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Continuo convencido que, para quem sofreu na própria carne e no íntimo da mente a ruptura atual do solo que nos sustenta, a única atitude digna é a de procurar reconquistar o contato perdido com a vivência concreta. E de, em seguida, procurar articular o inarticulável (FLUSSER, 1983, p.167)

Figura 30. Frame de Blow up (ANTONIONI, 1967)

Blow up apresenta uma trama simples: um fotógrafo, Thomas, que acredita ter visto um

crime e quer convencer seus colegas desse fato. Aparentemente, um filme sem muitas especulações, sem muita necessidade de codificação. Porém, em suas 'entrelinhas', Antonioni faz com que a nossa imaginação desperte, somos destinados a codificar signos e mais signos. Para muitos ensaístas, Blow up é um filme sobre semiótica, sobre semântica, sobre o código dos signos. Para mim, ele é um tratado mais amplo, um tratado sobre a imaginação.

O jogo de tênis dos mímicos, apresentado ao final do filme, é referência direta ao discurso da imaginação. Mas o epicentro da discussão sobre imaginação, antecedido pelo discurso da subjetividade no diálogo entre a personagem Thomas e o artista plástico Bill (subcapítulo 3.3), repousa na conversa entre Thomas e Ron. Thomas está convicto do que viu no parque, ou melhor, do que acredita ter visto no parque. Na verdade, Thomas só acha que viu algo no parque (um assassinato) depois que amplia (através da técnica blow up) suas fotografias, revelando pistas, dando forma às manchas de suas fotos. Então Ron questiona se ele tem certeza do que viu no parque.

Mas a imaginação pode ser traiçoeira: somos capazes de inventar e acreditar nesta invenção. Thomas imaginou ter visto um assassinato no parque; nós, espectadores, somos guiados a acreditar nesta crença. Todavia, eis uma dúvida implícita: Thomas realmente viu um assassinato? Nenhum assassinato foi mostrado até que se ampliassem as fotos, ainda assim não há ato de assassinar impresso, apenas uma mancha que Thomas deduz ser uma mão com arma, e uma mancha que ele pressupõe ser um cadáver.

Figura 31. Frame de Blow up (ANTONIONI, 1967)

Figura 33. Frame de Blow up (ANTONIONI, 1967)

Figura 34. Frame de Blow up (ANTONIONI, 1967)

De fato, tecnicamente ele não viu nenhum assassinato. São apenas ampliações de imagens técnicas que transformam machas em algo a que podemos nos agarrar. Ron pergunta: “O que você viu no parque?”, Thomas apenas responde: “Nada”. O diálogo entre a imaginação (imagem poética formulada no cérebro) e a imagem técnica reforçam esse analogismo entre sugestão/suposição. Enquanto a imagem poética supõe (e supor significa conceber), a imagem técnica sugestiona (e sugestionar é induzir). Eis um conflito que é preciso elucidar: imagem técnica não mente, reflete a realidade, mas realidade é uma pressuposição de um ponto de vista (seja do sujeito que produz a imagem, seja do aparelho que produz a imagem), portanto, imagem subjetiva. O assassinato é suposto por Thomas, mas Thomas tem como respaldo a imagem técnica (realizada pela sua câmera). Anteriormente à pergunta chave, “o que você viu no parque?”, Ron diz: “Eu não sou um fotógrafo”, negando a imagem técnica (a possível prova, testemunho do crime), a que Thomas refuta: “eu sou”.

[A imagem técnica] Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos são produtos da técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado. […] as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo. (FLUSSER, 2011, p.29-30)

E é, então, na ponte que liga imagem técnica e imagem poética, que transita o gesto. O gesto dos mímicos jogando tênis formulam tecnicamente uma ação precisa, jogam tênis, mesmo que não haja raquetes e bolas. Não é necessário. A ação, técnica, vem codificada, os signos necessários para a construção desse ato são nítidos. Thomas deixou-se levar pela imaginação e acreditou no crime, se não fosse a imaginação, a fotografia seria apenas uma fotografia técnica, sem uma história a ser contada. O que faz uma imagem sair do campo técnico e ir para o campo abstrato, e contar narrativas, comunicar, é a imaginação.

