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Apêndice II.III: Analogias entre o gesto em Shakespeare e na nossa livre

Notas Original (traduzido) Adaptação

Banquete servido. O cenário da vingança está pronto.

Nossa proposta foi preparar em cena o território da vingança, de forma a trabalhar as três instâncias da composição corporal dos gestos: preparação-ação- recuperação

(no caso, os gestos de masterchef de Titus, gestos de Marcus, de Lavínia, de Lucius e dos convidados do Banquete: gestos de servir, gestos de degustar, gestos de matar). Assim, preparar a mesa (talheres: armas), receber os convidados, (posicioná-los estrategicamente) sentar à mesa, servir a comida, revelar o segredo da receita,

iniciar a tragédia (gesto de cada um matando: suas personas surgindo, seus motivos),

os corpos caídos. A entrada de Aaron - Aarão - foi prorrogada para não quebrar com a estrutura do Banquete – vide o artigo que escrevi sobre os gestos na cena do Banquete de Titus Andronicus86. MARCUS, de máscara, entra em cena posiciona as cadeiras em torno da mesa e começa arrumar a louça na mesa. MARCUS Lucius, meu sobrinho! Entra LUCIUS de máscara e posta ao seu lado. LUCIUS

Que me chamas, meu bom tio?

MARCUS

Tudo está pronto para o festim que o cuidadoso Titus ordenou com um honroso fim:

o da paz, da amizade, da união e do bem desta pátria. Recebi, pois, os convidados enquanto comunico teu pai que tudo está pronto. (sai).

LUCIUS

Ainda que desgoste. Pois bem (virando-se para coxia) .... dignai- vos aproximar-vos e tomais vossos lugares

85 Versão traduzida utilizada nesta pesquisa: SHAKESPEARE, W. Tito Andrônico. In: William Shakespeare, Obra

Completa, Vol. I, trad. CUNHA MEDEIROS, F. C. MENDES, O. São Paulo: Editora Nova Aguiar, 1989.

Neste capítulo apresento como elucidação um estudo do Ato V, Cena III. Observação: Interessante observar que

ao compor os gestos desta cena, muita ação cênica foi modificada, sendo a versão final da cena um pouco diferente da versão deste texto.

86CAPELATTO, Igor A. Ensaio Sobre o Gesto em Titus Andronicus: Um Diálogo entre William Shakespeare e Julie Taymor. In: www.revista.ueg.br/index.php/temporisacao/article/view/4039/4441 - acesso em 14/11/2017

Mantendo toda uma sequência gestual: preparar o Banquete (ATO IV, CENA I da adaptação),

arrumar a mesa: objetos extensores dos gestos de vingança e assassinato Saturninus pergunta: Por que estás vestido assim, Andronicus? Tal indagação reforça ao público não o gesto de masterchef em si de Titus ou o ato de servir a torta feita com a carne dos filhos de Tamora, nem mesmo a ideia da vingança em si, mas a mudança ocorrida em Titus, que passa por tantas transformações. Acreditamos ele ter mudado de forma a não mais cometer ‘crimes’, assassinatos, vingança, mas assim que Saturninus lança a pergunta, reforça-nos suas transformações, possível de ver física- visualmente.

Transformações são parte do estudo do gesto da vingança: a ideia de que a vingança não satisfaz, e, portanto, se torna um ato contínuo. Titus continua e sempre continuará a vingar (até que a sua morte o interrompa)

Entram TAMORA e SATURNINUS de máscara. SATURNINUS Com todo o prazer, Andronicus

LUCIUS senta à mesa, volta Marcus que também senta. Entra TITUS ainda de masterchef.

TITUS Bem-vindo,

meu benigno senhor. Bem- vinda, temida rainha. Sede todos bem-vindos. Embora seja um Banquete pobre, ele saciará vossos apetites. LUCIUS

Bem, bom pai. Es um prato digno, com ingredientes especiais..

TITUS

Sim... nobre sabor! SATURNINUS (encarando Titus)

Por que estás vestido assim, Andronicus?

TITUS

Para ter certeza pessoal que nada faltará para festejar dignamente Vossa Alteza e a Imperatriz.

TAMORA

Ficamos agradecidos bondoso Andronicus.

