecnologias, direito à paz internacional, ao desenvolvimento, à solidariedade, à autodeterminação dos povos, ao patrimônio comum da humanidade (científico, tecnológico e cultural), ao meio ambiente ecologicamente preservado. São os direitos ditos de solidariedade planetária. (CASTRO. 2013. p.67).

Ao nos explicar em sua obra sobre as gerações dos direitos fundamentais, Castro afirma que seria no conjunto denominado de terceira geração dos direitos que encontramos as afirmações que dão base ao trabalho proposto, pois é neste

enquadramento que se encontram os direitos de solidariedade e de autodeterminação dos povos, bem como o direito ao patrimônio comum da humanidade, onde se enquadra o patrimônio cultural. Estes direitos, tratados dentro da perspectiva dos Direitos Humanos, relacionam-se com a diversidade cultural, pois dizem respeito justamente a forma como devem ser preservados os mesmos, tamanha a relevância dos mesmos para a humanidade. Toda a cultura e sua diversidade são extremamente importantes para a sociedade mundial, pois tratam de valores, conquistas, conhecimentos, vivencias, enfim, tratam da própria memoria dos povos, seja esta memória coletiva (como a memória do grupo ou comunidade), seja de forma individual.

É esta memória coletiva29 que faz com que os indivíduos chamados de Bnei

Anussim possam almejar o reconhecimento de sua identidade social como um grupo

étnico, com cultura própria, com crenças, superstições e toda uma gama de transmissão cultural através da oralidade ancestral. Ainda sobre esta categoria de direitos, a autora complementa sua argumentação, de forma a aprofundar na questão da diferença:

O direito à diferença enquadra-se neste grupo, do direito de solidariedade, e afirma-se pelo respeito devido a todo aquele que, no seio dos grupos a que pertence e da sociedade em geral, afirma-se diferente em virtude do gênero, da cultura, da religião, do território de origem, da etnia, do estatuto socioeconômico, ou das suas potencialidades e habilidades ou dificuldades e inabilidades. (CASTRO. 2013. p.68).

Pelo exposto, podemos entender que o diferente tem seus direitos garantidos, no que nos diz respeito, a sua forma de culturalidade, etnia e religião, que são os princípios norteadores da problemática enfrentada pelos Bnei Anussim na atualidade brasileira, onde, reunindo-se no que chamam de Kehilot30, buscam a garantia da

preservação de sua história e por consequência de sua cultura, bem como o direito a afirmação de que, por toda a historicidade de seus antepassados e de sua herança secular, também são judeus como os que hoje formam a comunidade judaica brasileira tida como oficial, formada por imigrantes de países do leste europeu e

29 De acordo com Halbwachs (2004), memória coletiva é todo o conjunto de memórias construídas e preservadas

por um determinado grupo, que se apropria da memoria individual e se sobrepõem a esta criando dispositivos de preservação da própria identidade do grupo, suas tradições e culturas.

30 Forma plural do hebraico Kahal, que significa comunidade ou congregação. Termo usado no judaísmo para

denominar uma associação ou conjunto de judeus que reunidos reconhecem-se como uma família cultural, independente da consanguinidade.

Alemanha. Sendo assim, tem início uma forma a delinear as primeiras impressões sobre formas de se construir uma resposta que atenda as necessidades dos sujeitos em questão, e que vise sanar a problemática:

A resposta à questão do fundamento racional dos direitos humanos deve ser buscada, [...] no plano da reflexão filosófica e não por meio da pesquisa social empírica, pois “casos particulares per se não confirmam, nem desmentem, a possibilidade ou não da universalidade de valores e normas”. Defendendo a importância da recuperação desta dimensão fundacional dos direitos, o autor pontifica: “O desafio da reflexão sobre os fundamentos dos direitos humanos reside, em última análise, na busca de uma fundamentação racional, portanto universal, dos direitos humanos, e que sirva, inclusive, para justificar ou legitimar os próprios princípios gerais do direito”. (PIACENTINI. 2007. p.25). A resposta como nos informa Piacentini, deve ser buscada, ou melhor, construída a partir da investigação filosófica, para que através da razão se possa realmente verificar a veracidade das razões propostas pelos Bnei Anussim ao afirmarem que sua luta é baseada nos Direitos Humanos, de forma a vivenciar e preservar sua diversidade cultural, tendo em vista uma busca por reconhecimento de sua identidade perante a grande comunidade.

3.1.2 Povos de Culturas Tradicionais. O que são e a sua diversidade cultural e