Figura 35. Frame de Blow up (ANTONIONI, 1967)

Talvez não importe o que a imagem técnica mostre, não importa o que outras pessoas veem, não importa o que de fato aconteceu; o que importa é no que o sujeito acredita. Talvez a prescrição fundamental deste tratado sobre a imaginação seja que, em um filme, o que importa, não é o que a trama conta, o que as imagens técnicas mostram, mas, sim, o que o espectador acredita. E, talvez, seja a maneira com que esse acreditar vai ser conduzido que possibilita a ponte entre filme e espectador, que permita a suspensão do gesto. Assim como somos conduzidos a imaginar, juntamente com Thomas, a bola de tênis (que imageticamente não existe) sendo arremessada para fora da quadra e, com Thomas, caminhamos para pegá-la.

Imaginação, na esfera da associação entre cultura e corpo sensível, permite a construção de gestos, inventá-los a partir de valores culturais aos quais somos submetidos em nossas experiências e da liberdade criativa do corpo. É a saudação de Spock (figura 3). Nesta esfera ainda, gestos podem ser criados fora do campo imagético do filme (a tela), podem pertencer ao campo mental, imagem subjetiva. É quando imaginamos uma cena fílmica, algo que tenha acontecido no filme, e incorporamos esta cena ao filme, porém ela nunca pertenceu concretamente a ele. É quando contamos para alguém um filme e dizemos que isto ou aquilo aconteceu e, depois, revemos o filme e percebemos que aquela cena não existe no filme que assistimos, mas no filme que recriamos na nossa mente (subcapítulo 3.5). Isso é ilusão da memória: falsa memória (não no sentido de inverídica, mas no conceito de memória não vivida na esfera a qual denominamos realidade). Esta falsa memória cria, mas cria em determinado instante, ou seja, cria, mas depois se dissipa. Memória passageira, que não se suspende.

Uma vez, pois, discursado anteriormente e conferido que, para que um signo se suspenda e eternize-se, é necessário uma comunicação entre receptor e mensagem e, essa sendo através do gesto, para que essa memória se suspenda é necessário imaginar gesto, gesto que ocorre nesse ato criado na memória. E é isso que intitulo ilusão-gestual. Apesar de falar sobre memória, procuro usar o termo ilusão-gestual e não memória-gestual, pois, dentre outros fatores, memória pode confundir-se com a ideia de algo que pertence apenas à mente, à esfera íntima do receptor. É a potência do gesto: um gesto é capaz de conduzir a mente do receptor a níveis da imaginação capazes de transformar determinado gesto, limitado pela montagem (no caso de um filme), num gesto muito mais amplo. O corte acentuado da lâmina da faca na pele de Marion, em Psicose (HITCHCOCK, 1960), penetrando em sua caixa torácica, o instante especifico do corte, que na imagem original do filme nunca existiu.

A imagem manifestada após o gesto fílmico é autônoma, ou seja, não é um espelhamento imagético direto da imagem fotográfica do filme. De toda maneira, foi um gesto que, expresso na tela, gerou esse outro gesto. Algumas vezes ele é resultante de uma imaginação simbólica, outras de uma lógica racional, que cria uma espécie de ilusão-gestual. A potência dos gestos revelados (em Psicose) é capaz de criar, no espectador, a impressão de ter visto na tela do cinema o gesto do corte da faca. Mas não, essa imagem é apenas fruto dessa ilusão-gestual.

Ilusão é engano dos sentidos ou pensamento, ou seja, a imagem mental resultante do procedimento de ilusão-gestual é uma imagem utópica, pretende-se ser, preencher as lacunas fílmicas, o gesto que não está imageticamente presente no filme, no entanto é apenas uma tentativa falha de ser, nunca será, pois ela pertence apenas ao espectador (e cada qual cria a sua imagem resultante).

Quando se trata de cultura, na esfera do gesto, ilusão-gestual se torna técnica para construção de pontes sobre abismos fílmicos: é a maneira de suprir a necessidade de

significação gestual que faz parte da natureza do ser humano. Essa técnica coopera com a

criação de roteiros, permitindo que o timming fílmico seja melhor explorado. O que quero dizer é que, uma vez que o tempo fílmico (duração aproximada que possa agradar público, adequar- se ao orçamento de produção ou se encaixar nos padrões exigidos pelos exibidores) limita a exibição de todos os detalhes de uma ação (mostrar todo seu passo-a-passo), proporcionar esse analogismo sugestão/suposição permite que o filme trabalhe com lacunas que o espectador irá preencher. Não é preciso mostrar o corte em Marion, não é preciso mostrar o tubarão atacando (em Tubarão, SPIELBERG, 1975).