A quebra constante da quarta parede nos coloca numa situação de induzir novamente a plateia a se tornarem figurantes da peça (povo de ‘Roma’), neste jogo, propomos aproximar o público de Tamora, fazendo- os passar pelo mesmo enojo e desgosto que ela (claro, que ela tem os sentimentos fervorosos de ser a mãe dos meninos que viram recheio da torta, e para plateia, são duas personagens): assim sendo, Titus, o próprio, serve tora para a plateia. Os diálogos da cena original de William Shakespeare são entre Titus e Saturninus, porém como Marcus é figura importante na relação familiar de Lavínia (e é ele que a encontra violentada) resolvemos, pois desta forma, inseri-lo neste momento dramático e familiar de preparação à morte – morre a filha de Titus, morre a sobrinha amada de Marcus:

“Que razão tens para

ela aqui assentar- se?87 No processo de tornar a peça não-espacial e atemporal, referências históricas pontuais ou mito-filosóficas foram excluídas dando vez a discursos mais atuais: “... com sua presença as dores de Virgílio88

– Saturninus

(TITUS serve a torta, para

convidados e para plateia)

SATURNINUS

Sua boa grata filha não virás prestigiar com sua presença neste apetitoso Banquete? (Marcus levanta

e busca LAVINIA cobrindo sua barriga)

MARCUS

Eis aqui minha sobrinha, desflorada e atormentada. Que razão tens para ela aqui assentar-se?

TITUS

Lavinia, venha aqui. (abraça- a). Pode se retirar querida, não hás razão para estar neste encontro.

LAVINIA se vira para sair quando TITUS vê a

barriga de grávida, projetam- se imagens sobre sua barriga: de gravidez e do estupro. TITUS O que é isso? Descrédito? Uma desonra... SATURNINUS

Serias filho de meu irmão? MARCUS

Antes fosse...

lembre-se que a sua noite de núpcias fora interrompida...

87 Sem as mãos e sem a língua Lavínia não poderá desfrutar do banquete. 88 In: Ab urbe condita, obra escrita por Tito Livio entre 27 a.C. e 25 a.C.

Titus irá matar sua filha Lavinia: eis a premissa através da referência: Virgílio matou a filha para impedir que ela fosse violentada

(Titus declama em discurso - optamos por não colocar uma vez que nem todo mundo conhece a história de Virgílio ou

mesmo por ela

pontuar determinada época e sociedade). Em nossa adaptação a premissa é a gravidez (e, desta forma, todo contexto anterior que já revela que Titus de maneira alguma aceitaria herdeiros de Tamora em sua casta, uma vez que seu (*nas entrelinhas) Relacionamento com Tamora jamais se concretizou).

Na peça original lê-se ‘kills Lavinia’, ‘kills Saturninus’, e assim por diante.

O gesto de matar é um gesto intenso, grande e é marco do clímax da peça: e também de analogias incluindo o cessar deste círculo vicioso da vingança. Assim, procuramos intensificar o gesto de matar e, então, dar-lhe atribuições da maneira como cada personagem iria matar (e por quê?).

TITUS

Que desgosto. Ultraje. Não! (Bate pé com força ao chão) TITUS puxa tecido que cobre barriga de LAVINIA e a enforca.

MARCUS e LUCIUS levantam para barrar a ação de TITUS mas se congelam diante tamanha barbaridade. MARCUS levanta e ajoelha ao lado de LAVVINIA colocando-a sobre seus braços fechando-lhe os olhos.

As descrições de cada morte (no original não se descreve como a pessoa morre - no sentido da ação e movimento de quem está morrendo), foram escolhas nossas de colocar no roteiro da peça que foi reescrita após alguns ensaios. De novo a referência de Virgílio surge no texto original, mas excluímos da versão adaptada.

Durante este pequeno momento de discurso sobre Titus ter matado sua filha Lavínia, que dramaticamente revela a desaprovação de Saturninus, nós incluímos a analogia a relação da torta com a vingança por meio de uma afronta por parte de Saturninus: “Além do mais, se julgas tão digno deste Banquete, mas esta torta está gelada”. Matar a filha é a dor maior para Titus, uma dor que queima, mas que resulta em corpo frio (a filha que esfria e degenera voltando ao pó) - a vingança é um prato que deve ser servido frio!

(frio, no sentido de sensação térmica [gélido], frio enquanto inclemente’)

SATURNINUS

Bárbaro, desumano, que fizeste?

TITUS

Matei quem me deixou sem vista os olhos.

TAMORA

Por que matar o pai a própria filha?

TITUS

Não fui eu que a matei, porém Demétrio com Quiron juntamente.

Após haverem dela abusado, a língua lhe cortaram. Eles, apenas, lhe fizeram isso.

SATURNINUS Ide busca-los

imediatamente! (pausa) Além do mais, se julgas tão digno deste Banquete mas esta torta está gelada.

TITUS

Pois a vingança é um prato que deve ser servido frio! SATURNINUS

Jurastes trégua!

Torta, carne, faca, alimentou, essas são

as palavras que

descrevem o ato no original.