Com essa técnica é possível construir narrativas que trabalhem com o oculto, com a imaginação, com a não-imagem técnica, como, por exemplo, Cloverfield (REEVES, 2008), em que, em parte do filme, o ataque de uma 'criatura' é revelado apenas por registros feitos por câmeras amadoras nas mãos das personagens. As cenas são mostradas pela imagem dessas câmeras (figura 38 e 39) e não vemos o que está atacando. Somos induzidos a imaginar o que poderia estar atacando e essa é a premissa da trama de Goddard (roteiro) e Reeves (direção): a ilusão-gestual como representante de uma personagem.

Pode-se assim dizer que, para a ilusão-gestual acontecer, é necessário ocultar gestos. Ocultar, do latim occultare: ob-, “à frente”, mais celare, “esconder, tirar da vista”. Ou seja, deixar visível o invisível e invisível o visível: sugestionar. E, com a capacidade de imaginar, o espectador irá codificar esses códigos sugestionáveis e (re)criar imagens que preencham tais hiatos (suposição). Trabalhar com a ilusão-gestual, esse é um campo delicado, pois ela está na linha tênue das cinco problemáticas da interpretação fílmica (capítulo 3).

Figura 38. Frame de Cloverfield (REEVES, 2008)

Se, segundo Flusser (“Não imaginarás”54, s/d, p.1), “o conjunto de modelos que construímos para imaginar a realidade é chamado “teoria”” e “a teoria é a imaginação da realidade pela visão interna”, pode-se concluir que, sendo pessoal, a teoria é cultura particular e, desta maneira, incapaz de ser considerada modelo padrão. Assim, eu posso imaginar uma criatura, você pode imaginar outra e outra pessoa, ao ver Cloverfield, pode não imaginar criatura alguma até que ela 'visualmente' apareça no filme.

Desta forma, pode-se dizer que ilusão-gestual, ao mesmo tempo que é ferramenta que pode solucionar problemas técnicos, faz emergir problemáticas de interpretação. Criar modelos é, fenomenologicamente, uma tentativa de encontrar algo a que se agarrar dentro de uma pesquisa, assim como na prática construtiva de alguma cultura. Sendo o gesto fenômeno da cultura e modo pelo qual a cultura se manifesta, ao ‘modelo’ da ilusão-gestual cabe a aleatoriedade. Aleatoriedade explica essa multiplicidade de significação de um filme: a recriação (subcapítulo 3.5). Apesar do espectador dominar códigos com os quais ele decide os significados que quer atribuir ao filme e resignifica (codifica) à sua maneira (ele entende o filme a partir do que ele escolhe significar cada elemento fílmico), ele depende de códigos que estão contaminados também por uma cultura a qual ele faz parte, mas não controla, uma cultura social (regional, política, religiosa, enfim de diferentes competências). Por sua vez, esses padrões culturais corroboram com um produto resultante padronizado. No caso fílmico, corrobora com um filme concluso. Quimera: todos falando a mesma língua, todos os espectadores falando do mesmo filme. No entanto, o que acontece é senão o desmoronamento da Torre de Babel. A queda no abismo, uma vez que é utópico. Para que um mesmo filme fosse interpretado de uma mesma maneira por quem quer que fosse o espectador, seria necessário ignorar a cultura particular de cada espectador e criar uma condição em que todos os espectadores codificassem da mesma forma os signos presentes no filme. Seria criar um filme sem lacunas, uma vez que são indutoras de ilusão-gestual. Ainda, seria necessário ignorar todos os gestos.

Segundo Agamben, “no cinema, uma sociedade que perdeu seus gestos procura reapropriar-se daquilo que perdeu e, ao mesmo tempo, registar a perda” (2015, p.21), ou seja, uma sociedade sem gestos é uma sociedade sem memória, sem registro, ou seja, sem cultura.

Se, no cinema, gestos perdidos são encontrados e registrados, como registrar a imagem gerada pela ilusão-gestual, uma vez estando numa esfera ex-film? Para tal ensaio, é preciso mergulhar mais afundo na relação do gesto na analogia entre imagem subjetiva e imagem poética, considerando estas duas esferas fílmicas: o filme-concreto e o filme-subjetivo. Concreto no sentido de filme enquanto produto que, após ter sido elaborado, existe sem a dependência de uma mente elaboradora, tornou-se objeto que se basta com os aparatos técnicos; subjetivo enquanto o filme que somente existe através de uma mente pensante.

O filme-concreto é um filme que não tem hiatos, porém não é subjetivo, assim, não é memorável (não dialoga com as emoções). O filme-subjetivo é um filme com hiatos, e, sendo o gesto o elemento pelo qual nos comunicamos com o filme, é, senão, o filme-subjetivo, o filme que nossa mente cria preenchendo hiatos com gestos (preencher no sentido de dar sentido, ao mesmo tempo duvidando daquilo que é exposto).

Não ignoro, pois, os filmes sem hiatos, aqueles filmes prontos, diretos, non-plásticos, técnicos: esses têm função restrita de entretenimento (não significa que filmes de entretenimento sejam flats, pois muitos filmes de entretenimento apresentam gestos; a diferença está no fato dos filmes de entretenimento tentarem definir todos os sentidos, significados de seus gestos).

Tomarei como referência elucidativa os filmes da chamada Nouvelle Vague55, Os Incompreendidos (TRUFFAUT, 1959) e Noite Vazia (KHOURI, 1964), o primeiro da geração

francesa e o segundo da nouvelle vague brasileira. Ambos, por se portarem aparentemente como filmes “flats”, a priori são filmes diretos, denotativos, cuja trama segue linearidade e carrega códigos evidentes, de modo que a linguagem parece simples, mas que, nas suas entrelinhas, são filmes non-flats e, quando percebemos, somos tomados por uma crítica à sociedade, aos costumes e confrontamos culturas. Surgem os hiatos fílmicos e eles começam a ser desvendados pela nossa capacidade imaginativa e, desta forma, vão se tornando filmes-subjetivos.

55 Nouvelle Vague (1958-anos 70): “A Nouvelle Vague foi a marca inegável de uma geração. Em menos de três anos, dezenas de jovens realizadores chegaram ao longa-metragem, trazendo simultaneamente uma nova são de Paris. Uma das características destes filmes é que foram rodados em locações naturais, fora dos estúdios de Boulogne. A saída dos estúdios é bem conhecida – ela foi afirmada e, mais tarde, fortemente criticada por limitar as possibilidades expressivas de um filme. […] [segundo Godard, a Nouvelle Vague consiste em], falar mal do que não se conhece, tanto quanto reordenar o que se conhece.” (MARIE, 2011, p. 79-80).

Enquanto o filme-concreto se posiciona como um filme que independe do sujeito interpretante, o filme-subjetivo é a maneira que o sujeito encontra de pertencer ao filme (e de deixar de ser estrangeiro56), interpretando o filme e, então, “pressupõe que o leitor se ponha no lugar do autor” (FLUSSER, in: Interpretações, http://www.flusserbrasil.com/art27.html - acesso em 09/02/2015) e ainda, “que o leitor “simpatiza” com o autor, a fim de poder descobrir as intenções que esse autor procurou veicular no texto57”.

[Imaginar é a] singular capacidade de distanciamento do mundo dos objetos e de recuo para a subjetividade própria, [...] capacidade de se tornar sujeito de um mundo objetivo. (FLUSSER, 2007, p. 163)

Em Os Incompreendidos, acompanhamos Antoine Doniel, um jovem de 14 anos que se rebela contra o autoritarismo da escola e o desapreço de sua mãe e seu padrasto. O filme nos apresenta uma esfera crítica ao sistema educacional através de códigos culturais de uma sociedade de classe baixa, de uma Paris no final dos anos 50. Em Noite Vazia, a angústia e o vazio na vida de dois amigos da alta sociedade são revelados em uma noite de busca de prazeres. Os prazeres da noite, que parecem ser apenas sexo, bebidas e farra, aos poucos se revelam parte de toda uma crítica dos valores (e assim de um amplo repertório de códigos) de uma sociedade e mais profundamente do ser humano (a era do vazio, segundo Lipovetsky58, a era da indiferença, estar no meio social, mas não viver o convívio social, o isolamento do ser social e a valorização do ser individual, ou que Flusser (2007, p.205) considera como a sociedade que não pratica mais a conversação, pois, subverte-se a conversa fiada).

Ainda, na construção das pontes de conexão entre espectador e filme, temos, em Os

Incompreendidos, a metalinguagem (vide capítulo 7), quando ficamos sabendo – por

referências externas ao filme – que Antoine é uma representação do próprio storyteller-diretor Truffaut e, em Noite Vazia, ficamos sabendo que o filme é um meio de externar a angústia que o próprio Khouri (diretor) estava vivendo59.

56 Vide subcapítulo 2.1.

57 É no filme-subjetivo que surge o gesto crítico.