Mas mais que o olhar, sensações do paladar são mais intrínsecas, uma vez que a plateia está com torta na boca (já comeram ou ainda estarão comendo). Assim sendo, surgiu a ideia de Titus rebater com a pergunta: “Não sentiu o sabor?” (Sabor: gosto, palato, mas também capricho, peculiaridade. Sabor do latim: 'sapore-', que quer dizer "gosto, o sabor característico de uma coisa, em sentidos próprio e figurado89

Como uma quebra, uma espécie de pausa para reflexão do gesto, procuramos introduzir esta revelação para Saturninus de que o filho de Tamora é de um relacionamento com Aaron e não filho de Saturninus (ainda que seja uma cena de choque para Saturninus,

com gestos de reação [que vai desencadear uma outra morte], pelo fato da plateia já saber sobre a criança, não há, porém, uma informação nova a ser decifrada, absorvida, assim sendo, essa ação funciona como uma pausa.

TITUS

Não sentiu o sabor?

Ambos estão naquela torta com que a mãe deles tem-se regalado, comendo, assim, a própria carne que ela mesma engendrou.

E certo, é certo; atesta-o a ponta aguda desta minha faca.

Inicia trilha sonora:

“Revelando a receita da Torta”. TAMORA levanta com talher na mão para atacar TITUS mas LUCIUS a interrompe.

Música cessa. LUCIUS Pare sua víbora.

Antes que reclames de algo, deixe-me dizer ao vosso marido que não apenas traiu o coração de meu pai e toda família dos Andronicus, mas também de seu amado imperador?

SATURNINUS Que estás a dizer? LUCIUS

O filho de Tamora... ele não morreu. Seu choro perpetuou nos braços de Aaron... e agora perpetua sobre protetores desconhecidos. SATURNINUS

Mas o que aquele nauseante quer com meu filho?

LUCIUS Seu filho?

Não vedes... ele é filho de Aaron!

SATURNINUS

(virando para Tamora, com

talher na mão)

Quão grande indulto!

Morras!

(volta trilha “Revelando a

receita da Torta”)

89 in: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/etimologia-das-palavras-saber-e-sabor/15864 - acesso

Essa revelação é feita por Marcus, todavia preferimos deixar na voz de Lucius, assim, preservando toda uma construção gestual de Marcus que sofre com a morte de Lavinia. Novamente, o gesto de Marcus continua. Em nossa proposta de trabalhar os gestos, e de intensificar os gestos da dor de Marcus (sofre por Lavínia), não era mais cabível manter um discurso longo de Marcus (seja sobre o filho de Tamora com Aaron, seja sobre a nação de Roma, seja sobre qualquer outro assunto, e, até mesmo sobre Lavinia). Assim sendo, Marcus, permanece ‘calado’. No original, Marcus não morre, mas sua dor intensa precisava completar um ciclo, e, Marcus sobreviver diante de tamanha dor e horror não se encaixava mais, é algo que na peça original quebra um pouco (meu ponto de vista) com o drama do sofrimento e o árduo discurso que, então, desenrola. Optamos por Marcus morrer, porém não morrer nas mãos de outrem, mas por uma carga emocional:

MARCUS coloca a mão no peito sentindo dor, morre de enfarto. Enfarto: do latim, in-, “em”, mais fartus, ou seja, “colocar em, encher”. Encher, por sua vez vem do latim

implere: “completar”.

(TITUS interrompe e Mata

TAMORA)

Deixe que eu mate!

SATURNINUS ataca TITUS pelas costas matando-o. LUCIUS sobe a mesa e com fúria e então segue até SATURNINUS, pula sobre ele e mata-o.

MARCUS coloca a mão no peito sentindo dor, morre de enfarto.

Ou seja, Marcus completou seu ciclo (preparação-ação) e, agora recupera-se (sentido ‘reverso’) Na peça resolvemos trabalhar apenas com personagens centrais, assim aconteceu a exclusão de alguns personagens como o Emílio.

Outra mudança foi que lidamos mais intensamente com as premissas de Aaron ser, talvez, o grande articulador de toda vingança (um exímio jogador, enquanto: Titus, Lucius, Lavinia, Marcus, Demetrius, Quiron, Tamora, Saturninus e Baussianus, são peças no tabuleiro que ele articula.

No original Lucius não se vinga de Aaron: ele abandona a vingança no final.

LUCIUS acusando AARON por toda desgraça.

LUCIUS sai de cena e volta com espada no pescoço de AARON que está segurando tabuleiro e peças de xadrez derrubando-as pelo palco.

Mas a premissa de que tudo é motivado pela vingança e que, por ser, a vingança, um gesto continuo, e por vez, inerente a cada uma das personagens, não mais valeria na nossa adaptação essa atitude de Lucius de ordenar que soldados levassem Aaron para que a justiça fosse feita - Lucius é quem deveria se vingar, assim sendo, Lucius assassina Aaron.