58 LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Relógio D'agua, 1989.

59 Mas o espectador só saberá isso se ler alguma resenha, crítica ou ensaio sobre o filme. O próprio filme não tem códigos suficiente para revelar a metalinguagem da relação personagem-cineasta. Alguns casos, claro, fogem a esta condição, como o filme Adaptação (Spike Jonze, 2002), em que a personagem interpretada por Nicholas Cage é o próprio roteirista do filme, e o espectador sabe disso com os créditos inicias do filme.

Ações em planos subjetivos (pontos de vista das personagens), planos próximos e closes são elementos muito comuns encontrados na Nouvelle Vague. Trata-se de técnicas fotográficas que, no caso dos planos subjetivos, excluem a nossa visão defronte da personagem; dos planos próximos, excluem toda relação personagem-cenário, uma vez que cenários se tornam obscuros, inteligíveis (fora de foco) ou não aparecem em cena; closes excluem a potencialidade da gestualidade. Ou seja, são planos que deixam gestos imprecisos e que podem, assim, tanto intensificar quanto obstaculizar a imaginação na ilusão-gestual (em Os Incompreendidos, a narrativa é guiada pela percepção de Antoine, as pontes entre sua opinião, e as opiniões contrárias a sua – da escola, da mãe, da sociedade, ou seja, o outro lado da história – ficam no campo do abstrato enquanto, em Noite Vazia, a crítica é estabelecida, mas os motivos que levam o ser humano ao vazio, ficam a encargo da imaginação do espectador).

Figura 40. frames de Os Incompreendidos (TRUFFAUT, 1959)

Em Os Incompreendidos, um travelling60 acompanha Antoine por quase 80 segundos, quando o garoto foge de um reformatório. O que vemos não é a corrida, a fuga – Antoine correr por ruas, bosque, pular cercas –, mas sim a apatia do personagem, sua busca pela liberdade. Após esse longo travelling (figura 40), Antoine olha para a câmera (para o espectador), a imagem congela (figura 41) – uma analogia direta da ideia de pausa – e suspende-se o gesto, que somente é rematado pela imaginação do espectador (ilusão-gestual). A partir de então, a narrativa não está mais no filme, mas totalmente entregue ao espectador que então se torna o

storyteller que vai concluir essa fuga de Antoine.

60 Travelling é um movimento de câmera em que ela se desloca no espaço, usualmente, acompanhando uma personagem.

Figura 41. frame de Os Incompreendidos (TRUFFAUT, 1959)

Farei um breve ensejo para elucidar como se comporta a dialética fílmica da relação do objeto (foco da cena) e o espaço em que ele está situado. Tal ensaio é necessário para a compreensão, no que se diz respeito à suspensão do gesto, de como os gestos se comportam linguisticamente na esfera da ilusão-gestual. Eco (2015) em Os Limites da Interpretação, faz uso de um exemplo do semiótico Pierce para elucidar a relação regra-caso-resultado – não estarei discursando sobre semiótica ou fazendo uso da mesma diretamente nesta pesquisa, mas o exemplo serve como analogia ao que pretendo, por ora, elucidar –. Assim, Eco discursa sobre

Pierce e os feijões (2015, p.198):

Regra = Todos os feijões que provêm deste saco são brancos. Caso= Estes feijões provém deste saco.

Resultado=Estes feijões são brancos.

Nesse modelo, Pierce procura explicar a relação entre resultado e regra, silogismo que contribui para o entendimento de como a hipótese desenvolve-se a partir de regras (metodologias) que conduzem o caso (objeto de pesquisa em relação ao campo de desenvolvimento da pesquisa diante de uma regra) para se chegar ao resultado (e conclusão da pesquisa, comprovando ou não a hipótese). O objeto estudado são os feijões, a hipótese pressupõe que os feijões sejam brancos, a regra diz que todos os feijões que provêm deste saco são brancos, saco é o referencial, a pergunta que vai induzir a pesquisa – de onde vêm estes feijões? – determinará um resultado imediato ou se a pesquisa necessitará de novas descobertas: se estes feijões estudados vêm deste saco, eles são brancos; se não vierem, é necessário investigar suas procedências.

O equívoco nesse modelo de pesquisa é achar que o caso estudado são os feijões enquanto, na verdade, os feijões (e penas a amostragem definida pelo pesquisador) são objetos de estudo. Caso é relação do objeto com a regra: esses feijões provêm desse saco. No caso do estudo fílmico, o equívoco é achar que o filme é o caso (estudo de caso não é o filme) enquanto o filme é apenas o campo da pesquisa, o objeto da pesquisa é o elemento que se está estudando no filme (por exemplo, o gesto). Caso é a relação do gesto com determinado filme, diante de

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