A peça termina. Mas fomos adiante. Foi sugerido inserir um epílogo. Algo sublime, surreal. Uma certa metáfora ao exímio jogador que domina o sistema90. E

um sistema ‘que não se dissipa, mas que recria-se revivendo- se’. Por fim, Aaron na forma de um espectro volta de forma surreal recitando o Soneto 66 de Shakespeare.

LUCIUS

Que seja feita justiça a Aaron, esse traidor maldito, que foi o autor de nossos males inauditos.

LUCIUS agarra

AARON pela cabeça e coloca-o na mesa, reclinado, apontando-lhe espada. Em seguida coloca restos de comida sobre sua cabeça, deitando-a na mesa. Depois pega um saco/bolsa do qual tira ratos que coloca sobre a mesa e sai de cena.

Luz pisca.

Stroble de projeção de flashes de ratos, muitos ratos. Ouve- se um grito de AARON, depois um silêncio.

BLACKOUT.

Inicia trilha “Final”, luz volta.

Vê-se AARON em forma de ESPECTRO andando por entre os mortos, a cada morto ele coloca uma luminária acesa, recitando Soneto 66, na qual, cada parte do soneto direciona a um dos mortos.

.

90 “ [...] o jogador de xadrez tem a intenção de executar o deslocamento e de exercer uma ação sobre o sistema

[...]” (SAUSSURE, 2006, p. 105, apud RIBEIRO, Thales. A metáfora do jogo de xadrez na linguística saussuriana. ESTUDOS LINGUÍSTICOS, São Paulo, 2016.

Considerando que este Soneto 66 possa ser referencial de Titus Andronicus (a peça), assim farei uma breve análise, tentando aproximar o soneto da peça de Shakespeare (original) e de nossa adaptação.

Em alguns estudos91,

o soneto é atribuído a Hamlet, noutros a Macbeth, porém em outros, diz-se tratar de Titus Andrônicus por aproximar mais dos fatos de Lavinia do que de Ofélia ou Lady Macbeth.

Soneto 66

Farto de tudo, clamo a paz da morte. Ao ver quem de valor penar em vida E os mais inúteis com riqueza e sorte.

E a fé mais pura triste ao ser traída.

E altas honras a quem vale nada. E a virtude virginal estuprada E a plena perfeição caluniada. E a força, vacilante, enfraquecida

E o déspota calar a voz da arte. E o néscio, feito um sábio, decidindo.

E o todo, simples, tido como parte. E o bom a mau patrão servindo.

Farto de tudo, penso, parto sem dor. Mas, se partir, deixo só o meu amor.

Titus volta cansado da guerra, com tantos assassinatos em sua família, já nem tem forças mais para continuar no governo, nem mesmo para cuidar dos prisioneiros (destinando-os as mãos de Saturninus).

Fé traída: o mouro (Aaron) que trai, indo contra ao Islã.

Honras: os títulos atribuídos a Titus nada valem, quando seu primogênito e outros filhos estão mortos, pro traição, vingança. Nem respeito a filha imaculada: a virgem Lavinia estuprada por filhos da traidora. Mais do que a morte dos filhos, essa ação é que mais enfraquece Titus.

A culinária é uma arte, mas os déspotas não sucumbem tal arte, ao invés de saborear a torta de Titus, reclamam que está fria, enojam seu comportamento

Saturninus, o néscio92 se julga

capaz de governar Roma. Assim, Marcus, o bom, passa a não mais servir aos seu irmão Titus, mas a Saturninus. O amor de Titus, que ele deixa... o amor aprisionador pela filha Lavinia, o amor pelo povo de Roma, o amor pelo filho primogênito assassinado. Mas pode também referenciar Baussianus, que atacado, parte deixando Lavinia, ainda sem saber que ela será violentada.

91 Notas de fim de texto, nas edições da Martin Claret e LP&M, cita-se que esse Soneto (número 66) refere-se a

Hamlet, nas versões traduzidas por Jorge Furtado, referem a Macbeth, porém em outras edições mais antigas como Edições de Ouro, refere-se a Titus Andronicus. Optamos pela tradução de Péricles E. S. Ramos por ser a que no meu olhar d e pesquisador, mais se aproximava do original.

Na versão original93, ainda,

encontramos, o verso ‘and arte made tung-tide by authoritie’ tradzido muitas vezes por “e o déspota calar a voz da arte”. Porém, a força de tung-tied: língua atada, soa mais intensa, ainda que não utilizemos desta tradução na nossa adaptação, por questões de sonoridade poética, língua atada não somente refere-se a ‘calar momentaneamente’ como a expressão tung-tied também refere-se ao calar eterno, o arrancar da língua, fazer com que a pessoa se torne muda, incapaz de proferir fala.

93 In: SHAKESPEARE, William. The Complete Illustrated Work of William Shakespeare. EUA: Bounty Books,

15. Apêndice II.IV: Quando o gesto pertence à câmera (assimetrias entre filme e peça teatral)

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